Adeus, Meninos é uma obra-prima.
Lançado em 1987, foi o primeiro filme de Louis Malle na sua volta à França, de onde havia saído mais de dez anos antes, logo após a imensa polêmica que se seguiu a Lacombe Lucien, de 1973.
Lacombe Lucien ousou enfocar um tema nada agradável ao brio da França e dos franceses: o colaboracionismo de muitas pessoas com o invasor alemão e com a polícia do governo títere do Marechal Pétain, pau mandado dos nazistas.
Desde o final da Segunda Guerra, em 1945, esforçava-se para mostrar ao mundo o heroísmo da Resistência, a luta de milhares de franceses contra os invasores. E eis que Malle – um cineasta que jamais fugiu de uma ousadia, um tema polêmico, chocante, muito ao contrário – mostrou o outro lado da moeda, feio, horroroso, nojento.
Bem mais tarde, recentemente, surgiram filmes que expõem uma das mais tristes, vergonhosas tragédias da história francesa, que ficou conhecida como Rafle du Vélodrome d’Hiver, ou simplesmente Rafle du Vel’ d’Hiv. Rafle é a palavra francesa para detenção em massa: nos dias 16 e 17 de julho de 1942, a polícia francesa, a mando do governo pau mandado de Vichy, prendeu mais de 13 mil judeus em Paris; amontoou essa multidão de pessoas no Velódromo de Inverno, e dias depois a entregou aos nazistas. Quase todas aquelas mais de dez mil pessoas – o número exato é 13.152 – seriam meses mais tarde assassinadas em campos de extermínio na Polônia.
Em 2010, foram lançados dois filmes sobre esse tristíssimo episódio: A Chave de Sarah/Elle s’appelait Sarah e Amor e Ódio/La Rafle.
Em 2010, muita água já havia passado sob as belas pontes do Sena, e já se admitia a possibilidade de rever em filmes aqueles acontecimentos. Nas proximidades do local onde antes havia o velódromo, no Quai de Grenelle, existe hoje a Place des Martyrs-Juifs-du-Vélodrome-d’Hiver. Há um monumento em memória desses mártires, e ali, diante do monumento, em 16 de julho de 1995, o então presidente Jacques Chirac fez um pronunciamento reconhecendo a culpa da França no episódio. “A França, pátria das Luzes e dos Direitos do Homem, terra do acolhimento e do asilo, a França, hoje, cometeu o irreparável. Faltando à sua palavra, ela entregou seus protegidos aos carrascos.”
Mas, em 1973, Lacombe Lucien foi recebido com muita pedrada. Louis Malle resolveu sair de seu país e, como tantos compatriotas seus haviam feito nos anos 1930, fugindo dos nazistas, radicou-se nos Estados Unidos, onde fez sete filmes, entre eles Pretty Baby, de 1978, e Atlantic City, de 1980.
Demora muito para aparecer na tela um soldado alemão
Ao voltar para a França, voltou exatamente à mesma época e o mesmo contexto retratados em Lacombe Lucien: o interior da França ocupada pelos nazistas na primeira metade da década de 1940.
Adeus, Meninos fala, como Lacombe Lucien, de colaboracionismo. E fala também da Resistência. Mostra as duas faces da moeda.
Mas o filme demora para chegar a seu ponto central, ao seu tema principal, a ocupação nazista, os que colaboram, os que resistem. Isso me impressionou muito, ao rever o filme agora, pela primeira vez (tinha visto uma vez só, em 1988, na época do lançamento).
Não há aqueles letreiros indicando para o espectador a data da ação. Só depois de uma meia hora alguém fala que se está em 1944. E demora bastante para aparecer na tela um soldado alemão.
É como se Malle quisesse realçar que, para muitos franceses, a vida transcorria quase de maneira normal. Como se o país não estivesse sob as botas do invasor.
Também não há nada, ao longo de praticamente todo o filme, que indique que se trata de um relato autobiográfico, ou, no mínimo, um relato inspirado em experiências reais do cineasta.
A revelação vem apenas na sequência final – e, mesmo assim, não de uma forma extremamente explícita. A câmara focaliza o rosto do garoto Julien (Gaspard Manesse, nas fotos acima). Como escreveu Malle no seu roteiro (publicado como livro na França pela Gallimard e no Brasil pela Betrand Brasil):
“Julien fica um pouco à frente dos outros (meninos). Olha fixamente a porta vazia. Sobre seu rosto de criança, escuta-se uma voz de adulto.”
A voz de adulto, como se fosse a de Julien, conta para o espectador qual foi o destino de quatro dos personagens da história. E conclui:
“Mais de 40 anos se passaram, mas até minha morte eu me lembrarei de cada segundo dessa manhã de janeiro.”
O alter ego do diretor é um garoto inteligente, mas mimado, metido
Louis Malle nasceu em outubro de 1932. Em janeiro de 1944, estava portanto com 11 anos, exatamente a idade de seu alter-ego no filme, Julien Quentin. Exatamente como Julien, Malle, de família abastada, frequentou na infância um colégio interno mantido por padres católicos, nos arredores de Paris, na região de Fontainebleau. Padres do colégio em que Malle estudou ajudaram a Resistência e deram guarida a garotos judeus – exatamente como no filme.
Ao contrário do que muita gente faria, Malle não pinta Julien Quentin, seu alter-ego, como um garoto perfeito. Julien é inteligente, lê muito, tira boas notas, tem capacidade de liderança entre seus colegas de classe, mas é um tanto mimado, um tanto estragado pelo amor da mãe (interpretada por Francine Racette).
Na primeira seqüência do filme, os dois, mãe e filho, estão se despedindo em uma estação ferroviária de Paris; havia terminado o feriado de fim de ano, e diversos garotos estão embarcando em um trem que os levaria para os internatos. A mãe não dá muita bola para seu filho mais velho, François (Stanislas Carré de Malberg), que também está embarcando no mesmo trem, e estuda no mesmo colégio de Julien. E Julien gruda-se nela; não quer sair de baixo de sua saia, de seus carinhos.
(Em Um Sopro no Coração/Le Souffle au Coeur, de 1971, Malle havia contado a história de um amor incestuoso entre mãe e filho. Em Adeus, Meninos não há propriamente indicação de incesto, mas realça-se muito a relação de extremo carinho entre Julien e sua mãe.)
Só quando Julien finalmente embarca no trem surgem os créditos iniciais, e neles aparece “Écrit et realisé par Louis Malle”. Escrito e realizado por. É a primeira indicação de que este é um filme extremamente pessoal.
E então acompanhamos o dia-a-dia de Julien e seus colegas de internato, as aulas, as brincadeiras no recreio, as conversas.
O Julien que Malle vai mostrando é um garoto um tanto emproado, metido, demasiadamente seguro de si. Um filhinho de mamãe, como a gente dizia no ginásio. Um filhinho de mamãe rico e metido.
Quando os padres introduzem um aluno novo, recém-chegado, Jean Bonnet (Raphael Fejtö), que passará a estudar na classe de Julien, a primeira reação deste é de curiosidade. Como sempre acontece, os veteranos vão fazer gozações com o novato, encher o saco dele. Se fosse hoje, seriam todos condenados por bullying, mas essas coisas não pareciam existir na França de 1944.
Julien não é dos que ficam infernizando a vida de Jean. Mas, à medida em que o novato vai demonstrando que é inteligente, bom em todas as matérias, bom até mesmo no piano nas aulas com a belíssima srta. Davenne (interpretada pela esplendorosa Irène Jacob), e, além de tudo, parece um protegido dos padres, Julien passa a ver em Jean um rival. Na verdade, tem pelo outro sentimentos mistos, misturados: alguma inveja, alguma admiração. E uma grande curiosidade sobre ele. Faz perguntas a Jean sobre seus pais, sua origem, sua cidade. Acabará fuçando nas coisas dele, no armário do outro, quando o outro não está no dormitório.
E descobrirá que o nome Bonnet é falso. O verdadeiro sobrenome do garoto é Kippelstein.
Uma narrativa em tom menor, sem momentos de explosão
Toda a narrativa de Adeus, Meninos é extremamente simples, como que em tom menor. Como se Malle quisesse passar longe tanto de sentimentalismo quanto de momentos de explosões dramáticas.
O perigo, as ameaças, vão surgindo pouco a pouco, quase furtivamente, sub-repticiamente.
Mesmo em duas seqüências antológicas, Malle como que procura não realçar o perigo. A primeira é a sequência do jogo de caça ao tesouro numa floresta. Julien e Jean se perdem dos colegas e de repente se vêem sozinhos; quando encontram finalmente uma estrada, são encontrados por um jipe ocupado por nazistas. Percebe-se o pavor de Jean, mas naquele momento nada de dramático acontece: os nazistas levam os dois garotos de volta para a escola.
A segunda é a do almoço dominical de Julien e o irmão François com a mãe que vai visita-los e os leva a um restaurante elegante, caro; Julien, num impulso, pede à mãe que convide também Jean. No restaurante, perto deles, há uma grande mesa ocupada por oficiais nazistas. E ainda entram no lugar dois franceses, milicianos colaboracionistas. Jean teme o pior, e o espectador também – mas o alarme é falso.
“Um contraste entre o local agradável e o feio comportamento dos humanos”
Louis Malle ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza por Adeus, Meninos. Foram duas indicações ao Oscar: o de melhor filme estrangeiro (perdeu para A Festa de Babette) e o de melhor roteiro (perdeu para Feitiço da Lua, uma bobagem).
No total, o filme recebeu 26 prêmios e outras 11 indicações. Entre os prêmios, levou o Bafta de melhor direção, e sete Césars, incluindo filme, direção, roteiro, fotografia e montagem.
O livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer diz que Malle “não está preocupado com melodramas de guerra ao estilo de Hollywood, mas com a vida da escola, os obstáculos diários e as descobertas, os hábitos excêntricos dos professores, as amizades e as suspeitas. A guerra se faz presente através dos avisos de ataques aéreos e no quebra-cabeças de que os ocupantes nazistas são, como qualquer outro grupo, uma mistura perigosa de valentões e cavalheiros”.
E prossegue: “Malle genuinamente nos mostra tudo isso através da visão muito aguçada, mas ainda não formada, do menino, e os desempenhos de Manesse e Fejtö são emocionantes na medida certa, por causa da honestidade flagrante que compensa a falta de conhecimentos técnicos. O mais pessoal de seus filmes, Adeus, Meninos ganhou um enorme número de prêmios internacionais.”
O crítico escolhido para fazer a resenha do filme no Guide des Films de Jean Tulard escreveu um longo texto, em que faz uma sinopse, lembra que foi o primeiro filme de Malle na sua volta à França, que o filme francês anterior do realizador havia sido Lacombe Lucien. Mas termina por acusar o filme de algo que não vi nele, de forma alguma: maniqueísmo. “Sua visão dos franceses sob a bota nazista roça o maniqueísmo: os bons (os judeus, a Igreja), os maus (os nazistas, a burguesia industrial que cuida das suas ocupações como se nada tivesse mudado, os colaboracionistas); ela não oferece espaço algum para a ambiguidade, ao enfrentamento de idéias preconcebidas, de tabus”.
Cada pessoa, uma sentença. O 1001 Filmes chama a atenção para o fato de que até entre os ocupantes nazistas há valentões e cavalheiros; o crítico do Guide des Films vê maniqueísmo – que eu não vi hora nenhuma.
Diz o livro Off-Hollywood Movies, de Richard Skorman, que dá ao filme 5 estrelas, a cotação máxima: “Passada no idílico campo francês perto de Fontainebleau, Au Revoir les Enfants é fotografado para parecer suavemente belo, quase como num sonho. O contraste entre o local agradável e o feio comportamento dos humanos que o habitam é muito efetivo, mas às vezes a fotografia luxuosa esconde algumas das mais profundas emoções do filme.”
E mais: “O que não se esconde são as questões morais que surgem da vida cotidiana daquelas crianças pegas na guerra dos adultos. Os dois personagens centrais são compreensivelmente imperfeitos, mas Malle toma o cuidado de simplificar suas emoções ou transformá-los em meios de trazer à tona o sentimentalismo. Com seu alter ego Julien, Malle brilhantemente simboliza a inocência que podia ser tão perigosa durante esse período negro da história francesa.”
Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4, e fez uma frase que me parece absolutamente correta: “Cheio de detalhes tocantes, a história vai se revelando em um ritmo deliberado, até chegar ao final emocionalmente devastador”.
Um extraordinário talento na escolha dos atores
Não dá para concluir esta anotação sem falar do brilhantismo da escolha do elenco. Gaspard Manesse, o garoto que faz o papel de Julien, um rosto bem bonito, tinha 12 anos em 1987 e nunca havia trabalhado no cinema antes; faria depois apenas três outros filmes. Raphael Fejtö (na foto abaixo) tinha 13 anos em 1987, e nenhuma experiência anterior; só trabalharia como ator em um curta-metragem de 1996. No entanto, manteve uma carreira no cinema, tendo escrito e dirigido um curta e dois longas, entre 1996 e 2007.
Francine Racette, que faz a mãe de Julien, já havia trabalhado em dez filmes anteriormente. Mas Adeus, Meninos foi seu último filme, o que é bastante estranho. É uma bela mulher, e tinha talento.
Foi o primeiro longa-metragem de Irène Jacob, essa atriz de extraordinária, acachapante beleza, e que tem uma filmografia de quase 50 títulos, entre eles dois de Krzysztof Kieslowski (A Vida Dupla de Véronique e A Fraternidade é Vermelha).
Que fantásticos olhos tinham os responsáveis pela escolha de elenco de Adeus, Meninos.
Um filmaço. Uma obra-prima.
Anotação em outubro de 2012
Adeus, Meninos/Au Revoir les Enfants
De Louis Malle, França-Alemanha Ocidental, 1987
Com Gaspard Manesse (Julien Quentin), Raphael Fejtö (Jean Bonnet),
e Francine Racette (Madame Quentin), Stanislas Carré de Malberg (François Quentin), Philippe Morier-Genoud (Padre Jean), François Berléand (Padre Michel), François Négret (Joseph), Peter Fitz (Muller). Irène Jacob (srta. Davenne)
Argumento e roteiro Louis Malle
Fotografia Renato Berta
Produção Nouvelles Éditions de Films (NEF), MK2 Productions, Stella Film, N.E.F. Filmproduktion und Vertriebs, Centre National de la Cinématographie (CNC).
Cor, 104 min
R, ****
Filme lindo! Quando o assisti em vídeo, faz mais de dez anos, gostei ainda do uso das cores – muito azul, verde, algum cinza, se não me equivoco; pareceu-me que o colorido contribuía também para a contenção, a sobriedade do filme para contar uma história real, dramática, mas que poderia ter descambado no sensacionalismo e na panfletagem com outro diretor.
Sem dúvida alguma, um filmaço !!!
Realmente esse fato na história da França , isso nunca vai ser esquecido. É uma mancha que ” alvejante ” nenhum irá apagar . Muito triste mesmo.
Dá raiva de ver a atitude daquele padre na hora da comunhão. Assim como a atitude daquela freira, irmã, madre, seja lá o que aquela infeliz era quando avisa ao soldado alemão sôbre o menino na cama.
Tipo da coisa mais nojenta até do que os malditos ” chucrutes ” .
“É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha , que um rico entrar no reino do senhor” – “E agora ricos, chorem e gritem pois as infelicidades chegarão , sua riqueza está podre e suas roupas foram comidas pelos vermes” . ( ??? ) Hum . . . então tá . . .
Também vi “A Chave de Sarah” e gostei demais.
Gostei muito dos personagens,Julien e Bonnet.
Concordo contigo quanto a atriz Irène Jacob e assisti esses dois filmaços com ela , ” A dupla Vida de Veronique ” e “A Fraternidade é Vermelha”.
Consegui e vou assistir agora outro filme do Louis Malle, “Ascensor Para o Cadafalso” .
Um abraço, !!
Relendo esta página , notei que quando dei minha opinião, esqueci de dizer que já tinha visto “Lacombe Lucien” , no dia 03 deste mes.
Gostei do filme.
Já vi também, “Ascensor Para o Cadafalso” e gostei, apesar de alguns deslizes.
Meu Deus , Jeanne Moreau lindíssima.
Um abraço !!
Certamente, um erro de digitação não corrigido: o texto afirma que o ator Raphael Fejtö tinha 13 anos em 1987 e já havia feito um curta-metragem em 1966 (antes de ter nascido, portanto). Quanto ao filme, um filmaço, um dos pontos culminantes de Louis Malle, um diretor de muitos pontos culminantes.
Muito obrigado pelo comentário – e por chamar minha atenção para o erro na data. Sem dúvida, o curta-metragem que o rapaz fez foi em 1996. Já fiz a correção.
De novo, muito obrigado!
Sérgio