(Disponível no Amazon Prime Video em setembro de 2024.)
Um casal de meia-idade caminha no alto de uma montanha. Ela vai à frente dele, a uma distância de uns cinco metros. Essa cena é mostrada de cara, bem no comecinho de Une Confession, no Brasil Casamento Fatal, produção feita para a TV francesa em 2023 – o terceiro longa-metragem dirigido por Hélène Fillières.
Há vários planos gerais da montanha – um imenso, imponente paredão rochoso.
Tomada dos dois no alto, a câmara atrás do homem. A mulher está lá adiante dele, junto do precipício.
Corta, e na tomada seguinte vemos a mulher morta, caída de costas sobre um platô de pedra, o rosto voltado para cima, para o céu. Lá do alto, junto do precipício, o marido observa o corpo da mulher.
Vamos e venhamos: é uma bela abertura de filme, não?
Um dos esquemas clássicos dos filmes policiais, de mistério, thrillers, ou polar, como se diz no país do casal Jean e Maud Duberry, é o quem-foi-que-matou, o whodunnit.
Neste Une Confession, a questão é aparentemente mais simples, mas a rigor mais ampla. A questão é: o que aconteceu? O que exatamente aconteceu naqueles poucos segundos entre uma tomada e outra?
Há três possibilidades: ou Maud caiu acidentalmente, ou se jogou, ou foi jogada.
O roteiro escrito pela própria diretora Hélène Fillières e Claude Scasso vai nos mostrar, ao longo dos 86 minutos do filme, vários trechos da caminhada de Jean e Maud Duberry (os papéis de Laurent Gerra e Catherine Frot) desde sua bela casa – em um condomínio fechado a um quilômetro do sopé daquela montanha, à qual todos se referem como La Botte – até lá no alto. Na última sequência, o espectador vê exatamente o que aconteceu.
Ao longo de todo o filme, portanto, a questão fica pairando na cabeça do espectador: o que aconteceu? Acidente, suicídio ou assassinato?
Mas a verdade é que o filme é mais que apenas um policial, um thriller, um polar. Lá pela metade da narrativa ele demonstra que, a rigor, é um drama sobre um casamento profundamente infeliz, que já deveria ter sido desfeito anos e anos antes.
A chefe de polícia sequer considera que possa ter sido crime
Poucas horas depois da morte de Maud, a chefe de polícia da pequena cidade, Patricia (Christelle Bardet), está conversando com Jean na varanda do casal. São, evidentemente, velhos conhecidos, amigos – aquela coisa de cidade pequena, em que todos se conhecem. E o casal Jean e Maud era bem conhecido na região – possuíam um belo vinhedo, fabricavam um bom vinho.
Não parece passar pela cabeça da chefe de polícia que tivesse havido um crime.
Chega à varanda Benjamin (o papel de Théo Augier), o filho, um rapaz que parece ter aí uns 18 anos apenas. Pergunta pela mãe – e quem vai ao encontro dele e o leva para conversar dentro de casa, para dar a notícia da morte de Maud é a policial Patricia, e não Jean. Este fica sentado na mesma cadeira em que estava.
Mais tarde, em um momento qualquer, Jean se refere a Benjamin como “o filho de Maud”.
Para mim, o filme quis demonstrar, ao menos na sua primeira metade, que Benjamin de fato não era filho de Jean, e sim de um casamento ou uma ligação anterior de Maud. Mas não. Não é dito expressa, explicitamente, mas Benjamin é, sim, filho de Jean. Só que a relação dos dois é absolutamente fria, distante; a rigor, como Mary comentou, não existe uma relação entre os dois.
Enquanto a chefe de polícia está na casa do velho conhecido e amigo Jean, na propriedade ao lado, uma policial muito jovem, novata ali no destacamento comandado por Patricia, faz perguntas ao dr. Michel (o papel de Antoine Duléry). Diferentemente de Patrícia, a jovem Clarisse (Diane Rouxel) está com bloco e caneta na mão, anotando as declarações do vizinho da vítima.
Enquanto dá braçadas em sua piscina, o dr. Michel conta que na noite anterior o casal Jean e Maud havia estado ali na sua casa – ele tinha reunido um grupo de amigos, para conversar, beber, ouvir música. Maud estava muito alegre, dançou, cantou uma canção, chamou Jean para cantar junto. Tinham ficado ali até tarde. Tanto que ele havia achado estranho ao ver, de manhã, bem cedo, o casal caminhando em direção à montanha. Maud estava acostumada a fazer caminhadas, mas Jean, nem tanto.
Como já foi dito, a narrativa volta no tempo várias vezes. Em diversos flashbacks, vemos tomadas de Maud e Jean indo em direção à montanha, depois enfrentando a subida – assim como vemos também cenas da noite anterior, a festinha na casa do médico, e cenas do passado mais distante do casal.
Os flashbacks revelam de fato um casamento que já deveria ter acabado fazia muito tempo. Uma relação horrorosa entre marido e mulher.
E mostram que Maud era uma pessoa absolutamente intragável.
A polícia conclui que foi acidente. Aí surge uma testemunha…
A diretora Hélène Fillières e seu co-roteirista Claude Scasso criaram uma sequência para que o espectador não fique com uma sombra de dúvida de que Maud é uma mulher mercurial, tirânica, ditatorial, uma pessoa desagradável, repulsiva.
Uma de suas empregadas, uma jovem (o papel der Zoé Fréchet), serve a ela o chá que havia pedido. Maud examina atentamente a xícara, e descobre nela um rachadinhozinho, coisa minúscula, quase invisível. Chama a moça e também Jean-Paul (Jean-Paul Vors), que aparentemente é o chefe dos empregados, e faz um discurso na base do “na minha casa ninguém me serve chá em uma xícara rachada”.
Jean tenta intervir, pede para a mulher baixar a bola. Maud demite na hora a moça e o tal Jean-Paul.
É ela que manda na casa – e nos negócios da família, o vinhedo, a produção de vinho. Em um diálogo qualquer, ficamos sabendo que o vinhedo, todo o negócio pertencia ao pai de Jean – mas ele deixou no testamento que o negócio seria dirigido por ela. Jean acomodou-se à posição de subordinado.
Uma hora lá o próprio garoto Benjamin, que mal tinha uma relação com Jean, comenta que não entendia como ele aguentava ser mal tratado daquela forma por Maud.
Alguns dias depois da morte e do enterro, a polícia já havia concluído que tinha sido um acidente. Caso encerrado.
Aí aparece um sujeito, Raymond (Emmanuel Salinger), que procura – fora da delegacia – a jovem policial Clarisse, a única que parecia não estar tão absolutamente segura de que o caso deveria ter sido encerrado, e diz que estava no alto da montanha e viu o homem lá junto do precipício, olhando para baixo, para o lugar onde a mulher caiu. Viu que o homem ficou olhando lá para baixo durante uns quatro minutos antes de pegar o celular e ligar pedindo ajuda.
Estamos, nesse momento, perto da metade do filme. Clarisse vai continuar na investigação. Vai atrás de Jean, vai fazer perguntas.
O roteiro – parece – usa pouco do que há no livro
Nos créditos iniciais, é dito que o roteiro de Hélène Fillières e Claude Scasso é “livremente inspirado no livro de John Wainwright.
Aprendo que John Wainwright (1921- 1995) foi um escritor inglês de romances policiais – uma daquelas figuras prolíficas que escreviam três romances a cada ano. Lançou 83 livros, quatro deles sob o pseudônimo de Jack Ripley – fora “alguns contos, sete peças para rádio e um número indefinido de artigos em revistas e colunas em jornais”, segundo a Wikipedia.
Pelo que pude compreender de uma pesquisa nada extensa ou meticulosa, de fato o roteiro apenas se inspira no livro de Wainwright. E é interessante: o título original do livro, lançado em 1984, é uma expressão francesa, também usada em inglês, Cul-de-Sac – que designa “o final de rua sem saída, com uma área maior em geral arredondada, para a manobra de veículos”. Por coincidência, e apenas uma coincidência, Cul-de-Sac já havia sido o título de um filme feito no Reino Unido pelo polonês/cidadão do mundo Roman Polanski, em 1966, com aquele lindo cometa que passou rapidissimamente pela Terra, Françoise Dorléac. No Brasil, o filme teve o título de Armadilha do Destino.
Pois bem. Eis a sinopse da Amazon sobre Cul-de-Sac, o romance de 1984 do escritor de romances policiais John Wainwright:
“O cruel e inquisitivo sargento Harry Harker investiga as alegações de uma testemunha com um passado vergonhoso de que a queda fatal de uma mulher não foi acidental.”
O livro só veio a receber uma edição em francês em 2019, com o título de Une Confession.
Não posso garantir, de forma alguma – mas, aparentemente, Hélène Fillières e Claude Scasso teriam aproveitado apenas alguns elementos do livro, no roteiro do filme que seria lançado quatro anos após a primeira edição do livro na França. Alguns elementos e mais o título do livro na tradução francesa, Une Confession.
Aparentemente – insisto no advérbio – o livro era essencialmente uma trama policial, um thriller, um polar. A diretora e seu co-roteirista a transformaram numa trama mezzo policial, mezzo estudo de um casamento que foi para o brejo.
O resultado…
O filme entrega menos do que promete
O resultado, me parece, foi um filme que promete muito mais no seu início do que acaba entregando.
Na minha opinião, não chega a ficar claro por que raios Jean Duberry insiste em querer que a polícia aprofunde as investigações.
Ah, tá legal, ele mesmo queria entender melhor o que havia acontecido – não apenas ali no alto da montanha, mas com a sua vida, o seu casamento com Maud. Sentia-se um tanto culpado – pela história com Marjane (Lola Dewaere, bela mulher, na foto acima), pelas mentiras, por tudo. Ah, tá legal – mas plantar dúvida na cabeça da policial quando tudo já estava absolutamente resolvido, caso encerrado? Como dizia a canção de Gilbert Bécaud: pour qui? pour quoi?
E toda aquela história da bela Marjane, e a revelação que vem junto dela… Achei tudo aquilo falso, sem sentido, besta…
E ainda tem o detalhinho de que o ator escolhido para fazer Benjamin, o filho, parece ter no máximo, no máximo, uns 18 anos. Como ele poderia ter sido colega de escola da policial Clarisse, que, diabo, por mais jovem que fosse, teria que ter no mínimo, no mínimo, uns 23, 24?
Foi o terceiro longa da jovem diretora
Um registro geográfico: o filme foi rodado e se passa na região Provence-Alpes-Côte d’Azur, no extremo Sudeste da França, junto do Mediterrâneo ao Sul e da Itália a Leste. A montanha a que as pessoas no filme se referem como La Botte se chama Sainte-Victoire. O pintor Cézanne a retratou várias vezes.
O único nome que consta dos créditos iniciais que eu conhecia é o de Catherine Frot – a ótima atriz de, entre tantos filmes, Nem Parece Minha Irmã!/Les Soeurs Fâchées (2004), Os Sabores do Palácio/Les Saveurs du Palais (2012), Os Olhos Amarelos dos Crocodilos/Les Yeux Jaunes des Crocodiles (2014), Marguerite (2015).
Catherine Frot é uma atriz fascinante. Em um cinema repleto de rostos extraordinariamente belos como o francês – seria necessário citar Catherine Deneuve, Isabelle Adjani, Anouk Aimée, Brigitte Bardot, a dinamarquesa Anna Karina, a alemã Romy Schneider? –, Catherine Frot brilha sem ser linda. Lá pelas tantas, o vizinho dos Duberry, o dr. Michel, diz que Maud estava sensual na festinha da noite da véspera de sua morte – e é fascinante como a atriz e a diretora Hélène Fillières conseguiram obter uma visão sensual das pernas e pés nus de Maud, em uma pose que fazia obrigatoriamente lembrar a das pernas de Marjane-Lola Dewaere, que haviam sido mostradas antes em tomada cheia de sex-appeal.
Jamais tinha ouvido falar deste Laurent Gerra, intérprete do protagonista da história, que está presente em praticamente todas as sequências do filme. O que, diacho, é bastante estranho, em se tratando de um ator de meia-idade: como foi possível que este assistidor voraz de filmes aqui nunca tivesse visto o cara antes?
Laurent Gerra, nascido em 1967, começou a carreira de ator em 1998, e sua filmografia tem 26 títulos. Mas ele é famosíssimo na França principalmente como comediante e mímico, e sua especialidade é imitar personalidades famosas, tanto da cultura quanto da política. Já fez imitações, no teatro e na TV, de Céline Dion, Henri Salvador, Patrick Bruel, Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy. Papa João Paulo II, Jean-Marie Le Pen, Jean-Luc Godard, Jean-Claude Brialy. Jeanne Moreau, Alain Delon, Jean-Paul Belmondo…
Interessante: o comediante Laurent Gerra não dá um único sorriso, ao longo dos 86 minutos deste Une Confession. A vida de seu personagem Jean Duberry de fato não tem espaço para o bom-humor.
Finalmente, duas palavrinhas sobre Hélène Fillières. A moça é jovem: parisiense da classe de 1972, começou a carreira de atriz aos 20 anos, e de lá para cá trabalhou em 57 filmes e/ou séries de TV. Não reconheci na filmografia dela nada que eu já tivesse visto. Este Une Confession foi seu terceiro longa-metragem como diretora, depois de Une Histoire d’Amour (2013) e Volontaire (2018).
Anotação em outubro de 2024
Casamento Mortal/Une Confession
De Hélène Fillières, França, 2023
Com Laurent Gerra (Jean Duberry),
Catherine Frot (Maud Duberry),
Diane Rouxel (Clarisse Marquand, a policial jovem), Antoine Duléry (dr. Michel Flamand, o médico vizinho e amigo), Théo Augier (Benjamin Duberry, o filho), Lola Dewaere (Marjane, a moça do restaurante), Guillaume Arnault (Greg, o policial, ex de Clarisse), Emmanuel Salinger (Raymond Forestier, a falsa testemunha), Christelle Bardet (Patricia Rougier, a chefe da polícia), Dany Castaing (Nelly, a dona do restaurante), Vincent Audat (Joël, o dono do restaurante), Diane Nublat (Agathe, receptionista), Zoé Fréchet (a empregada), Jean-Paul Vors (Jean-Paul, o empregado)
Roteiro Hélène Fillières & Claude Scasso
“Livremente inspirado em romance de John Wainwright”
Fotografia Stephan Massis
Música Ronan Maillard, Martin Rappeneau
Montagem Emmanuelle Baude
Produção Matthieu Tarot, Albertine Productions,
France Télévisions, BE-FILMS, Radio Télévision Belge Francophone,
Région Provence-Alpes-Côte d’Azur.
Cor, 86 min (1h26)
**1/2
Um comentário para “Casamento Mortal / Une Confession”