A Nau dos Insensatos / Ship of Fools

0.5 out of 5.0 stars

A Nau dos Insensatos, no original Ship of Fools, foi dirigido por Stanley Kramer, autor de filmes excelentes e importantes, como, para citar apenas dois, Julgamento em Nuremberg e Acorrentados. Tem grandes atores no elenco: Oskar Werner, Simone Signoret, Vivien Leigh, José Ferrer. Teve oito indicações ao Oscar de 1965, inclusive as de melhor filme e melhor roteiro, e recebeu dois prêmios da Academia.

Tem grandes admiradores.

Pois achei o filme um horror, um pavor. Não um filme mediano, ou fraquinho. Mas uma bomba, uma porcaria.


Claro: é um filme bem intencionado. Pretende ser uma parábola sobre como a sociedade alemã – e o mundo – permitiram o crescimento do nazismo. Algo como O Ovo da Serpente, que Bergman faria em 1977, a meu ver com brilhantismo, e que Michael Haneke faria com competência mas um excesso de nariz empinado em A Fita Branca, de 2009.

A idéia é mostrar um transatlântico que faz a viagem Veracruz, no México, rumo à Alemanha, no início dos anos 30, pouco antes de Hitler assumir o poder, como um microcosmo que espelha o mundo.

Vou começar com informações objetivas e outras opiniões, deixando os meus pitacos para depois.

Baseado em romance premiado e best-seller, adaptado por um roteirista de primeira

O filme se baseia em um romance de Katherine Anne Porter (1890-1980), jornalista, ensaísta, escritora e ativista política americana, prêmio Pulitzer de ficção em 1966 pelo livro The Collected Stories. O livro Ship of Fools, seu único romance, lançado em 1962, foi o mais vendido do ano nos Estados Unidos; o filme de Kramer é de 1965.

O autor do roteiro foi Abby Mann, que começou como escritor de peças para a TV e, já na primeira experiência de escrever para o cinema, ganhou o Oscar, pelo extraordinário roteiro de Julgamento em Nuremberg (1961). Trabalharia em seguida com Vittorio De Sica (Os Condenados de Altona, 1962) e depois de novo com Stanley Kramer, produtor de Minha Esperança é Você/A Child is Waiting (1963) e neste A Nau dos Insensatos.

Além das indicações ao Oscar de melhor filme e melhor roteiro, A Nau dos Insensatos concorreu aos prêmios de melhor ator para Oskar Werner, melhor atriz para Simone Signoret (na foto abaixo), melhor ator coadjuvante para Michael Dunn e melhor figurino em preto-e-branco para Bill Thomas e Jean Louis.

Venceu os prêmios da academia de fotografia em preto-e-branco para Ernest Laszlo e direção de arte/decoração em preto-e-branco, de Robert Clatworthy e Joseph Kish,

Em alguns guias cotação máxima, grandes elogios às interpretações

Leonard Maltin deu a cotação máxima, 4 estrelas: “Grand Hotel no mar nos dias anteriores à Segunda Guerra Mundial. Elenco soberbo inclui (Vivien) Leigh, em seu último filme, como uma divorciada desiludida, (Oskar) Werner e (Simone) Signoret como amantes ilícitos, (Lee) Marvin como briguento  jogador de beisebol. Drama penetrante, quando vira dramalhão.”

(Para lembrar: Grand Hotel havia sido um tremendo sucesso em 1932, reunindo o que era, até o então, o maior número de astros em um único filme. Costuma-se usar o exemplo de Grand Hotel para filmes assim, que reúnem no elenco um porrilhão de atores muito famosos.)

O Video Movie Guide de Mick Martin e Marsha Porter crava também a cotação máxima, 5 estrelas. Diz que o elenco cheio de estrelas tem excelentes interpretações – e chama a atenção para Vivien Leigh, Oskar Werner, Simone Signoret e Lee Marvin.

Me pergunto se a Academia e Maltin e a dupla Martin & Porter, de um lado, e eu, de outro, vimos o mesmo filme, porque eu achei as interpretações – todas – péssimas, grotescas. Mas ainda não é a hora dar minhas opiniões. (Na foto abaixo, Lee Marvin e Michael Dunn.)

“Kramer e Mann nos dão os jantares festivos como antecipações das câmaras de gás”

Dame Pauline Kael não gostou tanto assim – mas ela é exigente demais, e mesmo quando gosta de um filme lança sobre ele boa dose de sarcasmo. Como Sérgio Augusto não incluiu o filme na edição brasileira de 1001 Noites no Cinema, sobra pra mim a tarefa de enfrentar o texto da rainha da crítica americana. É mais ou menos assim:

“Um navio alemão viajando de Veracruz para Bremerhaven – um transatlântico Grand Hotel. A novela de Katherine Anne Porter se passava em 1931, e embora ela explicasse que o título se referia à “simples e quase universal imagem do navio deste mundo em sua viagem para a eternidade” (acrescentando: “Eu sou uma passageira deste navio”), sua nave era também um microcosmo do mundo pré-nazismo, e o diretor Stanley Kramer e o roteirista Abby Mann mudaram a data para 1933 e transformaram a concepção dela em um cartoon pomposo. Os tolos são aqueles que não vêm o que está vindo, e nós temos o dever de observar como as falhas dos passageiros irão levar ao Holocausto; Kramer e Mann nos dão os jantares festivos como antecipações das câmaras de gás. O filme é stacatto, em voz alta, e cru, e os relacionamentos do livro são deformados. O embaraço sexual central da novela é aquela dos dois jovens artistas – Jenny, que está tentando ser livre, e o puritano David, que deseja ser dono dela. No filme, o David de George Segal (criado, Abby Mann admitiu, a partir dele próprio) é um artista proletário de grande vitalidade animal que está sendo mantido pela neurótica, puta rita Jenny (Elizabeth Ashley). Ela tem ciúme da genialidade dele, e ele cobra dela com frases como ‘Você é tão competitiva. Você é tão cheia de Deus sabe que tipo de doença’. Pode-se apreciar o filme rindo de seu lixo florido, tais como os amantes condenados – o médico do navio (Oskar Werner) sorrindo nebulosamente, e compadecidamente dando injeções e amor de adoração para la Condesa (Simone Signoret), que o encontrou tarde demais. (O médico: ‘Você é tão estranha – às vezes tão amarga, e depois suave e cálida como uma criança’. La Condesa: ‘Sou apenas uma mulher’.) O elenco internacional inclui Vivien Leigh como uma divorciada que está ficando velha (esta talvez seja sua atuação mais embaraçosa – ela parece um Pinocchio estúpido), e Lee Marvin como um jogador de beisebol cômico, José Ferrer como um homem de negócios alemão que odeia judeus, Michael Dunn, Jose Greco, Charles Korvin, Lilia Skala, Heinz Ruhmann, Werner Klemperer, Alf Kjellin, e Kaaren Verne. Recebido com entusiasmo generalizado pela imprensa como ‘poderoso’.”

“Uma avalanche de clichês e chavões. Para fugir”

Hum… Me parece que não estou sozinho. Mas é bom ver mais opiniões.

O guia de Steven H. Scheuer dá 2.5 estrelas em 4. Diz que a adaptação de Stanley Kramer para o romance de Katherine Anne Porter “reduz as ironias dela a clichês sobre os perigos morais do apaziguamento social”. Hum… “Apaziguamento?” Deve haver palavra melhor para appeasement. Bem, o dicionário da Longman especifica que na Grã-Bretanha a palavra appeasement é usada em especial com relação à política britânica de não confrontação, não enfrentamento, com Hitler antes do início da Segunda Guerra. Aí faz sentido. Tolerância, convivência sem enfrentamento, confrontação. (Na foto, Vivien Leigh.)

Começa a melhorar. E aí – ahá: eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard:

“A vida dos passageiros a bordo de um navio que ruma em 1933 de Veracruz para Brêmen. Avalanche de clichês e chavões. O filme se baseia num romance de Katherine Anne Porter que parecia mais incisivo. Para fugir.”

Epa: não estou sozinho! Ainda não fiquei completamente louco!

Como é mesmo, mestre Tulard? Avalanche de clichês e chavões? Para fugir?

É, é isso mesmo que ele diz: A fugir!

Não são personagens, seres humanos – são estereótipos

 

 

 

 

 

 

 

Depois do que dizem Pauline Kael e Jean Tulard, acho que há pouco para eu acrescentar.

Sim, o que vi foi um imenso amontado de clichês, de chavões. Os personagens não são pessoas – são protótipos, estereótipos. O alemão supremacista a não mais poder – o papel de José Ferrer.

O judeu alemão interpretado por Heinz Ruhmann, que se acha mais alemão que judeu, e garante que não haverá grandes problemas: afinal, o que eles vão fazer com mais de 500 mil alemães judeus? Não vão matar todos!

O americano grandalhão bobão que só pensa em beisebol e comer uma daquelas espanholinhas – o papel de Lee Marvin.

A americana divorciada que está ficando velha, solitária, amarga e bêbada – pobre Vivien Leigh, que triste despedida!

A alemoa germanicamente lindérrima, gostosa e atlética, que dá bola para o racista rico, mas, quando ele avança pra valer, tasca-lhe o braço – o papel da barbiemente perfeita Christiane Schmidtmer (na foto acima com José Ferrer).

O médico do navio, boa pessoa, mas perdido em dúvidas existenciais, que se apaixonará pela condessa, mas não terá coragem de romper os laços que o ligam à mulher que não ama mais – pobre Oskar Werner, que triste experiência para um ator que trabalhou com François Truffaut em Jules et Jim e em Fahrenheit 451!

E há também o anão, interpretado por Michael Dunn. Numa tentativa de anti-clichê que só reforça a avalanche de clichês, o personagem do anão, Glocken, é pequeno por fora mas grande por dentro. É ele – como se fosse o coro de uma tragédia grega – que avisa o espectador, logo no início da narrativa, que aquele é um navio de tolos. Para, ao final, dizer a moral da história.

O alemão mais racista é grande, altão; o personagem que tudo vê, tudo percebe, é anão. Uma metáfora do tamanho de um elefante.

Tudo estereótipo, tudo clichê – e todos falando frases feitas que parecem para os autores definitivas, a pedra filosofal, como se o roteiro tivesse sido escrito por um grupo ginasianos para apresentação no final do ano na escola ruim.

E todos esses atores de belos currículos em interpretações ridículas, exageradas, tonitruantes, careteiras, como se estivessem participando da Escolinha do Professor Raimundo!

Ah, quase ia me esquecendo de mencionar. O filme dura 149 longos, intermináveis minutos. Duas horas e meia. Nada contra um filme de duas horas e meia – desde que seja bom. Quando o filme é bom, duas e meia passam depressa demais, como se estivéssemos confortavelmente instalados no melhor sofá do mundo. Quando o filme é ruim, é como se estivéssemos sentados em cima da brasa da churrasqueira. (Na foto abaixo, George Segal e Elizabeth Ashley.)

Como é possível que o diretor e o roteirista de Julgamento em Nuremberg tenham feito isto?

 

 

 

 

 

 

 

 

Ver A Nau dos Insensatos agora, depois de velho (por algum motivo, nunca tinha o filme antes), foi uma das experiências mais chocantes deste veterano assistidor de filmes nos últimos tempos. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo. Sou fã de carteirinha de Stanley Kramer, acho Julgamento em Nuremberg um dos maiores filmes da História. Quanto menos eu acreditava no que estava vendo, mais o filme ia piorando.

Como é possível que o diretor de Julgamento em Nuremberg, que o roteirista de Julgamento em Nuremberg tenham feito isso?

Não sei. Mistério neste mundo de mistérios. O que sei é que mestre Jean Tulard está certíssimo: a fugir! A fugir, a passar longe desta porcaria!

Anotação em julho de 2012

A Nau dos Insensatos/Ship of Fools

De Stanley Kramer, EUA, 1965.

Com Oskar Werner (Dr. Schumann), Simone Signoret (La Condesa), Vivien Leigh (Mary Treadwell), José Ferrer (Rieber), Lee Marvin (Tenny), Elizabeth Ashley (Jenny), George Segal (David), Jose Greco (Pepe), Michael Dunn (Glocken), Charles Korvin (capitão Thiele), Heinz Ruhmann (Lowenthal), Lilia Skala (Frau Hutten), Barbara Luna (Amparo), Christiane Schmidtmer (Lizzi), Alf Kjellin (Freytag)

Roteiro Abby Mann

Baseado no romance de Katherine Anne Porter

Fotografia Ernest Laszlo

Música Ernest Gold

Direção de arte Robert Clatworthy e Joseph Kish

Produção Stanley Kramer, Columbia Pictures. DVD Paragon Multimedia.

P&B, 149 min

1/2

Título na França: La Nef des Fous

 

8 Comentários para “A Nau dos Insensatos / Ship of Fools”

  1. Não podia estar mais em desacordo, caro Sérgio. “Ship of Fools” é um grande filme, recheado de enormissimos actores. Tenho-o revisto ao longo dos anos, sempre com grande prazer

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