Anotação em 2010 (postada em janeiro de 2011): Mademoiselle Chambon é um filme singular. Há muito poucos como ele. É extremamente minimalista, cuidadosa e meticulosamente minimalista. Fala-se pouco – o que mais se ouve é o silêncio.
Acontece muito pouca coisa, na história, no filme – e não acontece nada diferente, extraordinário, peculiar, anormal. É a simplicidade da vida de pessoas simples levada ao paroxismo.
As tomadas são longas, deliberadamente longas. Vemos Jean (o excelente Vincent Lindon) trabalhando – ele é pedreiro, constrói e reforma casas. E então há diversas longas tomadas de Jean trabalhando, desde a abertura, os créditos iniciais. Quando terminam os créditos iniciais, há uma longa tomada em que aparecem Jean, sua mulher Anne-Marie (Aure Atika) e o filho deles, Jérémy (Arthur Le Houérou), garoto aí de uns oito anos.
Há minimalismo até nos nomes dos personagens: Jean, Anne-Marie. Quer coisa mais simples, mais pão pão, queijo queijo, que Jean e Anne-Marie?
Então, assim que terminam os créditos iniciais, temos uma longa tomada de pai, mãe e filho, a câmara imóvel. O filho está tentando responder a uma questão – não propriamente complexa – de análise sintática. Dada a frase “O serviço de manutenção redigiu este relatório a pedido do diretor”, a lição de casa pedia que Jéremy identificasse o complemento do objeto direto. Nem Jean nem Anne-Marie conseguem ajudar o garoto.
Como costumo ver filmes sem ter lido antecipadadamente coisa alguma sobre eles, cheguei a pensar, nesse iniciozinho, que Mademoiselle Chambon fosse tratar de educação, a necessidade da educação para que possa melhorar de vida. Nada disso, de forma alguma – até porque Jean e Anne-Marie, ela também com pouco estudo e trabalho manual em uma gráfica, têm uma vida confortável, moram em boa casa, ele tem um bom carro. Não passam por dificuldades, suas necessidades básicas são atendidas.
O tema do filme não demora a aparecer. Anne-Marie, por carregar excesso de peso no trabalho, tem um problema na coluna, precisa ficar de repouso durante uma semana, e Jean vai no lugar dela pegar Jérémy na escola. Na sala de aula do filho, conhece a professora dele, Mademoiselle Chambon – interpretada por Sandrine Kiberlain.
Ah, sim, então Mademoiselle Chambon tratará de um triângulo amoroso.
Um operário francês bem casado, tranqüilo em sua vidinha simples, numa cidade do interior conhece outra mulher – me lembrei, claro, de As Duas Faces da Felicidade/Le Bonheur, a obra-prima de Agnès Varda, de 1965.
Mas só essas coincidências unem os dois filmes. Mademoiselle Chambon, repito, não se parece nada com outros filmes.
Um filme corajosamente contra as atuais correntes
O diretor Stéphane Brizé não vai se ater muito, ao contrário do que se poderia esperar, às diferenças sociais e sobretudo culturais entre seu operário quase iletrado, inculto, e a professora, violinista amadora, pessoa de leitura e gosto por música erudita.
Sim, essas diferenças serão mostradas. Jean pedirá a Mademoiselle Chambon que toque violino para ele, pedirá emprestado um CD de música erudita – mas o filme não pretende ir fundo na questão do abismo cultural que há entre eles.
Vai se ater, basicamente, aos silêncios nas relações entre aqueles personagens, ao que não é falado, ao que não é expresso em palavras. É um filme sobre o não-dito – e o não-agido.
É uma obra extremamentre corajosa, por ser tão contra a corrente, por ser radical na procura do inverso da imensa maioria dos filmes atuais, de muita ação, muitos acontecimentos imprevistos, planos curtos, montagem nervosa.
O cinemão comercial foi se voltando cada vez mais para as grandes platéias, procurando o máximo divisor comum das audiências, tornando-se sabujo dos adolescentes. Infantilizou-se, emburreceu.
Mademoiselle Chambon, radicalmente contrário a tudo isso, tinha tudo, ao menos em teoria, para ser um grande fracasso comercial. Que nada. Teve, nas salas de cinema da França, 550 mil espectadores, uma ótima marca para um filme tão pessoal, tão autoral. Claro, muitíssimo distante dos 20,2 milhões de ingressos de A Riviera Não é Aqui/Bienvenue Chez les Ch’tis, a comédia de Dany Boon de 2008 que se tornou a maior bilheteria do cinema francês na própria França. Mas, mesmo assim, um sucesso expressivo. Uma bela prova de que as platéias são mais inteligentes do querem crer os produtores dos filmões comerciais.
Boa parte do sucesso se deve, certamente, aos dois atores centrais. Vincent Lindon é hoje um dos grandes nomes do cinema francês, astro de ótimos filmes – Bem-vindo/Welcome, Tudo por Amor/Pour Elle. E Sandrine Kiberlain é uma absoluta gracinha – com um rostinho que não chega mesmo a ser bonito, alta, magra, comprida, tem imenso talento, tanto como atriz quanto como cantora e compositora.
Ator e atriz recém-separados interpretam casal que está se apaixonando
Uma das características fantásticas, fascinantes deste Mademoiselle Chambon é o fato de que Vincent Lindon e Sandrine Kiberlain foram casados na vida real – e já estavam separados, quando o filme foi feito. Ex-casados que trabalham juntos, fazendo papel de um homem e uma mulher que se apaixonam, é algo tão único quanto um filme minimalista onde se fala pouco, o silêncio predomina e acontecem muito poucos fatos.
Na longa, excelente, preciosa entrevista que o diretor Stéphane Brizé dá a um crítico de cinema, e que vem como bônus no DVD, aborda-se essa questão. Não daria para não falar disso. Brizé conta que primeiro entrou em contato com Vincent Lindon, que aceitou o convite para interpretar Jean. Os dois conversaram muito sobre quem poderia fazer o papel de Mademoiselle Chambon, mas não se decidiram por ninguém. Um dia Brizé ligou para Lindon e disse que a atriz perfeita para o papel seria Sandrine – mas Lindon se recusou, disse que seria uma situação muito embaraçosa, constrangedora. Mais tarde, no mesmo dia, Lindon ligou para o diretor, disse que continuava achando que seria desconfortável, mas deixou a decisão a cargo dele, com o argumento de que jamais poderia fazer algo para impedir que sua ex-mulher obtivesse um papel.
São brilhantes as interpretações de Vincent Lindon e de Sandrine Kiberlain.
Na entrevista, Brizé diz que mexeu muito na história contada no romance de Eric Holder (um autor de quem eu jamais ouvira falar). Ele e a co-roteirista Florence Vignon alteraram muita coisa do livro, deram maior destaque a este ou aquele personagem, menor destaque àqueles outros, alteraram os acontecimentos do final. Tentaram ser fiéias à essência, à sensação que o livro transmitia. Segundo ele, o escritor gostou muito do roteiro.
Stéphane Brizé nasceu em Rennes, em 1966; passou primeiro pelo teatro, antes de se dedicar ao cinema. Mademoiselle Chambon é seu quarto longa-metragem; não vi nenhum dos três anteriores, Le Bleu des Villes, de 1999, Je ne suis pas là pour être aimé, de 2005, e Entre Adultes, de 2006.
Pelo que mostrou neste filme, tem coragem, sensibilidade e talento.
Não digo que minha visão seja a certa – é um filme aberto a diferentes visões
Vejo que o AllMovie babou com o filme – deu 4.5 estrelas em 5, e fez vastos elogios. Adiantou também muitos dos detalhes da pequena história, que eu, de minha parte, acho errado revelar. No entanto, os autores dos textos do grande site tiveram uma visão oposta à minha; segundo eles, o que atrai a atenção de Jean para Mademoiselle Chambon é aquilo que ele não possui – cultura, refinamento. A diferença entre eles, o que os separa. Não vi assim – muito ao contrário. Acho, como disse lá em cima, que o filme propositadamente não se atém às diferenças culturais e sociais entre o pedreiro e a professora. O que o filme realça é aquilo que eles – tão distantes em quase absolutamente tudo – têm em comum, que é o não dizer o que sentem, pensam, querem. O não-dito.
Não digo que eu esteja certo e o AllMovie errado. É um belo filme, aberto a diferentes visões – isso é bom, é salutar.
Um último ponto. Neste filme permeado por silêncios, a música, quando entra – quando Jean pede a Mademoiselle Chambon que toque violino para ele, por exemplo –, entra divinamente. São algumas peças eruditas, e outras instrumentais compostas para o filme por Ange Ghinozzi, muito próximas das eruditas escolhidas para a personagem executar ao violino. No encerramento, nos créditos finais, surge a única canção popular que se ouve no filme. Chama-se “Quel Joli Temps (Septembre)”, e é interpretada pela autora da melodia, Barbara, uma cantora, compositora e letrista extraordinária, muito menos conhecida no Brasil do que mereceria. Interessantíssima escolha. Não é das canções mais famosas dela – não está em nenhum dos quatro discos de Barbara que tenho. Encerra bela e tristemente este filme belo e triste.
Mademoiselle Chambon
De Stéphane Brizé, França, 2009
Com Vincent Lindon (Jean), Sandrine Kiberlain (Véronique Chambon), Aure Atika (Anne-Marie), Jean-Marc Thibault (o pai de Jean), Arthur Le Houérou (Jérémy)
Roteiro Stéphane Brizé e Florence Vignon
Baseado no romance de Eric Holder
Fotografia Antoine Héberlé
Música Ange Ghinozzi
Produção TS Productions, F Comme Film, Arte France Cinéma, Canal+. DVD Imovision. Estreou em São Paulo 14/5/2010.
Cor, 101 min
***
2 Comentários para “Mademoiselle Chambon”