Umberto D.

 

 

 

 

 

Nota: ★★★★

(Disponível em DVD Versátil e no Belas Artes À La Carte.)

Apenas 11 meses separam Milagre em Milão e Umberto D., esses dois grandes clássicos do neo-realismo italiano escritos por Cesare Zavattini e dirigidos por Vittorio De Sica. O primeiro estreou em fevereiro de 1951 e o segundo, em janeiro de 1952. E não poderia haver dois filmes tão diferentes quanto eles.

Milagre em Milão é uma fábula, uma fantasia, em que os pobres, os sem-teto saem voando pelos céus, acima da catedral que é o símbolo da metrópole industrial da Itália. A mensagem é séria, é claro, mas o filme é cheio de momentos suaves, engraçados, mágicos, e o protagonista, o jovem Totò, é um otimista inveterado, está sempre sorridente e disposto a ajudar aos outros.

Umberto D. é um drama absolutamente realista, triste do início ao fim. O protagonista, o velho Umberto Domenico Ferrari, interpretado por Carlo Battisti, é um velho aposentado inteiramente só no mundo, sem filhos, sem amigos e sem dinheiro sequer para pagar o aluguel do quarto em que vive há vários anos no apartamento de uma senhora cruel, sem compaixão.

Ahn… Talvez seja exagero dizer “inteiramente só”. Umberto tem um cachorrinho, Flick, que ele pronuncia Flaike. E conta com alguma ajuda da jovem Maria (Maria Pia Casilio), a empregada da madame, mocinha ingênua que foi do interior para Roma, namorou dois soldados e ficou grávida não se sabe de qual deles.

Um cachorrinho e uma garotinha são os únicos contatos do velho Umberto com o mundo.

A madame, Antonia Belloni (o papel de Lina Gennari), faz de tudo para expulsar o inquilino inadimplente de sua casa. Lá pelas tantas, a garota Maria fala para o velho Umberto uma das frases mais tristes deste filme de tanta tristeza: – “Acho que qualquer lugar fora daqui seria melhor para o senhor, Seu Umberto”.

O mundo não tem lugar para aquele velho aposentado. Umberto D. não tem lugar no mundo.

Zavattini e De Sica não quiseram um velho simpático

É interessante: Cesare Zavattini – que assina o soggetto e a sceneggiatura, argumento e roteiro, do filme – não quis criar um velhinho simpático, agradável, doce, que conquistasse de imediato a simpatia do espectador. Não, de forma alguma. Il signore Umberto é uma pessoa um tanto grosseira, rude, tosca – uma pessoa antipática.

Não sei qual terá sido a intenção do autor com isso. Talvez estivesse procurando o tal distanciamento crítico defendido por Bertold Brecht – que o espectador não se envolvesse emocionalmente com o personagem, que procurasse ver os eventos mais com a lógica, a razão, do que com o sentimento.

Eis aqui o que diz o próprio Vittorio De Sica, em um depoimento que está no DVD lançado no Brasil pela Versátil:

“Um ano após Milagre em Milão, Zavattini me disse ‘Quero escrever sobre um idoso chamado Umberto D’. Umberto De Sica é o nome do meu pai, mas Zavattini nunca me falou que, quando teve a idéia do filme, pensara em meu pai, e nem perguntei se esta era sua forma de me agradar por eu ter filmado a história de Totò.”

(Totò, como já foi dito, é o protagonista de Milagre em Milão.)

“Na minha filmografia, Umberto D. é o meu filme favorito, pois nele me comprometi totalmente a retratar personagens e acontecimentos verdadeiros. Procurei, com grande humildade, adotar o estilo verdadeiro, poético e límpido do admirável Robert Flaherty.”

(Robert Flaherty, 1884-1951, foi um documentarista norte-americano que, como define Jean Tulard, “em busca do homem e de suas relações com natureza, deixou uma obra cuja influência foi considerável. Toda uma corrente do documentário originou-se dele”. Sua obra Nanook of the North, no Brasil Nanook, o Esquimó, de 1920, é tida como um marco fundamental do cinema. Acho fascinante De Sica dizer que quis adotar o estilo documental de Flaherty neste seu filme – que, de fato, às vezes parece mais um documentário do que uma história de ficção.)

“Umberto é um homem velho e, como tal, tem todos os defeitos de um idoso”, prossegue De Sica. “Teria sido mais fácil o retratar como um homem comum, sentimental e patético para atrair a simpatia do público. Mas não o fizemos. Umberto é um velho ‘burguês’, cuja vida passada desconhecemos – ele pode ser um viúvo ou um solteirão. Seu passado não nos diz respeito. O que importa para nós é o Umberto de hoje, com seus 70 anos, um solitário próximo do final da vida, carregando todo o fardo da amargura das lutas passadas, o que faz dele um velho irritadiço, quase insuportável. Não é patético nem sentimental. É gentil apenas com as pessoas boas, e extremamente desagradável com aqueles que não são bons para ele.”

É impossível não sentir pena do pobre homem

Um velho “burguês”. No DVD, esse depoimento de De Sica vem por escrito – seguramente a transcrição de uma entrevista dada por ele, ou talvez de um texto que ele mesmo tenha escrito. O fato é que a palavra “burguês” vem entre aspas.

Sim, o velho Umberto Domenico Ferrari não é um trabalhador braçal, um operário. Lá pelas tantas, ele diz que trabalhou 30 anos no Ministério do Trabalho. Um funcionário público, de trabalho burocrático, diante de uma mesa. E, para os cineastas e o cinema italiano de uma maneira geral, sempre houve essa diferenciação: bom é o trabalhador braçal, o operário. Acima disso, é tudo “burguês”. Da classe média para cima, então, é tudo doente da cabeça e do pé, tudo filho da mãe, explorador da classe trabalhadora.

É fascinante. Apesar de ter trabalhado 30 anos em um Ministério, e justamente o do Trabalho, Umberto D. recebe uma aposentadoria que não dá para pagar sequer o quarto no apartamento da tal Antonia – essa, sim, uma burguesa sem aspas, uma sacripanta, uma bruxa.

A rigor, Umberto D. é tão sem-teto quanto Totò e os demais sem-teto que constroem seus casebres em um terreno desocupado na periferia de Milão no filme anterior da dupla De Sica & Zavattini.

E é fantástico, porque não dá para o espectador deixar de ter pena daquele sujeito pobre e solitário. Amargurado, irritadiço, quase insuportável, na definição do próprio De Sica. Mas solitário demais, pobre demais – e então o distanciamento brechtiano que nos perdõe mas não dá para não ter pena daquele sujeito.

A sequência em que Umberto D. se vê obrigado a pedir esmola na rua – como vê tantos e tantos e tantos outros velhos fazendo –, e tenta estender a mão à espera de uma migalha qualquer, mas sofre com aquilo mais do sofreria de frio ou de fome, é impressionante.

Tão marcante, angustiante, impressionante quanto ela, só mesmo a sequência em que Umberto D., do seu quarto no terceiro andar, olha para as pedras da rua em frente, a possível saída para tanto sofrimento – para em seguida voltar os olhos para o cãozinho Flaike. Como seria possível deixar o cãozinho abandonado à própria sorte?

Quem interpreta Umberto D. é um professor

Como sempre em seus filmes neo-realistas, De Sica escalou para o elenco de Umberto D. atores profissionais e pessoas sem qualquer experiência dramática anterior. O fantástico é saber que Carlo Battisti, o escolhido para fazer o próprio Umberto D., é um não ator. Carlo Battisti era professor de Linguística na Università degli Studi di Firenze – e continuou sendo, depois da experiência de trabalhar como ator. Nunca mais voltou a participar de filme.

Maria Pia Casilio, que interpreta Maria, a segunda personagem que mais tempo fica na tela, também não tinha qualquer experiência de atuação. Ela compareceu com uma amiga ao local em que atrizes estavam se apresentando como candidatas a um papel no filme. De Sica bateu o olho nela e a escolheu.

Ao contrário do professor Battisti, a jovem Maria Pia Casilio passou a ter uma carreira no cinema. Trabalhou em outros filmes de De Sica e se manteve na profissão até o final dos anos 90. Entre seus filmes estão Pão, Amor e Fantasia (1953) e Pão, Amor e Ciúme (1954), comédias românticas dirigidas por Luigi Comencini e estreladas por Gina Lollobrigida e o próprio De Sica, em sua persona de galã.

Maria Pia Casilio seguiu, assim, o exemplo de Lamberto Maggiorani(1909-1983). Lamberto era um operário sem qualquer experiência em atuação quando foi escolhido por De Sica para interpretar Antonio, o personagem principal de Ladrões de Bicicleta (1948). A partir daí, passou a trabalhar como ator – fez 17 filmes, o último deles em 1970.

“Tocante, comovente o tempo todo”

Segundo o IMDb, o mestre Ingmar Bergman citava Umberto D. como seu filme favorito.

No longo verbete sobre Umberto D. no seu Dicionário de Filmes, o historiador Georges Sadoul destaca como sequências marcantes as seguintes: “a manifestação dos aposentados em Roma; a vida solitária num apartamento pobre; a empregadinha (M. P. C.) cuidando de suas tarefas na cozinha e nos dizendo que está grávida, sem que se pronuncie uma palavra; Umberto D. perto de uma passagem de nível, preparando-se para ser esmagado por um trem, e arrependendo-se porque se preocupa com seu cachorro, seu único amigo”.

Diz o livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, editado por Steven Jay Schneider: “Este filme comovente sobre um burocrata aposentado e seu cachorro Flike ficará para sempre na sua memória. (…) Umberto D. foi filmado nas ruas de Roma e os papéis principais são interpretados por atores não profissionais, o que dá ao filme maior urgência e autenticidade. (…) Battisti, um professor aposentado, interpreta o personagem com um senso contido de dignidade e resignação diante da sua situação.”

Leonard Maltin dá ao filme a cotação máxima de 4 estrelas: “Ex-burocrata com uma aposentadoria magra está prestes a ser forçado a morar nas ruas de Roma com apenas seu amado vira-lata para confortá-lo. Consta que De Sica considerava este o seu maior trabalho, e ele devia estar certo; a subtrama sobre a relação de Battisti com a mulher solteira grávida é tão tocante quanto a história principal. Comovente o tempo todo, até a conclusão que faz chorar.”

Eis o que diz Pauline Kael, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira de 1001 Noites no Cinema:

“O Umberto D. de Vittorio De Sica é um senhor teimoso, de padrões burgueses e sem recursos, isolado numa cidade moderna, impessoal, incapaz de se comunicar com alguém a não ser o seu cachorro Flick. A alienação de Umberto contém orgulho e espírito, embora a estrutura frágil seja rígida. Já disseram que este filme é muito enfático em nos tornar conscientes do que é ser um homem – e também, aliás, do que é ser um cachorro. Há episódios elegantes e belos – como a sequência de uma jovem levantando-se da cama -, coisa inconcebível num filme convencional, ou mesmo num documentário da época, já que a sequência não ilustra qualquer tese social, mas existe por si própria, pois Cesare Zavattini, autor do roteiro com De Sica, chamava de ‘amor à reealidade’.

Ahnn… Não sei de onde Dame Kael tirou que o roteiro é dos dois. Os créditos iniciais do filme são claríssimos: soggetto e sceneggiatura de Cesare Zavattini. Mas vamos em frente:

“Esta obra distingue-se dos outros filmes de De Sica, com as possíveis exceções de A Culpa dos Pais e Vítimas da Tormenta – a paixão moral do filme tem uma pureza especial. Zavattini escreveu: ‘Nenhum outro meio de expressão tem a capacidade original e inata do cinema de mostrar as coisas… no que poderíamos chamar sua ‘cotidianidade’. Talvez o que torna este filme incomum seja o fato de sua ‘cotidianidade’ estar impregnada de tanta consciência de que a tela parece luminosa. Não há um minuto de banalidade neste filme direto e simples, sem as habituais dublagens posteriores italianas – mesmo o som de fundo é ao vivo e foi gravado na hora.”

Diz o Guide des Films de Jean Tulard: “Filme importante que se insere na tradição neo-realista. As pessoas vão lembrar do gesto de Umberto estendendo a mão para mendigar e depois, vendo passar um colega, transformando seu gesto naquele de alguém que se inquieta por saber que vai chover.”

Sim, sim, os detalhes, os pequenos detalhes. Faz tempo que repito que os grandes filmes se fazem por pequenos detalhes. Cada detalhe dessa sequência em que o velho Umberto luta entre a necessidade e a vergonha de mendigar é de fato impressionante. Inesquecível.

E pensar que aquele ator não é um ator…

Anotação em março de 2024

Umberto D.

De Vittorio De Sica, Itália, 1952

Com Carlo Battisti (Umberto Domenico Ferrari)

e Maria Pia Casilio (Maria), Lina Gennari (Antonia Belloni, a dona do apartamento), Ileana Simova (mulher no quarto de Umberto), Elena Rea (a freira do hospital), Memmo Carotenuto (o doente no hospital), De Silva (Battistini), Alberto Albani Barbieri (o amigo de Antonia)

Argumento e roteiro Cesare Zavattini

Fotografia G. R. Aldo

Música Alessandro Cicognini

Montagem Eraldo Da Roman

Direção de arte Virgilio Marchi

No DVD Versátil. Produção Giuseppe Amato, Vittorio De Sica, Angelo Rizzoli, Dear Film, Rizzoli Film, Films Vittorio De Sica, Amato Film.

P&B, 91 min (1h31).

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2 Comentários para “Umberto D.”

  1. AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH VOCÊ FEZ UM TEXTO LINDO SOBRE O MEU segundo FILME FAVORITO <33333333333333333333333333 AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH (me sentindo adolescente outra vez, por ora).

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