(Disponível na GloboPlay em 12/2023.)
Ao adaptar para o cinema o romance lançado por Graciliano Ramos em 1933, o cineasta Leon Hirszman optou por levar para o espectador, ipsis litteris, tintim por tintim, uma grande quantidade das frases ditas em S. Bernardo pelo seu trágico narrador, esse impressionante Paulo Honório, caboclo bronco que passou de explorado a explorador no interior de Alagoas.
Essa é, provavelmente, a característica mais forte de S. Bernardo, esta beleza de filme lançado exatamente 40 anos depois do romance, em 1973, na época mais brava, mais dura, mais violenta da ditadura militar instalada no Brasil em 1964.
Leon Hirszman faz grande cinema – e, entre imagens bem cuidadas, de impressionante beleza, brinda o espectador com uma ampla quantidade de frases criadas com o cuidado de ourives por esse escritor que é um dos textos mais belos jamais escritos na Última Flor do Lácio inculta e bela.
Vemos Othon Bastos – a escolha mais perfeita para interpretar Paulo Honório que poderia haver– sentado sozinho à mesa da casa sede da fazenda, diante de folhas de papel em que pretende contar a sua triste história. E ouvimos, com aquela voz inconfundível de ator de sólida formação no teatro, a sua voz nos contando:
– “Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado sem nenhuma ordem, como se vê. Não importa. Na opinião dos caboclos que me servem, todo o caminho dá na venda.”
Ah, meu Deus… Mas que brilho de texto! Coisa de ourives cuidadoso, meticuloso, que trabalha horas e horas em um pequeno pedaço daquilo que virá a ser jóia esplêndida. Dizem que Graciliano relia o que acabara de escrever diversas, diversas vezes, para retirar uma palavra que considerasse mal colocada, para melhorar a pontuação. Jamais permitiria uma frase como essa anterior aí, contendo três “quês”. Você pode ler toda a obra de Graciliano e seguramente não encontrará uma única frase com dois “quês”.
A mais bela frase que já foi escrita sobre o ato de escrever – de criar, portanto – está nas Memórias do Cárcere, a obra publicada em dois volumes em 1953, pouco depois da morte do escritor, em março daquele ano, aos 60 anos de idade. e que seria filmada em 1984 por Nelson Pereira dos Santos:
“Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Polícia e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.”
Apesar da origem muito pobre, dura, Paulo Honório, o anti-herói criado por Graciliano Ramos, conseguiu conhecer bem a gramática, e nas memórias que vai escrevendo e contando para leitor (e, no filme, para o espectador) consegue se mexer maravilhosamente bem. A vida que levou, pisando nos outros para juntar bens, enriquecer, no entanto, não deu a menor atenção às leis. A nenhuma lei.
Beleza de tomadas, de atuações, de texto
Leon Hirszman e seu diretor de fotografia, o reconhecido, aclamado Lauro Escorel, 10 prêmios e 23 indicações, optaram por planos longos. Nada de montagem acelerada. Muito ao contrário – planos mais longos, às vezes lentos, como o ritmo da vida no interiorzão das Alagoas naqueles anos 1930.
E muitos planos mais abrangentes, mais distantes dos personagens. Sem qualquer pretensão a ser exato, é claro, eu diria que talvez em uns dois terços do filme Hirszman e Escorel usaram planos de conjunto e planos gerais. E reservaram para apenas alguns momentos os close-ups do rosto sempre expressivo, forte, duro, rude, de Othon Bastos-Paulo Honório.
Quando, lá pela metade dos 113 minutos do filme, entra na vida de Paulo Honório a tímida, recatada professorinha Madalena (o papel de Isabel Ribeiro), a câmara meio que esconde do espectador, por algum tempo, o seu rosto. Como se Madalena não quisesse se mostrar. Achei isso uma beleza de sacada, uma amostra de sensibilidade.
Beleza de tomadas, beleza de interpretações, beleza de texto. Não consigo me impedir de transcrever alguns trechos do livro que Leon Hirszman transcreveu ipsis litteris no filme, e ouvimos com a bela voz de Othon Bastos.
– “O meu fito na vida foi apossar-me das terras de S. Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador, introduzir nestas brenhas a pomicultura e avicultura, adquirir um rebanho bovino regular.”
– “A princípio o capital se desviava de mim, e persegui-o sem descanso, viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras, realizando operações embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações de armas engatilhadas.”
– “A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízos; fiz coisas ruins que me deram lucro.”
E esta aqui – meu Deus do céu e também da Terra, que dureza, que secura, que amargor. Que pessoa desprovida de bons sentimentos, de humanidade.
– “Amanheci um dia pensando em casar. Não que estivesse amando, pois não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar. (…) O que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo.”
Um cineasta de obra densa, importante
Leon Hirszman teve vida curta – nascido no Rio de Janeiro em 1938, morreu em 1987, antes de completar 50 anos – e obra densa, importante, sempre ligada a temas sociais e à classe trabalhadora. Nos filmes de ficção, adaptou, além deste romance de Graciliano Ramos, peças fundamentais de grandes dramaturgos, Nelson Rodrigues (A Falecida, 1965, com Fernanda Montenegro, Paulo Gracindo e Ivan Cândido), e Gianfrancesco Guarnieri (Eles Não Usam Black-tie, 1981, com o próprio Guarnieri, Fernanda Montenegro e Carlos Alberto Ricelli).
Nos documentários, filmou os trabalhos e os depoimentos de gente como a psiquiatra Nise da Silveira (Imagens do Inconsciente, 1987), Fernando Henrique Cardoso e Sérgio Buarque de Hollanda (Que País é Este?. 1976), Luiz Inácio Lula da Silva, Lelia Abramo, Bete Mendes (ABC da Greve, 1990).
Teve sempre grande ligação com a música popular brasileira, em filmes de ficção (Garota de Ipanema, 1967) e em documentários (Nelson Cavaquinho, 1969, Partido Alto, 1976, Carnaval do Povo, 1978, Bahia de Todos os Sambas, 1996).
E grande ligação, também, com a política – desde cedo. Militante do Partidão, o PCB, foi um dos fundadores do CPC, Centro Popular de Cultura, da UNE, e sua estréia no cinema foi em 1962, no histórico, marcante Cinco Vezes Favela, produzido pelo próprio CPC. Os outros quatro segmentos do filme eram assinados por Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Miguel Borges e Marcos Farias.
Diz dele Helena Salem, na monumental Enciclopédia do Cinema Brasileiro, de Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda, organizadores:
“Um dos construtores de um novo cinema no país, Hirszman, embora tenha filmado pouco para o seu imenso talento, realizou uma obra fundamental, em que se destacam: uma reflexão profunda sobre o Brasil; a busca permanente do apuro técnico; a preocupação com os oprimidos e marginalizados, incluindo as mulheres, que o diretor conseguiu retratar com rara complexidade e sensibilidade.”
Othon e Isabel, atores de teatro, cinema e TV
Não há brasileiro que goste de cinema capaz de se esquecer de Othon Bastos como o cangaceiro Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Aquela foi, talvez, sua mais memorável interpretação no cinema – mas seu desempenho como Paulo Honório é igualmente brilhante.
A filmografia de Othon Bastos é monumental, com quase 140 títulos. Nascido na pequena cidade baiana de Tucano, em 1933, mudou-se ainda adolescente para o Rio de Janeiro e antes dos 20 anos já trabalhava no teatro. Eu não sabia disso, mas ele teve um período de estudo de teatro em Londres, a terra dos grandes atores e atrizes. Fez cinema, teatro e televisão, e, aos 90 anos de idade, continuava firme na carreira: participou das séries Santo Maldito e Fim, ambas de 2023.
Como Othon Bastos, a paulista de Jundiaí Isabel Ribeiro começou no teatro e fez também cinema e televisão – mas, ao contrário do ator, teve vida breve. Morreu em 1990, aos 48 anos, de câncer. Deixou uma filmografia vasta, que começou com uma pequena participação em Todas as Mulheres do Mundo (1967) e incluiu Lance Maior (1968), de Silvio Back, Azyllo Muito Louco (1970), de Nelson Pereira dos Santos, Os Herdeiros (1970), de Cacá Diegues, Toda Nudez Será Castigada (1973), de Arnaldo Jabor.
Na televisão, a bela Isabel Ribeiro esteve em diversas novelas de sucesso da Globo, como O Rebu, O Noviço, O Grito, Sol de Verão, Champagne.
Não se percebe na tela que o orçamento foi pequeno
Em seu longo verbete sobre Leon Hirszman na Enciclopédia do Cinema Brasileiro, Helena Salem diz o seguinte sobre S. Bernardo:
“Adaptação fiel do livro homônimo de Graciliano Ramos, São Bernardo conta a história de um homem pobre que se torna latifundiário, utilizando todos os meios para atingir suas metas. Extremamente elaborado, foi feito com pouquíssimos recursos, embora essa precariedade não seja percebida na tela. Leon utilizou toda a sua criatividade, incluindo a técnica de ensaios reiterados, para permitir gastar o mínimo de negativo possível sem sacrificar a qualidade. Um de seus filmes mais bonitos, mereceu entusiasmados elogios do jornal americano The New York Times, que o qualificou de “belo, solene e quase cerimonioso” (Vincent Canby). A censura da ditadura militar reteve São Bernardo por sete meses, exigindo cortes de cunho político. Leon não aceitou fazer. Foi o prêmio Margarida de Prata, outorgado em 1973 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que abriu as portas para a liberação do filme. No entanto, a demora em estrear levou a Saga Filmes (uma sociedade entre Leon Hirszman e Marcos Farias) a um processo de falência, fazendo com que Leon permanecesse quase dez anos sem fazer um novo longa-metragem, até que se resolvesse o processo judicial.”
Aqui é preciso registrar um detalhinho. A Enciclopédia do Cinema Brasileiro grafa o título – assim como o IMDb, e muita gente – como São Bernardo, e por isso mantive essa forma ao transcrever. Mas o filme usa, nos créditos iniciais, a forma S. Bernardo – que é também a forma usada no livro de Graciliano Ramos.
Eis o que diz a Histórias Ilustrada dos Filmes Brasileiros 1929-1988, de Salvyano Cavalcanti de Paiva:
“Do romance simples, humano, de profunda reflexão social de Graciliano Ramos, o diretor Leon Hirszman conseguiu realizar uma de suas produções mais bem acabadas, São Bernardo – história de um homem ambicioso que consegue ser um grande proprietário de terras mas, roído pelo ciúme (aqui ele faz um spoiler que deixo de fora) e abraça a solidão como companheira. Vencedor social, derrotado pessoal, o protagonista do drama encontrou em Othon Bastos o intérprete perfeito de suas angústias. O elenco homogêneo incluía Isabel Ribeiro, Vanda Lacerda, Nildo Parente, Mário Lago, Josef Guerreiro, Rodolfo Arena, Jofre Soares, João Labanca, Audrey Salvador e José Policen. Roteiro e direção de Leon Hirszman, fotografia de Lauro Escorel Filho e Morais Filho, cenografia de Luís Carlos Ripper, edição de Eduardo Escorel e música de Caetano Veloso, o filme ganhou o Prêmio de Crítica no Festival de Gramado de 1974.”
S. Bernardo é um belo, um grande filme.
Anotação em dezembro de 2023
S. Bernardo
De Leon Hirszman, Brasil, 1972
Com Othon Bastos (Paulo Honorio)
e Isabel Ribeiro (Madalena),
Nildo Parente (Padilha), Vanda Lacerda (Dona Glória), Mário Lago (Nogueira), Josef Guerreiro (Gondim), Jofre Soares (Padre Brito), Rodolfo Arena (Dr. Magalhães)
Roteiro Leon Hirszman
Baseado no romance de Graciliano Ramos
Fotografia Lauro Escorel
Música Caetano Veloso
Montagem Eduardo Escorel
Direção de arte Luis Carlos Ripper|
Figurinos Luis Carlos Ripper
Produção Henrique Coutinho, Marcos Farias, Luna Moskovitch, Márcio Noronha, Embrafilme, Mapa Filmes, Saga Filmes
Cor, 113 min (1h53)
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