Mais uma pequena pérola do cinema argentino. Uma pepitinha, uma gema.
O país se afunda em eterna crise econômica; como vários de seus vizinhos, eles elegem governos de merda. Mas como sabem fazer cinema, nuestros hermanos. Filhos da mãe.
Mais um diretor talentoso: Sebastián Borensztein, chama-se ele. Não o conhecia, nunca tinha ouvido falar nele. É também o autor do argumento e do roteiro.
Beleza de idéia de argumento, beleza de roteiro.
Um letreiro avisa: “Esta história se baseia em fatos reais”.
Começa na China – uma paisagem idílica de uma China de histórias antigas, de fábula, de ficção, talvez desses filmes chineses de capa-e-espada, tipo Herói ou O Tigre e o Dragão.
No meio de um mui gracioso lago, num pequeno barco, um homem e uma mulher, um jovem china e uma jovem china, em roupa china de gala. O rapaz pega as alianças – vai propor casamento à amada.
Uma vaca cai do céu sobre o pequeno barco.
E aí – fade out, a tela fica toda preta durante alguns segundos. Surgem caracteres chineses, provavelmente com o título do filme em chinês – mas como é que a gente vai saber? E o título em espanhol, Un Cuento Chino. Só isso, mais nenhum crédito inicial – e em seguida vemos a fachada de uma pequena loja, numa rua qualquer de cidade. Não uma rua de muito comércio, extremamente movimentada – uma rua de bairro, com diversas casas e algumas poucas lojas.
Está tudo de cabeça para baixo. Claro: se a câmara estava na China, mostra a loja de cabeça para baixo.
A câmara gira no sentido horário, até que o quadro aparece direito, o céu para cima, o chão para baixo. Um letreiro informa: Buenos Aires, Argentina.
É uma ferreteria, como informam as letras no vidro: Ferreteria De Cesare. Uma loja de ferragens.
A câmara faz um zoom em direção à loja. Lá dentro, o proprietário, comprador, vendedor, caixa, o único funcionário faz-tudo que é também o dono, Roberto (interpretado por um Ricardo Darín com o cabelo cortado bem curto) conta os parafusos de uma caixa que acabou de abrir. Vai contando, até chegar a 323.
Roberto, cara de muito puto da vida, fala alto sozinho: “Outra vez me ferrei, cacete!”
Na tomada seguinte, Roberto está falando ao telefone, muito irado, muito puto dentro das calças: – “A caixa diz 350 parafusos Philips, indústria argentina. (Rápida pausa.) É claro que eu conto! Por que não contaria? A caixa diz 350!”.
Um sujeito maníaco, obsessivo, metódico até as raias da loucura. E solitário
Nas seqüências seguintes, o diretor Sebastián Borensztein, com talento, e a ajuda de Ricardo Darín, esse grande ator, nos mostra quem é Roberto, o dono da loja de ferragens. É um maníaco, um obsessivo. Metódico até as raias da loucura. Faz todo dia tudo sempre igual; apaga a luz ao lado da cama exatamente às 23 horas, levanta-se à mesma hora de sempre, prepara o café da manhã sempre igual todos os dias à mesma hora de sempre. É tremendamente mal humorado, o tempo todo; em cada frase que fala, há pelo menos três palavrões. Não acha graça em absolutamente nada.
Está profundamente habituado à solidão. Vê-se que viveu toda a vida sozinho – e está perfeitamente adaptado à vida solitária.
Os vizinhos, o pessoal do bairro, todos sabem que Roberto é daquele jeito mesmo, e o respeitam, e gostam dele – mas ele reage aos vizinhos, mesmo os que fazem favores, como levar jornais antigos para a loja, com o mau humor de sempre. Parece desconhecer a palavra “obrigado”.
A cunhada de um dos vizinhos, Mari (Muriel Santa Ana), que mora no interior, no campo, está visitando a irmã. Vemos de cara que ela tem uma queda pelo tipo – mas ele não está nem aí para Mari, ou para qualquer outra pessoa. Não sabe como conversar com a moça. Não sabe se relacionar com os outros.
Em suma: é um urso. Um perfeito urso.
Mora atrás da loja de ferragens. Vive a imensa maior parte do tempo ali, naquele único imóvel.
O único hobby que tem é dar uma olhada rápida nos jornais. Veremos que gosta de notícias estranhas, esquisitas, absurdas.
Quando o filme está com 15 minutos, cai um chinês na vida de Roberto, o urso solitário
Nos fins de semana, compra flores na mesma floricultura de sempre, perto de um cemitério, e as deposita no túmulo de seus pais.
E às vezes estaciona seu carro perto do aeroporto, senta-se numa cadeira dobrável que traz de casa e fica ali um tempo.
Quando estamos com exatos 15 minutos de filme, cai um chinês na vida de Roberto, o urso que não tem amigos e detesta que os outros perturbem sua eterna solidão.
O chinês cai na vida de Roberto como se houvesse caído do céu, como a vaca havia caído sobre o barco dos namorados na paisagem de fantasia de uma China que parecia mais lenda que verdade.
Passa um avião sobre Roberto. Segundos depois, de um táxi que pára perto de onde Roberto está o chinês é botado para fora, cai no chão, a poucos passos do urso solitário.
É jovem, deve ter aí uns 25 anos. É o mesmo ator – Ignacio Huang – que havíamos visto na abertura, na província chinesa que parece de fantasia.
Chama-se (veremos bem mais tarde) Jun. Não fala uma palavra de espanhol, nem de qualquer outra língua menos bárbara que o mandarim.
Roberto, o urso, obviamente não fala uma palavra de mandarim.
Um Conto Chinês tem o mesmo tipo de humor dos primeiros filmes de Jim Jarmusch
Eu seria capaz de apostar algum dinheiro que Sebastián Borensztein viu muito Jim Jarmusch na vida, em especial os primeiros, Estranhos no Paraíso, Down by Law, Trem Mistério.
Um Conto Chinês tem o mesmo tipo de humor dos primeiros Jarmusch. É um filme minimalista, feito de repetições de ações. O humor é fino, inteligente. Não é uma comédia que provoca gargalhadas, de forma alguma – a não ser em duas ocasiões especiais. É uma comédia que deixa o espectador com um permanente sorriso na cara, o tempo todo.
Esse tom de humor fino, cerebral, que o diretor Borensztein imprime à sua narrativa é reforçado pela excelente trilha sonora de Lucio Godoy, feita sob medida, ela própria um tanto irônica, suavemente debochada, e pelas interpretações de todo o elenco. Darín, esse sujeito que, como diz a Mary, deve fazer uns cinco filmes por ano, está ótimo, no ponto exato, na sintonia mais fina que pode haver. Se exagerasse um pouco mais, ficaria caricato. Se atuasse mais sutilmente, diminuiria a graça.
Esse Ignacio Huang também vem na medida certa. Teve enorme sorte o diretor de encontrar um ator descendente de chineses, com domínio do mandarim, e que tem talento.
E Muriel Santa Ana, como Mari, é outro grande achado.
Dois momentos hilariantes. No resto do tempo, um humor minimalista, suave
Ah, sim. Mencionei duas ocasiões especiais em que o filme deixa de lado aquela coisa minimalista da graça cerebral e parte para a comédia debochada, escancarada. São duas seqüências que têm a ver com o hobby de Roberto, a coisa de ele dar uma olhada nos jornais à procura de notícias bizarras. Esse hobby acabará se revelando o cerne da trama.
Uma é uma notícia sobre um acidente de carro que acontece quando um casal está trepando. Roberto se imagina no lugar do homem do acidente, com Mari como a mulher. É uma sequência bem rápida, e hilariante. A outra notícia – que teria acontecido numa remota cidadezinha da Romênia, envolvendo um barbeiro – também faz Roberto se imaginar na figura do protagonista da história, e é de deixar o espectador sem fôlego de tanto gargalhar.
Mas são só esses dois momentos. Em todo o resto da narrativa, Sebastián Borensztein vai de Jim Jarmusch: minimalista, suave, sempre engraçado – pero no tropo.
Um conto chinês mezzo filosófico, mezzo cômico
A primeira piada do filme é a tal frase que surge antes do início da ação: “Esta história se baseia em fatos reais”. O fato real – vaca caindo do céu sobre barco – aconteceu envolvendo ladrões russos e um pesqueiro japonês, conforme o filme mostra nos créditos finais. A partir dessa notícia bizarra, Borensztein bolou seu conto chinês – mezzo cômico, mezzo filosófico, sobre o que, enfim, rege a vida das pessoas, sobre o propósito ou a falta de propósito das peças que nos prega o destino.
Sebastián Borensztein nasceu eu Buenos Aires, em 1963. Começou a carreira de diretor na TV em 1997: dirigiu quatro minisséries. Um Conto Chinês é seu terceiro longa-metragem, depois de La Suerte está Echada, de 2005, e Sin memoria, de 2010, este feito no México.
O filme obteve 6 prêmios e outras 11 indicações. Venceu o Goya, o Oscar espanhol, na categoria de melhor filme ibero-americano. A Academia Argentina indicou o filme aos prêmios em 14 categorias; venceu três – melhor filme, melhor ator para Darín, melhor atriz coadjuvante para Muriel Santa Ana.
Delícia de filme. Daqueles que dão logo vontade de ver de novo.
Anotação em agosto de 2012
Um Conto Chinês/Um Cuento Chino
De Sebastián Borensztein, Argentina-Espanha, 2011.
Com Ricardo Darín (Roberto), Ignacio Huang (Jun),
Muriel Santa Ana (Mari), Enric Cambray (Roberto jovem), Iván Romanelli (Leonel)
Argumento e roteiro Sebastián Borensztein
Fotografia Rolo Pulpeiro
Música Lucio Godoy
Produção Aliwood Mediterráneo Producciones, Castafiore Films, Gloriamundi Films, Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales. DVD Paris Filmes.
Cor, 93 min
***
Excelente resenha, assisti ja tem um tempo mas , bateu com minhas impressões. e deu vontade de ver de novo!
“Uma vaca cai do céu sobre o pequeno barco”
É a primeira vez que vejo uma VACA caindo do céu e servindo (muito bem) de gatilho para um filme. Filme, aliás, que é fantástico. Tudo isso que você escreveu de forma tão charmosa é verdade. Só merecia uma estrelinha a mais rs…
Um conto chinês é realmente incrível. Fiquei um pouco receoso de assistir a um filme em que uma vaca cai do céu. Pensei que fosse uma daquelas comédias exageradas e ridículas, mas é um filme não apenas engraçado mas também senísivel e as respostas no final do filme são surpreendentes!
olá, Sérgio! Filme bacana esse! Me lembrei de Amelie Poulin e da personagem de Jack Nicholson em Melhor impossível. O tom do humor fino que vc cita em outros filmes (esses não vi)me remeteram imediatamente ao filme da Amelie, assim como me pareceu haver um misto entre Roberto e as personagens dos filmes de que me lembrei. Vc consegue ver algo semelhante ou eu viajei?
abraço