Nota:
Flor de Neve e o Leque Secreto tem belezas – belezas estranhas. É belo – e estranho – como devem ser belas as manhãs em Mercúrio, ou os entardeceres vistos de uma das luas de Saturno. É um filme tão distante de nós – ou de mim, pelo menos – quanto um planeta qualquer que gire em torno de uma das estrelas mais distantes da nossa galáxia.
La Cina è Vicina – este era o sonoro título de um filme de Marco Bellocchio dos anos 60. Para mim, não há mentira maior sob o sol, o nosso ou qualquer outro. A China não é vizinha, a China é um planeta mais distante do que o de uma estrela da galáxia mais distante da nossa.
A China é grego, é sânscrito, é plutonês, saturnês – ou mandarim, o que dá no mesmo. É um planeta distante, muito distante, e absolutamente incompreensível.
Um diretor que faz filmes absolutamente americanos e outros com um pé na sua China natal
Tenho grande admiração por Wayne Wang, o diretor de Flor de Neve. Ele nasceu em Hong Kong em 1949, então uma possessão britânica encravada na China continental que naquele ano exato se tornou a República Popular da China, após a vitória das forças comandadas por Mao Tsé-Tung contra as do Kuomitang de Chiang Kai-shek. Nunca viveu sob o regime comunista; deixou o enclave capitalista aos 17 anos de idade, e radicou-se nos Estados Unidos.
Como tantos outros realizadores estrangeiros que emigraram para os Estados Unidos – o italiano Frank Capra, os alemães Ernst Lubitsch, Robert Siodmak e Douglas Sirk, os austríacos Otto Preminger e Billy Wilder, o checo Milos Forman, para citar só alguns –, Wang fez filmes absolutamente americanos, tão americanos quanto o Tio Sam, a Coca-Cola e o McDonald’s.
É o caso, por exemplo, o díptico Cortina de Fumaça e Sem Fôlego, Encontro com o Amor ou Em Qualquer Outro Lugar.
Mas nunca deixou de lado por muito tempo suas origens chinesas. “Wang começou sua carreira pintando os costumes da comunidade sino-americana”, diz Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema. “Seus primeiros filmes, por causa dessa particularidade, ficaram restritos a pequena divulgação. O Clube da Felicidade e da Sorte, produzido por Oliver Stone e distribuído pela Columbia Pictures, deu-lhe prestígio internacional.”
O Clube da Felicidade e da Sorte, de 1993, baseou-se na novela de uma sino-americana, Amy Tan, sobre as vidas de quatro chinesas e suas filhas, estas crescidas nos Estados Unidos. Belo, sensível filme, tinha trilha sonora composta pela então jovem (33 anos!) mas já veterana no metiê Rachel Portman, uma extraordinária compositora inglesa.
Flor de Neve, de 2011, tem, como o filme de 1993, trilha sonora de Rachel Portman, e se baseia em uma novela de uma escritora sino-americana, Lisa See.
Entre esses dois filmes, Wang prosseguiu na sua duplicidade, ora fazendo filmes puramente americanos, ora abordando o país de origem de seus pais e antepassados. Entre Cortina de Fumaça e Em Qualquer Outro Lugar, fez, em 1997, O Último Entardecer/Chinese Box, um filme ambicioso, uma tentativa de grande afresco sobre Hong Kong, sua terra natal, que no final daquele ano deixava de pertencer ao Império Britânico e passava a pertencer ao Planeta China – embora com uma transição gradual de um universo para outro.
Em A Princesa de Nebraska, sobre a vida de uma jovem chinesa no interiorzão americano, deu com os burros n’água, na minha opinião. Mas, de novo falando sobre a vida de chineses nos EUA, acertou a mão no filme seguinte, Mil Anos de Orações.
Pela primeira vez, Wayne Wang filmou na China, em produção chinesa
Flor de Neve e o Leque Secreto é um mergulho profundo na China. Diferentemente de suas obras anteriores, o filme se passa inteiramente na China, foi filmado inteiramente na China, e a produção é chinesa. Os direitos de distribuição foram comprados pela Fox Searchlight, da Twentieth Century Fox, mas é uma produção chinesa – embora dirigido por um chinês que hoje é mais americano que chinês.
É possível que Wayne Wang tenha tentado compreender um pouco mais o país, perdão, o planeta de seus antepassados, quando resolveu fazer Flor de Neve e o Leque Secreto. Não sei se ele agora entende mais a China do que antes. Para mim, seu filme só reforça essa idéia que sempre tive, e que se consolida cada vez mais: a China é um planeta distante e incompreensível.
Na China comunista, um CEO brinda em inglês dois funcionários que vão ganhar muito dinheiro nos EUA
As primeiras imagens parecem ser de uma China de muitas décadas atrás: à luz de velas, uma mulher escreve em um leque. Mas aí surge uma tomada geral de uma moderna cidade, o skyline de arranha-céus moderníssimos. Poderia ser qualquer metrópole ocidental. Um letreiro especifica: “Xangai, nos dias de hoje”. E então temos a primeira sequência propriamente dita do filme: em um restaurante, reúnem-se pessoas do alto escalão de uma grande empresa – veremos depois que é um banco.
Todos estão vestidos em roupas ocidentais, e fala-se em inglês.
O chefão, o presidente, o CEO, sentado à cabeceira, como se deve, pede a palavra. E diz que alguns poderão pensar que ele está mandando Nina e Sebastian para Nova York para que eles não ocupem seu lugar. Isso é parcialmente verdade, acrescenta. Mas o fato é que ele escolheu os melhores para a tarefa – e Nina e Sebastian são os melhores.
E aí faz o brinde: – “Make us proud in New York. And make us a lot of money in New York!”
Péra, péra lá – como é que é? Deixe eu entender. Estamos em Xangai, República Popular da China, a China comunista, e um CEO fala em inglês, a língua dos imperialistas, dos decadentes capitalistas, e faz brinde aos melhores, e os manda para Nova York, o umbigo do capitalismo decadente, para que eles deixem todos na companhia orgulhosos, e encham o rabo deles de dinheiro?
Mas ali não é a República Popular em que todos são iguais, onde não há melhores? E que história é essa de fazer um monte de dinheiro? E não chega a polícia do Partido Comunista e prende todos aqueles reacionários, burgueses?
Definitivamente, já não se fazem…
Esta frase eu fiz quando Fernanda me contou sobre a imensa fila de mulheres chinesas que ela viu na calçada da Champs Elisées aguardando a hora de comprar uma milionária bolsa Louis Vitton (ou seria Chanel? ou Gucci?):
Definitivamente, já não se fazem mais comunistas como antigamente.
Na festa, um DJ toca um chacadum idêntico a qualquer ocidental
Perdão, perdão. Voltemos ao filme.
– “Façam-nos orgulhosos em Nova York. E façam um monte de dinheiro para nós em Nova York!”, brinda o jovem CEO do banco em Xangai, o maior centro financeiro da China, segunda potência econômica do mundo.
E então a câmara focaliza Sebastian (Archie Kao) e Nina (Bingbing Li, uma jovem atriz de grande beleza e talento).
Em seguida, após o jantar, o grupo comemora ouvindo a apresentação de duas cantoras e dançarinas chinesas em trajes típicos, enquanto, logo atrás delas, trabalha um DJ, provendo o som que mistura uma melodia que faz lembrar as tradicionais chinesas com um chacadum de qualquer DJ ocidental.
Na rua, do lado de fora do restaurante em que a alta cúpula do banco comemora, uma jovem liga de seu celular para Nina – mas ela não atende.
A jovem então sobe em sua bicicleta e arrisca-se nas grandes vias de Xangai repletas de um trânsito semelhante ao de São Paulo, Nova York, Los Angeles, Paris.
E é atropelada.
Toca o telefone de Nina – um smartphone idêntico a um iPhone, talvez um iPhone. É madrugada, Nina dorme ao lado do namorado. É de um hospital, para avisar sobre o acidente com Sophia (Gianna Jun). O último número para o qual o celular de Sophia havia ligado era aquele, e então a funcionária queria avisar.
Nina se veste às pressas, vai para o moderno, limpíssimo, primeiro-mundíssimo hospital em que Sophia está em coma.
Duas histórias paralelas indo e vindo no tempo, até o espectador ficar tonto
Flor de Neve e o Leque Secreto contará a história de Nina e Sophia indo e vindo no tempo, voltando atrás para 1997, quando elas eram adolescentes, e depois vindo de novo para 2010, e voltando atrás, e vindo de novo para 2010, até o espectador ficar tonto.
E, paralelamente à história de Nina e Sophia, vai contar também a história de Lírio e Flor de Neve, duas amigas, desde a época em que elas eram crianças, na província de Hunan, em 1829, até a velhice, sempre indo e voltando no tempo, até o espectador ficar tonto.
A história de Lírio e Flor de Neve é uma criação de Sophia. Sophia escreveu um livro passado em Hunan na primeira metade do século XIX, e agora, depois que ela se acidenta (de propósito? tentativa de suicídio?) na Xangai megalópe do século XXI, Nina lê o manuscrito, ao pé da cama em que a autora jaz em coma.
A atriz que faz Nina interpreta Lírio. A atriz que faz Sophia interpreta Flor de Neve.
Nina, Lírio, Sophia, Flor de Neve, Xangai 2010, Xangai 1997, província de Hunan em 1829, 1830 e daí em diante, tudo embaralhado, indo e vindo, indo e vindo.
Como se fosse muito fácil entender os costumes dos saturninos, ou dos mercurianos, ou dos plutônicos, ou dos venusianos, em uma história contada cronologicamente.
As meninas tinham seus pezinhos enfaixados para que não crescessem
No planeta China, ou, no mínimo, na província de Hunan, na primeira metade do século XIX, mulheres com pés extremamente pequenos eram um símbolo de status. E então as mães enfaixavam os pés de suas filhinhas fortemente, violentamente, e as faixas não podiam ser retiradas, para que os pés não crescessem. E as crianças eram submetidas à torturante experiência de ter que andar sentindo tremenda dor.
(Será que veio daí a expressão tortura chinesa?)
A tortura era tão violenta que, de fato, aquelas meninas cresciam com os pés menores do que deveriam ser. E passavam a andar com dificuldade, por toda a vida.
(Uma das produtoras do filme se chama Big Feet Productions. Deve ter a ver com a lógica – ou a ironia – chinesa.)
Outro costume era que algumas mulheres ali escreviam em uma língua secreta, chamada nu shu. Uma espécie de código, como a língua do P, ou a língua do trás-pra-frente, linpinguapa dopo pepê, ou do gualín-tefren-pra-trás, que só era conhecido pelas mulheres.
E as mulheres também tinham o costume de ter laotangs. As laotangs era irmãs para sempre, irmãs para toda a eternidade.
Flor de Neve e Lírio eram laotangs.
Quando eram crianças, na Xangai de 1997, Nina e Sophia ouviram da tia desta última as histórias antigas. E juraram que seriam, elas também, laotangs.
A tia diz que o amor entre as laotangs era muito diferente da relação entre as mulheres e seus maridos. Estas eram para fazer filhos. Aquelas eram muito, muito mais profundas, de almas gêmeas, de profunda comunhão.
Mary acha que aí vai mais que amizade. E quando, bem no início do filme, Sophia se lança numa suicida aventura pelas ruas congestionadas de Xangai após não ter conseguido falar com Nina, me pareceu mesmo uma coisa homo. Mas sei lá. Não sei absolutamente nada dos hábitos sexuais dos plutônicos, venusianos ou chineses.
Nu shu – uma linguagem antiga usada apenas por mulheres
Lisa See, autora do livro Flor de Neve e o Leque Secreto, escreveu em seu site oficial, explicando as origens de seu romance:
“Um dia, nos anos 1960, uma velha desmaiou numa estação de trem na China rural. Quando os policiais mexeram em seus pertences para tentar identificá-la, deram com papéis com o que parecia ser um código secreto escrito neles. Como isso aconteceu no auge da Revolução Cultural, a mulher foi presa sob a suspeita de ser espiã. Os especialistas que foram chamados a decifrar o código compreenderam quase de imediato que aquilo não tinha nada a ver com uma intriga internacional. Em vez disso, era uma linguagem escrita usada somente por mulheres, e que havia sido mantida como um ‘segredo’ por milhares de anos. Esses especialistas foram imediatamente mandados para campos de trabalho.
“Aquela linguagem secreta se chama nu shu – escrita de mulheres – , e eu ouvi falar dela pela primeira vez quando escrevi uma crítica do livro Aching for Beauty, de Wang Ping, para o Los Angeles Times. Fiquei intrigada e depois obcecada com o nu shu e a cultura que cresceu em torno dele. O nu shu não parece nada com o chinês escrito, que é pesado e quadrado. O nu shu é comprido, fino e frágil. Muita gente já disse que parece pernas de mosquito. Penso que de muitas formas tem a delicadeza das pegadas de pássaros.
“Ninguém conhece a verdadeira origem do nu shu, mas acredita-se que uma jovem da província de Hunan, que foi escolhida para ser a concubina do imperador, o inventou. Ela pensou que viveria uma vida privilegiada. Mas não estava preparada para sua solidão ou para as intrigas palacianas que a cercavam. A fim de poder escrever com sinceridade para sua mãe e suas irmãs sobre sua experiência, ela inventou o código.”
Um típico caso de Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar?
O romance Flor de Neve e o Leque Secreto, publicado em 2005, sucesso nos Estados Unidos, lançado no Brasil pela Rocco, conta a história de Flor de Neve e Lírio, narrada por esta última. Lírio nasceu em 1823, “o terceiro ano do reinado do imperador Daoguang”. A narrativa começa em 1903, quando Lírio está com 80 anos de idade, depois de ter vivido também nos reinados dos imperadores Xianfeng, Tongzhi e Guangxu. Ela conta a história de sua vida – ou, basicamente, a história de sua amizade com sua laotang Flor de Neve.
Não há, no romance (ao menos pelo que se vê na internet, já que não li o livro), as figuras de Nina e Sophia, jovens adolescentes na Xangai de 1997 e adultas em 2010. Elas parecem ser invenção dos roteiristas Angela Workman, Ron Bass e Michael K. Ray, sendo que, aparentemente, a primeira cometeu o texto básico, que foi revisado pelos dois seguintes.
Este é o típico caso do que chamo de Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar?
Seria uma parábola comparando a China imperial com a China de hoje?
Me pergunto se Wayne Wang terá compreendido melhor o Planeta de onde vieram seus pais, ao fazer este filme – seu primeiro filme produzido pelo país que nunca foi propriamente o seu.
No roteiro produzido a partir do romance de Lisa See, há abismos sociais, essa tremenda iniquidade que nenhuma civilização conseguiu até hoje extirpar.
Na primeira metade do século XIX, Lírio vem de uma família pobre, mas, por causa basicamente de seus pés pequenos, se casa com um homem muito rico, e torna-se portanto muito rica. A família de Flor de Neve era mais rica, mas a fortuna se perde devido ao vício de ópio do pai, e a jovem acaba se casando com um homem pobre – e, quando Lírio a revê, na sua casa extremamente humilde, fica chocada com tanta pobreza.
Em 1997, na República Popular da China, Sophia é uma emigrante coreana, e seu pai é rico, tem ações na Bolsa. A madrasta de Sophia não vê com bons olhos a amizade de sua enteada com Nina, chinesa letrada porém pobre, humilde. O pai de Sophia perde a fortuna com as oscilações da Bolsa (como se a China comunista fosse idêntica ao famigerado Império capitalista de 1929). Já Lírio, inteligente, esforçada, trabalhadora, sobe na vida velozmente, feito um cometa, feito se vivesse em pleno Sonho Americano, no capitalismo que permite que um pobre vire rico mesmo não sendo da nomenklatura governante.
Será que foi isso, essa incompreensível, doida, profundamente louca semelhança entre dois regimes econômicos antípodas, que atraiu esse chinês de Hong Kong que recebeu o prenome de Wayne porque seu pai era fã apaixonado do reacionaríssimo ator símbolo do western, o mais americano dos gêneros cinematográficos?, esse artista sensível que nunca viveu na China comunista mas que sempre procurou fazer filmes sobre chineses, ainda que desterrados, emigrados, distantes de suas raízes?
Estaria Wayne Wang interessado em dizer que a China imperial da primeira metade do século XIX tem muito a ver com a China comunisto-capitalista do século XXI?
“O mundo está sempre mudando. A cada dia ele está mudando. Tudo na vida está mudando”
Talvez a chave deste filme belo como o amanhecer em Mercúrio, ou Plutão, seja a frase que a voz da atriz Bingbing Li, que faz Nina e Lírio, fala em off:
– “O mundo está sempre mudando. A cada dia ele está mudando. Tudo na vida está mudando. Temos que olhar para dentro de nós mesmos para descobrir o que permanece o mesmo, como lealdade, a história que compartilhamos, e o amor de cada um pelo outro. Neles, a verdade do passado sobrevive.”
Talvez Wayne Wang estivesse defendendo uma tese parecida com a que adotei depois de velho, a de que as pessoas são muito, mas muito mais importantes que as ideologias, e as ideologias, os governos, conspiram contra a felicidade das pessoas, ou a possibilidade de as pessoas perseguirem a felicidade.
Mas não dá para garantir que seja isso, ou qualquer coisa parecida com isso.
Só dá para garantir que, Marco Bellocchio que nos perdõe, mas la Cina non è vicina. A China é um planeta distante e incompreensível.
Anotação em julho de 2012
Flor de Neve e o Leque Secreto/Snow Flower and the Secret Fan
De Wayne Wang, EUA-China, 2011
Com Bingbing Li (Nina / Lírio), Gianna Jun (Flor de Neve / Sophia),
Vivian Wu (tia), Hu Qing Yun (sra. Liao), Shi Ping Cao (sr. Wei),
Ruijia Zhang (sra. Wei), Congmeng Guo (pequena Lirio), Danping Shen (mãe de Lírio), Yan Dai (pequena Flor de Neve), Yulan Xu (mãe de Flor de Neve), Coco Chiang (Anna), Archie Kao (Sebastian), Russell Wong (o presidente do banco)
Roteiro Angela Workman, Ron Bass e Michael K. Ray
Baseado no livro homônimo de Lisa See
Fotografia Richard Wong
Música Rachel Portman
Produção IDG China Media e Big Feet Productions. DVD Paris Filmes.
Cor, 104 min
**1/2
Amo esse filme!!