Flor do Deserto / Desert Flower

3.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2011: É muito bom, este Flor do Deserto. Tem um ou outro pequeno defeitinho, coisa pouca. Mas, sobretudo, é um filme importante, necessário. Conta, e conta muito bem, uma história real – trágica e bela – que todas as pessoas deveriam conhecer.

O roteiro, escrito pela própria diretora, Sherry Hormann, se baseia na autobiografia de Waris Dirie, publicada em 1998, quando a autora tinha apenas 33 anos de idade. (Ela é também uma das produtores executivas do filme.) Apenas 33 anos – e uma trajetória de vida absolutamente impressionante, inimaginável, inconcebível até pelo mais ousado, louco ficcionista.

A história de vida de Waris Dirie concentra boa parte do que a humanidade consegue fazer de pior – e ao mesmo tempo transmite alguma esperança.

Poderia ser a fantástica história real de uma Cinderela – Waris nasceu no deserto da Somália, de uma família nômade, miserável, de 12 filhos, e antes dos 30 anos era uma topmodel, capa das revistas de moda mais importantes do mundo. Mas é muito pior – e ao mesmo tempo muito melhor – do que uma fantástica história real de Cinderela. Porque Waris foi – como centenas de milhares de mulheres africanas – submetida, quando bem criança, aos três anos de idade, a uma pavorosa, hedionda mutilação: teve o clítoris e parte dos lábios da vagina extirpados, e a vagina costurada. E, depois de famosa, virou uma ativista, denunciando ao mundo a prática tão horrenda quanto comum entre povos africanos.

Depois de 6 mil, aquele povo ficou como estava – ou pior

A trajetória de Waris ficou bastante conhecida, primeiro através de entrevistas às grandes revistas femininas, depois por seu depoimento às Nações Unidas, depois por sua autobiografia. Quanto mais pessoas tomarem conhecimento da história, melhor – e por isso o filme é extremamente bem-vindo, e é importante. E, felizmente, fizeram um bom filme.

Como roteirista, Sherry Hormann fez um belo trabalho. Poderia ter cedido à onda massacrante do que chamo de narrativa-laço, usada hoje em boa parte dos filmes: começamos quase pelo final, por, digamos, três dias atrás, para logo haver o flashback – voltamos atrás vários anos, e então vamos vindo para mais perto do presente, chegamos a três dias atrás e aí encerramos com o hoje.

Sherry Hormann preferiu começar por onde se começa: o começo. Vemos a garotinha Waris no deserto da Somália, no meio das cabras, a paisagem seca, a vida duríssima, sub-humana, um povo nômade como era nômade mais de seis mil, dez anos atrás – seis mil anos de civilização se passaram e aquele povo ficou exatamente como estava, ou talvez um pouco mais miserável ainda depois da exploração colonialista e de tantas guerras tribais.

Waris está aí com uns 12 anos de idade, e é interpretada por uma garotinha chamada Soraya Omar-Scego (na foto acima).

Depois de algumas poucas sequências no passado, no começo da história, corta, e estamos em Londres. Waris é uma jovem vestida nos trajes típicos de seu país, panos e mais panos, inclusive sobre a cabeça, como em todo o mundo muçulmano, só que panos coloridos, de cores fortes. Numa grande loja de departamentos, topa com uma vendedora, que depois veremos se chama Marylin – o papel de Sally Hawkins (na foto abaixo), a atriz que deu um show no filme de Mike Leigh de 2008, Simplesmente Feliz/Happy-Go-Lucky.

Waris vai grudar-se a Marylin como chiclete no sapato de um caminhante.

Gente simples, dotada de solidariedade

 

 

 

 

 

 

 

Marylin é uma figura louca e fascinante. Working class até a medula, fala um inglês de working class, é estabanada, de gestos largos, amplos, voz alta, beirando a estridência; trabalha como balconista para custear o hotelzinho-pensão barato em que mora, sonha em virar bailarina, embora, dotada de lucidez e autocrítica no meio da aparência meio louca, saiba que vai ser difícil transformar o sonho em realidade. Working class, pessoa simples, gente humilde, gente como a gente, é também dotada de um sentimento que ainda existe em grande escala no planeta, embora a imensa maioria dos filmes prefira focalizar bandidos ou super-heróis – a solidariedade. Admite dividir seu quarto com a africana que mal fala inglês, só por um dia – e é claro que o único dia vai virando semanas e semanas.

Tendo tido a desgraça de nascer no coração da miséria da Somália, e mulher, tendo sido vítima de um tradicional costume criminoso, Waris foi porém abençoada com algumas sortes na vida. Uma delas foi ter encontrado aquela Marylin. Outra foi o fato de ser linda.

A beleza extraordinária de Waris fica bastante escondida pelas suas roupas, pelo véu que cobre seus cabelos, quase não mostra seu rosto, pelo desmazelo e sujeira que vêm com a miséria, mas, por um desses acasos de que a vida é cheia, acontece de ela ser vista, num bar em que encontra trabalho como faxineira, por um sujeito gorducho, feioso, aparência de pobretão, tipo um tanto riponga. O sujeito é interpretado pelo grande (em todos os sentidos) Timothy Spall, e quando ele surge em cena a tela brilha um pouco mais. Ele deixa um cartão com a africana faxineira, diz para ela ligar para ele, algum dia. Acontece de ele ser Terry Donaldson, tremendo fotógrafo de moda.

Quase no final, o flashback para mostrar a terrível mutilação

Waris vai demorar um pouco até finalmente ligar para Terry Donaldson.

O roteiro de Sherry Hormann, com talento, maturidade, não vai ficar – como tantos outros de filmes dos últimos tempos – cansativamente indo e voltando no tempo, fazendo o espectador de peteca, de bolinha de tênis. No momento adequado, haverá, sim, um flashback, em que veremos o que aconteceu naquela ocasião lá do início da narrativa, Waris com uns 12 anos, ela fugindo do casamento arranjado pela família, fugindo da família, andando quilômetros e quilômetros do deserto, até a capital de seu país, Mogadíscio.

Depois haverá dois novos flashbacks, de novo nas horas certas. Eles cobrirão o que ainda havia de lacuna na história – como se deu a ida da jovem Waris para Londres e como se passaram os primeiros seis anos em que ela esteve lá, trancada dentro de uma casa, até sair e se encontrar com Marylin, e finalmente a volta até o passado mais remoto, o momento trágico em que, com três anos de idade, ela sofreu a terrível mutilação, nas mãos de uma carniceira no meio do deserto.

Pequenos probleminhas, compensados por momentos brilhantes

 

 

 

 

 

 

 

 

Para interpretar o papel de Waris adulta, era necessário achar uma mulher de beleza impressionante, marcante, como era a da Waris da vida real. Os produtores se decidiram por Liya Kebede, ela mesma uma topmodel, nascida na Etiópia, vizinha da Somália na África Oriental.

Foi uma bela escolha – e a palavra bela aí é redundância pura. Liya Kebede se esforça para atuar, e se sai razoavelmente bem. Depois que Waris vira topmodel, aí fica fácil para ela – é só ser natural.

E as tomadas em que Liya Kebede desfila como Waris são extraordinários.

Lá no início do texto, falei em um ou outro defeitinho, coisa pouca, de nada. Especifico: achei um pouco over, exagerada demais, a atuação das duas atrizes centrais, a novata Liya Kebede e a experiente Sally Hawkins, nas primeiras seqüências em que aparecem, quando ficam se conhecendo, as primeiras ocasiões juntas. Sally Hawkins ficou muito parecida com o seu papel no filme de Mike Leigh – estabanada demais, gestos largos demais.

Achei também um tanto bobinha a forma como é mostrada a história do americano que Waris conhece numa boate, um tal Harold Jackson (Anthony Mackie).

Mas isso que chamei de defeitinhos não é nada, é coisa mínima, boba.

E esses eventuais momentos em que Liya Kebede e Sally Hawkins ainda não haviam encontrado direito o tom são planamenete compensados na seqüência brilhante em que as duas ensaiam como caminhar numa passarela, no corredor do hotel-pensão.

Dois grandes atores ingleses fazendo papéis secundários

 

 

 

 

 

 

 

E ainda há a extraordinária atuação de Timothy Spall como o fotógrafo Terry Donaldson e também a da experiente, premiadíssima atriz Juliet Stevenson, no papel de Lucinda, a super despachada dona da agência de modelos.

São personagens secundários, Donaldson e Lucinda, mas são belos personagens, bem construídos, bem conduzidos, como o cinema inglês sabe com perfeição construir e conduzir.

São opostos, antípodas, Donaldson e Lucinda. Lucinda vem de classe social mais alta, é bem formada, fala bem francês, tem aquele inglês que – como já dizia o professor Higgins do Pigmalião de Bernard Shaw – define em duas palavras a origem social da pessoa. Lucinda é negócio, dinheiro, carreira. Se tem alma, não demonstra – sua preocupação é o talão de cheques.

Donaldson, ao contrário, visivelmente vem da working class. Sim, estudou, não fala cockney como a florista Eliza Doolittle do Pigmalião, ou como a balconista Marylin. Tem talento, é um fotógrafo respeitadíssimo, mas não perdeu a alma, não perdeu a vida para o ato de ter que ganhá-la. Não dá grande importância a fama, dinheiro, essas coisas que ninguém leva no caixão. Tem um olhar tristonho, levemente melancólico, e um coração maior ainda que a imensa barriga. No meio daquele universo maluco, de egos inflados, que é o da moda, mantém os dois pés firmes no chão, gosta das pessoas, é, também ele, solidário. Belo personagem, brilhante ator.

 

 

Por uma dessas coincidências que não são coincidências, Timothy Spall interpretou também um fotógrafo em outro filme de Mike Leigh, o espetacular Segredos e Mentiras, de 1996, o mesmo Mike Leigh autor de Simplesmente Feliz, em que brilhou Sally Hawkins. (Os atores sempre brilham mais quando dirigidos por ele.)

Mike Leigh dificilmente teria resolvido dirigir este Flor do Deserto; é artista de histórias íntimas, pessoais, microcosmos, e esta é uma história que transcende em muito o pessoal, vira afresco, painel histórico. Se, de qualquer forma, tivesse aceitado executar esse projeto, seguramente teria feito uma obra-prima. Mas não era necessário. Sherry Hormann fez um ótimo filme. Um filme importante, necessário, imprescindível.

Na foto acima, a topmodel etíope Liya Kebede, que interpreta Waris Dirie, e e a Waris Dirie da vida real, ex-topmodel, hoje uma ativista, uma batalhadora contra os costumes pré-históricos que continuam a mutilar milhares de mulheres na África muçulmana em pleno século XXI.

Poucas semanas depois que vimos o filme, o Estadão publicou uma entrevista com Waris Dirie, no caderno Aliás de 13/3/2011. Vale a pena ler.

Flor do Deserto/Desert Flower

De Sherry Hormann, Inglaterra-Alemanha-Áustria, 2009

Com Liya Kebede (Waris Dirie), Sally Hawkins (Marylin), Craig Parkinson (Neil), Meera Syal (Pushpa Patel), Anthony Mackie (Harold Jackson), Juliet Stevenson (Lucinda), Timothy Spall (Terry Donaldson), Soraya Omar-Scego (Waris aos 12 anos)

Roteiro Sherry Hormann

Baseado no livro autobiográfico de Waris Dirie

Fotografia Ken Kelsch

Música Martin Todsharow

Produção Desert Flower Filmproductions, Majestic Filmproduktion, MTM West Television & Film, Dor Film Produktionsgesellschaft, Bac Films. DVD Imovision.

Cor, 120 min

***1/2

11 Comentários para “Flor do Deserto / Desert Flower”

  1. Valeu muito mesmo,o tempo que perdi para encontar e alugar este DVD.Um filmaço !!!!!
    É impressionante, fica difícil de acreditar que, ainda hoje,essa coisa horrenda,continua sendo feita. Chamar isso de fé ?? Pelo amor de Deus,isso é mutilação,isso é fanatismo,
    isso é crime. Tinha de ser uma mulher muito forte, com um poder de superação imenso, para passar por tudo que passou e chegar onde chegou.
    De fato, duas mulheres lindas,a Waris e a Liya. O sorriso da Waris, brilha de tão lindo
    Com relação ao filme, como dizes,Sergio, quando o Timothy entra em cena, sei lá … alguma coisa muda, para o bom, claro.
    Também achei fantástica a cena em que a Waris e a Marylin ensaiam como caminhar na passarela.Ter encontrado a balconista e o fotógrafo,foi fator fundamental para a Waris
    Mas,a sua fôrça,sua garra,sua determinação,
    foram fatôres determinantes em sua vida.

    Em tempo,ía esquecendo, brilhante como sempre em outros filmes, a Juliet Stevenson.

  2. Como assim? Você quer saber como encontrar o filme para ver? É isso?
    Não faço a menor idéia.
    Em tempo: estou respondendo no mesmo tom tosco com que você fez a pergunta…

  3. TOSCO É VOCÊ SEU MAL EDUCADO !! CADÊ O FILME ?? TU ENGOLIU SEU BABACA ?? VAI APRENDER A RESPEITAR O PRÓXIMO

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