A Audácia de um Canalha / The Naked Truth

2.5 out of 5.0 stars

(Disponível no Cineclube DIF Filmes do YouTube em 2/2025.)

The Naked Truth, no Brasil A Audácia de um Canalha, produção inglesa de 1957, é uma daquelas comédias tão bobas, tão pastelônicas (só falta mesmo o bolo jogado na cara), com uma trama tão cheia de coisas implausíveis, que acabam ficando extremamente divertidas.

Tem o humor tão britânico quanto datado de Terry-Thomas, o ator que usa os dentes da frente separados como piada, o humor pastelão de uma fantástica Peggy Mount – que Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, definiu como uma mistura da versão feminina de Charles Laughton com uma jovem Margaret Rutherford – e, at last but not at least, um jovem Peter Sellers antes do sucesso mundial, com uma exibição de sua versatilidade, fazendo uma dezena de personificações diferentes. Uma espécie assim de ensaio geral para aquilo com que nos brindaria sete anos mais tarde no Dr. Fantástico de Stanley Kubrick.

A história criada pelo dramaturgo e roteirista Michael Pertwee – ele também autor do roteiro do filme -, e encenada pelo diretor Mario Zampi, sujeito que jamais poderia ser acusado de sutil, é mais ou menos assim:

Há um chantagista agindo em Londres – e o cara é um colosso, um super-homem. Sozinho, ele consegue levantar os podres de dezenas e dezenas de pessoas das mais diferentes áreas de atividade. Sozinho, ele edita uma revista chamada The Naked Truth, a verdade nua, em que relata os podres de uma pessoa, sem no entanto apresentar o nome dela. E então leva um exemplar da revista para aquele cidadão e/ou cidadã – pedindo a ele o pagamento de 10 mil libras esterlinas. Caso o pagamento não seja efetuado em determinado prazo, aquela revista será distribuída, e desta vez contendo o nome do chantageado que não pagou.

O chantagista-pesquisador-repórter-editor solitário se chama Michael Dennis, e é interpretado por Dennis Price (na foto abaixo) – que tem ali, segundo a avalição de Pauline Kael, um de seus melhores trabalhos desde As Oito Vítimas/Kind Hearts and Coronets, uma famosíssima comédia inglesa de 1949.

A trama focaliza quatro das vítimas do superchantagista – e a cerne da história é que essas quatro vítimas vão acabar se juntando na tentativa de se verem livres de Michael Dennis. Na tentativa de tornarem este mundo melhor, sem a presença nele de Michael Dennis – que seria convidado a passar deste para outro mundo.

A graça básica do filme é que esses quatro chantageados são absolutamente, mas absolutamente incompetentes no quesito saber como matar um homem.

Um lord, um homem de TV, uma escritora, uma modelo

Há uma característica que me pareceu bastante interessante no filme: os pecados que essas pessoas cometeram no passado, e que seriam capazes de arruinar suas vidas caso revelados, não são muito bem explicitados ao espectador. Têm a ver com sexo, com casos clandestinos, adultério – mas nada é dito muito às claras.

E, cá pra nós, se cada caso extraconjugal fosse motivo para tanto pavor dos adúlteros, bem mais da metade da humanidade seria vítima de chantagistas, não?

Os quatro chantageados que a trama focaliza são estes:

* Lord Mayley (o papel de Terry-Thomas), um nobre cuja esposa (interpretada por Georgina Cookson, ótima, deliciosa no papel) está sempre desconfiando que o marido a está traindo com alguém.

* Sonny MacGregor (Peter Sellers), o apresentador de um show de TV assistido por dezenas e dezenas de milhares de pessoas. Sonny é um grande showman, se fantasia de diferentes pessoas em cada uma das apresentações – e é um tipo simpático, que dá presentes a convidados, os trata muito bem. É uma pessoa bastante querida pelo seu público. No caso de Sonny até que dá para entender seu temor de que um passado de predador sexual seja revelado.

Quando decide livrar Londres do chantagista Dennis, Sonny aproveita seu talento para se fantasiar de outras pessoas – e nisso surgem algumas das situações mais engraçadas do filme. É especialmente deliciosa a sequência em que ele assume a identidade de um irlandês raiz e vai a Dublin tentar comprar explosivos…

* Flora Ransom, uma escritora de novelas policiais, é o papel de Peggy Mount (na foto abaixo), a atriz que deixou Dame Kael fascinada – com toda razão, diga-se. Flora é a única entre os quatro chantageados que fala abertamente sobre os pecados, os segredos terríveis do passado – e, diacho, não são pecados tão graves, tão terríveis assim. Viúva, uma senhora de uns 40 e poucos anos, naquele tempo em que 40 e poucos eram muitos anos, ela conta para sua filha, Ethel (Joan Sims, na foto abaixo) que, numa época em que o marido estava longe, teve, sim, alguns amantes.

Flora e Ethel são figuras muito, mas muito engraçadas. Quando decidem fazer passar o chantagista Dennis desta para melhor, surgem situações de fato hilariantes. Pastelônicas, chegadas ao ridículo completo, mas muito engraçadas.

A matrona Flora – este é um detalhe interessante – está sendo paquerada pelo pastor de seu bairro, o reverendo Bastable (o papel de Miles Malleson, também na foto abaixo).

* Belinda Right (o papel de Shirley Eaton, sete anos antes de aparecer com o belo corpo todo coberto de dourado em Goldfinger) me pareceu o personagem mais pobre entre os principais da trama, o menos trabalhado, o que não foi muito bem construído. Fiquei achando que Belinda Right só existe para que o filme tivesse ao menos uma mulher bonita para agradar à platéia – e, de fato, essa moça Shirley Eaton é bela. Belinda é uma modelo profissional, e está namorando um texano, herdeiro de uma família dona de campos de petróleo – mas o namoro está sempre ameaçado porque o ricaço tem ataques de ciúme. E a moça, tadinha, é absolutamente inocente – ama o sujeito, não pelo dinheiro dele, mas por ele mesmo.

Uma abertura muito, muito interessante

É preciso reconhecer – e registrar: a abertura do filme é bem boa.

Um homem elegantemente vestido, de terno, gravata, chapéu, segurando uma pasta, luvas e guarda-chuva, sai de uma casa, seguido por um senhor idoso, com a expressão de ansiedade, perplexidade. O de chapéu – veremos logo em seguida que é Michael Dennis, o chantagista – se volta para trás e estende a mão para se despedir do senhor idoso, mas este faz uma cara feia, não estende a mão, volta para dentro de sua casa e fecha a porta.

A câmara acompanha o homem de chapéu, que começa a se distanciar – mas mal ele dá alguns passos e ouvimos o barulho de um tiro, vindo de dentro da casa de onde ele acabava de sair. A câmara mostra em close a pasta que o homem carrega.

Corta, e um vendedor de jornais traz a manchete: “Brilhante cientista encontrado morto com um tiro”.

No Parlamento, um homem se levanta para responder a um deputado – mas põe a mão no peito, e cai, fulminado por um ataque cardíaco. Logo vem a manchete: “Ministro tem colapso na Câmara dos Comuns”.

Uma senhora, com expressão de grande angústia, sentada diante de uma mesa, escreve um bilhete, em seguida se levanta e avança para a janela. Volta até a mesa, toma mais um gole de uma xícara, e vai mais uma vez para a janela de seu apartamento. Pula – mas o apartamento era em andar baixo, e ela cai sobre o toldo de uma mercearia.

As pessoas a acodem. Chega a filha, pergunta se ela está bem, e a senhora responde: – “Estou muito bem! No meio do caminho, percebi que estava fazendo a coisa errada.” Um vizinho diz: – “É, senhora Ranson, é muito mais seguro pela escada!” O comerciante pergunta: – “E o meu toldo?” A senhora Flora Ranson-Peggy Mount, de bate-pronto: – “Ponha na minha conta.”

Depois dessas tomadas, veremos os outros três chantageados que serão os protagonistas da história. Com um 10 minutos de filme, a base da trama já foi apresentada.

Tanto Maltin quanto Pauline Kael elogiam o filme

Nunca tinha ouvido falar em Mario Zampi – ou, se tinha, já havia esquecido. Italiano de Lazio, nascido em 1903, aos 27 anos já estava radicado em Londres, trabalhando como montador. Em 1937, junto com seu compatriota Filippo Del Giudice, fundou a produtora Two Cities Films, que seria responsável, entre outros dramas sérios, densos, por Nosso Barco, Nossa Alma/ In Which We Serve (1942), de Nöel Coward e David Lean, talvez o mais clássico e mais perfeito filme esforço de guerra já feito.

Enquanto sua produtora fazia dramas, o próprio Zampi se dedicava às comédias. A Wikipedia destaca três delas: Laughter in Paradise (1951), aparentemente não lançado no Brasil, este The Naked Truth (1957) e Too Many Crooks (1959), também sem título em português no IMDb, e também com Terry Thomas no elenco.

No seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, o crítico e historiador Jean Tulard reserva para Mario Zampi duas frases: “Trocando Roma pela Inglaterra em 1922, tornou-se, após uma longa carreira de montador, especialista em comédia inglesa. Mas, como as do alemão Cornelius, as comédias do italiano Zampi envelheceram, com a exceção, talvez, de A Morte do Fantasma.”

A Morte do Fantasma, no original Happy Ever After, de 1954, também era uma história original do mesmo Michael Pertwee deste The Naked Truth, só que em co-autoria com Jack Davies.

Os distribuidores norte-americanos não gostaram do título The Naked Truth, e, no Estados Unidos, o filme se chamou Your Past is Showing, seu passado está aparecendo.

Leonard Maltin deu a The Past is Showing 3.0 estrelas em 4: “Brincadeira engraçada sobre um estranho grupo de pessoas reunidas para se livrarem do editor de uma revista de fofocas. Título original britânico: The Naked Truth.”

E eis o comentário de Dame Pauline Kael:

“Os roteiros das comédias inglesas de Michael Pertwee são às vezes baseados em idéias tão estilosas que os filmes são moderadamente diversos, apesar da direção indiferente. Neste aqui Dennis Price tem um de seus melhores papéis desde Kind Hearts and Coronets. Ele é o chantagista editor de uma revista tipo Confidential.”

(Publicada entre 1952 e 1978, a Confidential era tida como a pioneira em jornalismo de escândalos e fofocas dos Estados Unidos.)

“Suas vítimas, que se juntam para matá-lo, incluem: Peter Sellers como uma celebridade da televisão peculiarmente desagradável – Sellers captura o horror e a hipocrisia do papel com grande finesse (em especial em uma sequência com um velho de Gorbals, um bairro de Glasgow); Terry-Thomas como um nobre; Shirley Eaton como uma modelo; e a formidável Peggy Mount (uma mistura da versão feminina de Charles Laughton com uma jovem Margaret Rutherford) como uma escritora. Ninguém poderia descrever o estilo do diretor Mario Zampi como sutil, mas é solto o suficiente para permitir boas partes também para Miles Malleson (como o reverendo Bastable) e Joan Sims, que faz a filha da escritora.”

É isso aí. Uma boa diversão.

Anotação em fevereiro de 2025

A Audácia de um Canalha/The Naked Truth

De Mario Zampi, Reino Unido, 1957

Com Terry-Thomas (Lord Mayley),

Peter Sellers (Sonny MacGregor, o apresentador de TV),

Peggy Mount (Flora Ransom, a escritora de novelas policiais),

Shirley Eaton (Belinda Right, a bela modelo),

Dennis Price (Michael Dennis, o chantagista),

Georgina Cookson (Lady Mayley), Joan Sims (Ethel Ransom, a filha de Flora), Miles Malleson (reverendo Bastable), Kenneth Griffith (Porter), Moultrie Kelsall (Mactavish), Wally Patch (Fred), Henry Hewitt (o dono da loja de armas), Wilfrid Lawson (sargento Rumbold), Billy Edwards (Bill), John Stuart (inspetor), George Benson (fotógrafo), Peter Noble (locutor da TV), David Lodge (policial), Joan Hurley (escritora), Victor Rietti      (médico)

Argumento e roteiro Michael Pertwee

Fotografia Stanley Pavey

Música Stanley Black

Montagem Bill Lewthwaite

Direção de arte Ivan King

Produção Mario Zampi, The Rank Organisation

P&B, 92 min (1h32)

**1/2

Titulo nos EUA: “Your Past Is Showing”. Na França: “La Verité Presque Nue”. Em Portugal: “A Verdade Nua”.

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