Depois da Cabana / Liebes Kind

[rating:3}

(Disponível na Netflix em 10/2023.)

Uma mulher sequestrada, abusada, espancada constantemente, mantida em cativeiro, em uma casa hermeticamente fechada, em que não penetra um raio de luz de sol. Duas crianças trancadas ali, anos e anos sem enxergar o céu – e educados com uma rigidez inimaginável pelo pai psicopata, louco varrido, a tal ponto que, sempre que ele chega do mundo exterior, elas erguem os braços para frente, para exibir as mãos, as palmas e as costas das mãos, para provar que estão cuidadosamente limpas.

E as crianças idolatram o pai carrasco, na mais absurda demonstração da Síndrome de Estocolmo, o amor da vítima pelo sequestrador.

Há cenas de facas sendo enfiadas em pessoas, o sangue esvaindo.

Para quem gosta desse tipo de história, com toda essa carga de violência, um grau de insanidade aterrador, e toda essa – felizmente – distância das vidas reais da imensa maior parte dos seres humanos, a minissérie Depois da Cabana é perfeita.

É uma produção alemã de 2023, com seis episódios de cerca de 60 minutos cada. O título brasileiro é uma invenção distante do original, Liebes Kind, que significa querida criança; nos países de língua inglesa o título é literal, Dear Child. E não há propriamente cabana na história: o local em que o psicopata mantém presos a mulher e os dois filhos – uma garota de 12 anos e um garoto de uns 8 – não tem nada de cabana; é uma casa de alvenaria, de vários aposentos, em que está instalada um moderno sistema de monitoração por diversas câmaras, através de que o psicopata observa todos os movimentos de seus prisioneiros.

A única coisa que tem algum sentido no título brasileiro é a palavra “depois”. Os dias de hoje – a base da ação – são os dias que vêm depois que a mulher consegue fugir da casa.

Besteira do título brasileiro à parte, trata-se de uma produção caprichadíssima. Tudo, todos os elementos, todos os quesitos são esmeradissimamente bem realizados. Direção de arte, fotografia, movimentos de câmara, figurinos, é tudo de primeiríssima qualidade. O número de personagens importantes na trama é muito grande, mais de uma dezena, de uma dúzia – e os atores estão homogeneamente bem dirigidos. As interpretações todas são excelentes.

E o roteiro é soberbamente bem escrito.

Há muitos flashbacks – muitos, demais da conta. Eles surgem para explicar para o espectador as origens dos fatos do momento atual, para mostrar o contexto em que tal ou tal coisa veio a acontecer, para explicar por que tal e tal personagem está agindo daquela forma.

Em muitos momentos, ao longo dos seis episódios, várias vezes em cada um deles, a montagem reúne sequências de épocas diferentes, completamente fora da ordem cronológica, para surpreender o espectador.

É um grande quebra-cabeça de centenas e centenas de peças, que os roteiristas vão montando diante de nós, indo e voltando no tempo. Vão montando de maneira inteligente, esperta, que prende o espectador e não o deixa escapar – mas a junção das peças do quebra-cabeça é demorada, vagarosa. Quase uma tortura.

Uma abertura impactante, fortíssima

Como é o usual em boa parte dos filmes e séries, cada episódio abre com uma espécie de intróito, dois minutos de ação, antes de entrarem os créditos iniciais.

Os dois minutos que abrem a série mostram uma mulher loura brincando com duas crianças dentro de casa, até que chega o homem da família, tranca a porta pela qual entrou, fiscaliza as mãos dos três, entrega barras de alimento para os meninos e, para a mulher, que exibe para ele e para o espectador uma palma da mão com uma grave queimadura, tem apenas uma repreensão: – “Você sabe que não deve chorar na frente deles, Lena. Lembre-se das regras”.

O rosto da mulher é de um ser apavorado, aterrorizado. Claramente, evidentemente a vítima de um homem violentíssimo.

A câmara, é claro, é óbvio, não mostra o rosto do homem, o bandido, o louco, o psicopata. A identidade dele é um dos mistérios da trama.

Entram os créditos iniciais. Curtíssimos: apenas “Uma série Netfix”, depois “Uma produção Constantin Television” e o título, Liebes Kind. Todos os nomes dos realizadores, dos técnicos e dos atores só virão nos créditos finais de cada episódio.

E, depois desses rápidos créditos iniciais, vemos a mulher fugindo da casa. É de noite, e ela sai vestindo uma camisola de dormir, para o meio de uma floresta.

O espectador não vê, mas um barulho indica que, na sua fuga desesperada, a mulher chega a uma estrada – e é atropelada.

Mas não morre. Chega a polícia àquele lugar remoto, no meio de uma floresta. Uma ambulância leva a mulher bastante ferida – e não apenas pelo atropelamento, mas também pela tortura a que era submetida no cativeiro. E leva junto a garotinha de 12 anos, Hannah – que, um tanto estranhamente, não havia sido mostrada fugindo da casa-cativeiro com a mulher.

Uma moça chamada Lena havia desaparecido 13 anos antes

Bem. Este aí é o iniciozinho do primeiro dos seis episódios da minissérie. Vou relatar um pouquinho mais sobre a trama – procurando, é claro, não dar spoiler algum.

Treze anos antes dos fatos mostrados no início da narrativa – uma mulher que o homem chama de Lena conseguindo fugir da casa-cativeiro, para ser logo em seguida atropelada, e levada gravemente ferida e inconsciente para um hospital –, havia desaparecido uma jovem chamada Lena (o papel de Jeanne Goursaud).

Lena era uma jovem universitária linda, maravilhosa, especial, que todo mundo amava – e, depois de uma festa com os amigos, sumiu, desapareceu, nunca mais foi vista. A polícia havia feito buscas cuidadosas, extensas – mas não havia encontrado uma única pista sequer.

O policial encarregado do caso, Gerd Bühling (Hans Löw), era vizinho e amigo de Lena desde sempre. Dedicou-se de corpo e alma à procura da moça – e jamais deixou de pensar nela ao longo dos 13 anos decorrido desde o desaparecimento. Monitorava as movimentações das policiais da região – e logo ficou sabendo do caso da mulher atropelada numa estrada no meio de uma floresta.

Poderia ser Lena, pensou ele – e logo ligou para os pais da desaparecida, Mathias e Karin Beck (os papéis de Justus von Dohnányi e Julika Jenkins).

Gerd, Mathias e Karin vão até o hospital em que a mulher está internada. Mathias bate o olho nela e diz que aquela não é sua filha Lena.

No corredor do hospital, no entanto, Mathias e a garotinha Hannah se vêem. Mathias vê em Hannah sua filha Lena aos 12 anos de idade – e Hannah olha para ele e diz “vovô”.

(Diz, na verdade, é claro, “Großvater” – e eu fico impressionado como há coisas no Alemão, essa língua que conheço tanto quanto física quântica, que estão próximas do Inglês. Großvater, grandfather. House, haus. Kind, child. Kindergarten, kindergarten.)

O teste de DNA vai mostrar que a mulher que fugiu da casa-cativeiro e foi atropelada não é mesmo a desaparecida Lena, embora fosse assim que ela fosse chamada pelo psicopata-torturador-carcereiro. Chama-se na verdade Jasmin (o papel da ótima Kim Riedle,  na foto acima). Sequer era loura – tornou-se loura artificialmente, obedecendo às ordens do maníaco. Não tinha uma queimadura feia na palma da palma, como a Lena desaparecida tinha – a queimadura feia foi imposta a ela pelo louco.

A policial encarregada do caso dessa moça Jasmin que fugiu de um cativeiro e foi atropelada e levada para um hospital é séria, competente, abnegada. Chama-se Aída Kurt (Haley Louise Jones, na foto abaixo), vai se dedicar completamente ao caso. Acha estranho que o policial Gerd Bühling tenha chefiado as buscas por Lena, já que tinha envolvimento afetivo com ela – mas aceita trabalhar junto com ele na investigação.

A garotinha Naila Schuberth é um absoluto espanto

Todos os atores estão – repito – excelentes. Germanicamente perfeitos. Eu só me lembrava do rosto de Hans Löw, que faz esse tenso, nervoso, depressivo policial Gerd Bühling, atormentado desde sempre pelo desaparecimento da moça que era sua amiga de infância e, ao que tudo indica, o objeto de sua paixão. Não sei se na Alemanha são famosos, respeitados, esses atores todos que fazem os papéis mais importantes da trama – mas são competentes, e estão muito bem dirigidos.

Mas o que mais impressiona é Naila Schuberth (na foto abaixo), que faz Hannah, a garotinha de 12 anos filha da Lena desaparecida, criada pelo psicopata. Meu Deus do céu e também da Terra, mas o que que é aquilo?

É de dezembro de 2011 – tem só dois anos mais que minha netinha. Esta série aqui foi o oitavo título de sua filmografia – o primeiro, Bettys Diagone, uma série de TV, é de 2020, ano em que a garotinha ainda iria completar 9 anos de idade!

E aí é impossível evitar a questão: é justo, é legítimo, é ético fazer uma criança de 12 anos interpretar uma personagem que vive com um pai louco de pedra e diversas mulheres – uma de cada vez, é claro – que ele sequestra e transforma em sósias da Lena original? Não haveria aí um risco sério de transtornar a cabeça da garotinha, meu Deus?

Bem. Sei lá. As coisas estão tão malucas…

Interessante: vimos esta série alemã em que brilha uma atriz mirim de 12 anos, no papel de uma criança criada por um psicopata brutal, pouco depois de ver uma série australiana em que brilha uma atriz mirim de 13 anos, no papel de uma criança cujo pai é brutal e espanca a mulher e a filha.

São praticamente da mesma idade a alemã Naila Schuberth e a australiana Alyla Browne, que interpreta a personagem título da bela série As Flores Perdidas de Alice Hart, do mesmo ano desta Liebes Kind aqui. A australiana é de 2010, a alemã Naila Schuberth, de 2011.

As duas garotinhas têm interpretações tão impressionantes quanto – para lembrar só três casos excepcionais – Tatum O’Neal em Lua de Papel (1973). Patty Duke em O Milagre de Annie Sullivan (1962) e Judy Garland em O Mágico de Oz (1939).

A série se baseia em romance escrito por uma jovem

A grande maioria das séries dá crédito ao (s) criador (es), em geral profissionais que são responsáveis pelo roteiro e também atuam como produtores ou produtores executivos. Esta Liebes Kind é uma exceção – os créditos não usam as expressões criadores, criação.

São dois diretores, que também assinam o roteiro: Isabel Kleefeld     e Julian Pörksen. E os dois não trabalharam juntos, ao mesmo tempo – ela dirigiu três episódios, ele, os outros três. Isabel é de Düsseldorf, de 1966, e tem 28 títulos no currículo como diretora. Julian Pörksen é garoto de tudo, nasceu em 1985, em Freiburg. A série foi o quinto título dele como diretor.

O roteiro escrito pelos dois se baseia no romance de Romy Hausmann, uma moça quase tão jovem quanto Julian Pörksen: nasceu em 1981, na então República Democrática Alemã, a Alemanha Oriental comunista. Parece ser daquele tipo geninho: aos 24 anos já era editora-chefe de uma produtora cinematográfica em Munique.

Liebes Kind foi seu primeiro livro, esteve entre os mais vendidos na Alemanha e já foi publicado em 20 países, inclusive Portugal; a Porto Editora o lançou como A Rapariga da Cabana. Eis o início da sinopse do livro feita pela editora portuguesa:

“Uma cabana sem janelas no bosque. Uma corrida desesperada para escapar ao terror e encontrar a segurança. Quando uma mulher consegue fugir do cativeiro em que a têm mantido, o final da história é apenas o princípio do seu pesadelo. Diz chamar-se Lena, como a rapariga desaparecida catorze anos antes, e até tem uma cicatriz igual à dela. Porém, o pai de Lena garante que esta mulher não é a sua filha. Com ela, escapou também Hannah – uma menina pequena e frágil –, cujas palavras indiciam que algo muito grave aconteceu numa cabana isolada.” (Na foto abaixo, Hans Löw, que faz o policial Gerd Bühling.)

Há obras demais sobre psicopatas super-homens

A série foi lançada no dia 7 de setembro de 2023; como escrevo esta anotação no início de outubro, passou-se pouco tempo para que ela tivesse muitas avaliações. Mas já dá para ver os números iniciais, e, no IMDb, ela está com nota 7,4 em 10, média da opinião de 14 mil leitores do site enciclopédico.

Uau! No Rotten Tomatoes a série Dear Child está com 100% de aprovação entre os críticos, e 84% entre os leitores do site.

É uma série extremamente, fantasticamente bem realizada, sem dúvida alguma, como já foi dito.

No entanto, registro aqui que, a partir ali do terceiro episódio, a série passou a me incomodar. Quando terminamos de ver, percebi que estava me sentindo como se tivesse desperdiçado meu tempo.

É algo extremamente pessoal. Não tem nada a ver com a qualidade da série. É com o tema, com a coisa do assassino e torturador psicopata tremendamente talentoso que consegue cometer crimes durante um longo período de tempo – 13 anos, no caso! – sem que ninguém descubra.

Há filmes e séries demais sobre esse tipo de coisa. Isso me cansa. Definitivamente, preciso parar de ver obras assim.

Eu já havia achado As Flores Perdidas de Alice Hart apavorante demais – mas a história, ali, envolvia um homem que tinha acessos de brutalidade, e naqueles momentos batia na mulher e na filhinha. Isso é algo – infelizmente – comum, acontece em muitas, muitas, muitas famílias. Já aconteceu até perto de mim. E a série australiana dava ênfase à vida familiar, aos efeitos do comportamento do homem violento sobre a mulher, a filhinha, as pessoas ao redor.

Esta Liebes Kind trata, repito, de um psicopata brutal de imenso “talento”, quase um super-homem. É coisa de literatura, de filme – não tem quase nada a ver com a vida real, com 99% da humanidade.

Mary, que gostou da série e não teve essa visão que eu tive, argumentou que existem casos assim. Volta e meia os jornais noticiam histórias de sujeitos que trancaram mulher ou filhos durante anos e anos.

Sim, isso é verdade.

Mas eu não aguento mais ver esse tipo de coisa. Deu. Cansei.

Anotação em outubro de 2023

Depois da Cabana/Liebes Kind

De Isabel Kleefeld e Julian Pörksen, diretores e roteiristas, Alemanha, 2023

Com Kim Riedle (Jasmin),

Naila Schuberth (Hannah, a filha de 12 anos),

Hans Löw (Gerd Bühling, o policial),

Haley Louise Jones (Aida Kurt, a policial),

Justus von Dohnányi (Matthias Beck, o pai de Lena), Julika Jenkins (Karin Beck, a mãe de Lena), Sammy Schrein (Jonathan, o filho de uns 8 anos), Jeanne Goursaud (Lena Beck), Birge Schade (a enfermeira Ruth), Christian Beermann (o pai das crianças), Seraphina Schweiger (Ines Reiger), Özgür Karadeniz (médico)

Roteiro Isabel Kleefeld, Julian Pörksen

Baseado no romance de Romy Hausmann

Fotografia Alexander Fischerkoesen, Martin Langer

Música Gustavo Santaolalla e Juan Luqui

Montagem Christoph Cepok, Renata Salazar-Ivancan

Casting Sabine Schwedhelm

Desenho de produção Cordula Jedamski

Figurinos Genoveva Kylburg

Produção Friederich Oetker, Tom Spiess, Constantin Television

Cor, 286 min (4h46)

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