(Disponível no YouTube em 12/2023.)
O IMDb rotula este The Amazing Mr. X, no Brasil O Mìstico, em três categorias: filme noir, terror e suspense. O Cinemania, uma beleza de obra, diz mistério. O AllMovie usa horror, mistério, thriller.
O absolutamente inequívoco é que é um filme B. Foi lançado em 1948 por uma produtora micro, Ben Stoloff Productions; são bem pouco famosos tanto o diretor, Bernard Vorhaus, quanto os atores, Turhan Bey, Lynn Bari, Cathy O’Donnell, Richard Carlson, Donald Curtis; é nítido que foi feito com orçamento baixíssimo; e é curtinho, apenas 78 minutos.
Tem um tanto de cada um dos gêneros atribuídos a ele. Não chega exatamente a ser um filme de terror – mas fala de espíritos, de mortos, de contato com os mortos, e esse tema, afinal, em geral é considerado próximo das histórias de horror.
Espíritos, gente morta, contato com os mortos, mediunidade. Não são muitos os filmes que abordem essas coisas. O que me vem à cabeça assim, de imediato, sem pensar muito, são alguns Woody Allen e um Alfred Hitchcock. Mas Allen é um artista do humor; ele usa a procura de contato com o outro mundo, com o desconhecido, para nos fazer rir, em obras gostosas como O Escorpião de Jade/The Curse of the Jade Scorpion (2001) e Magia ao Luar/Magic in the Moonlight (2014).
E Hitch… Bem, Hitch sempre bota generosas doses de bom humor no meio de suas histórias de suspense, e em Trama Macabra/Family Plot, seu longa-metragem número 53 e último, ele mais faz rir do que assusta com a história deliciosa da falsa vidente/espiritualista/médium Blanche Tyler, interpretada por Barbara Harris.
Além de falar do tema pouco explorado, este obscuro The Amazing Mr. X (que também foi exibido com o título mais curto de The Spiritualist) tem uma outra característica que me pareceu interessantíssima. Apesar de ser tão curtinho, ele apresenta duas grandes reviravoltas, uma quando estamos aos 38 minutos dos seus 78 de duração, e outro aos 53 minutos.
Sim, são reviravoltas, ou “mudança brusca de uma situação qualquer”, como se define o termo em uma página da internet acionada pelo Tio Google. Mas não são reviravoltas típicas das histórias, digamos, de um Harlan Coben – porque não são ilógicas, improváveis, implausíveis. Ao contrário – têm todo sentido. São até mesmo, de alguma maneira, um tanto previsíveis. Mas são “mudanças bruscas de uma situação qualquer”. Autênticas reviravoltas.
São meio como os dribles de Garrincha. Garrincha fazia o João (qualquer jogador da defesa para ele era João) pensar que ele iria para a esquerda. O João e todo mundo no estádio. Só que, na última hora, ele ia para a direita. Ou vice-versa, claro.
É o que faz a história criada por um sujeito chamado Crane Wilbur, que foi roteirizada por Muriel Roy Bolton e Ian McLellan Hunter.
Direção Bernard Vorhaus, estrelando Turhan Bey, Lynn Bari, Cathy O’Donnell, Richard Carlson. Donald Curtis. Ninguém se lembraria de qualquer um desses nomes, a não ser o Rubens Ewald Filho.
O desconhecido demonstra saber muito sobre Christine
O cartão de visitas que Alexis entrega para a bela Christine Faber, quando os dois se encontram pela primeira vez – o filme está chegando aos 10 minutos –, na praia deserta, numa noite escura, diz “Alexis, psychic consultant”. Psychic – mostra meu Dicionário Exitus, que leva a grife de Antônio Houaiss – é médium, psíquico, mediúnico, espírita, espiritista.
Daí o segundo título em inglês dado ao filme, The Spiritualist. Daí também o título com que o filme foi lançado no Brasil, O Místico. (No YouTube, onde está disponível agora, em cópia boa, som original com legendas, ele aparece como O Incrível Senhor X.)
Fumando um cachimbo, vestido como se estivesse saindo de uma festa, de smoking, na praia deserta na noite escura, Alexis diz para Christine, ela também de roupa para sair à noite em um compromisso social, que vê gente morta.
O que Alexis-Turhan Bey diz para Christine-Lynn Bari é exatamente o mesmo que o garotinho Cole Sear-Haley Joel Osment de O Sexto Sentido (1999). – “I see dead people.”
O que deixa Christine absolutamente surpresa – e também impressiona o espectador – é que Alexis demonstra conhecer diversos fatos da vida da mulher.
Nunca haviam se visto. Christine literalmente esbarra nele, em um momento em que não olhava para a frente, e sim para o lado, para o mar, bem próximo de seus pés, ou para a coruja que piava numa árvore ali pertinho. E imediatamente aquele completo desconhecido começa a falar coisas sobre ela como se a conhecesse profundamente, há muito tempo.
Ele vê que não há aliança no dedo dela, e diz: – “Penso que você era casada. Vi o seu marido.., Morto. E você está prestes a se casar novamente. Mas parece que me enganei. Isso às vezes acontece. Boa noite, e adeus.”
Beija a mão dela, e dá alguns passos em frente, para a direção de onde ela vinha.
Christine, estupefata, vai atrás dele: – “Espere. Você não se enganou. Meu marido morreu há dois anos.”
Alexis: – “É, eu não poderia estar errado. Eu o vi… morto, em seu carro em chamas. Sinto muito.”
Christine: – “Não entendo como você pode saber de tudo isso.”
E então ele puxa seu cartão de visitas e entrega para ela. Christine lê em voz alta o que está escrito: “Alexis, psychic consultant”.
Ah, ela vai consultá-lo! Não há dúvida alguma de que ela vai consultá-lo!
Christine acha que ouve a voz do marido morto
Como foi dito, Christine esbarra em Alexis, psychic consultant, quando o filme está chegando aos 10 minutos.
É necessário registrar o que acontece antes desse encontro dos dois principais personagens da trama bolada por Crane Wilbur, seja ele quem for.
Nos 10 primeiros dos parcos 78 minutos de The Amazing Mr. X…
Diabo de título meio chegado ao ridículo. O cara tem nome. Tá certo que não tem sobrenome, é só Alexis, mas tem nome. Por que raios Mr. X?
Bem. Nos 10 primeiros minutos do filme, somos apresentados a Christine e à sua irmã bem mais jovem Janet (o papel de Cathy O’Donnell).
Moram, só as duas, sem pai ou mãe, em uma ampla mansão localizada no alto de um promontório, diretamente diante do mar. Não se fala em momento algum o que aconteceu com os pais e que lugar poderia ser aquele – uma área com promontório, diante de uma praia absolutamente deserta, longe de tudo e de todos. Sim, a mansão fica isoladona, sem vizinhos.
Christine perdeu o marido, Paul Faber, dois anos antes, morto em um acidente de carro – o carro bateu, pegou fogo. Ela o amava profundamente, e continua amando no momento atual, dois anos depois – e tem tido sonhos com ele. Ouve, ou acha que ouve, a voz dele chamando por ela. Ouve até a música preferida dele, uma ária tocada ao piano.
Jovem ainda, bela, Christine é paquerada, procurada, por um sujeito que mora ali na região, embora as propriedades não sejam exatamente próximas uma da outra. O cara, Martin Abott (Richard Carlson), insiste e não desiste. Na noite em que a ação começa, os dois haviam combinado de se encontrar – e a irmãzinha Janet fica insistindo em que a qualquer momento Martin vai pedir Christine em casamento, e, diabo, ela precisa dizer sim.
Christine liga para Martin e diz que vai caminhar pela praia até a casa dele, para que então eles saiam para jantar.
E aí ela desce uma escadinha compriiiida até a praia, e começa a caminhar rumo à casa de Martin – e passa a ouvir sons que parecem a voz do falecido marido chamando por ela.
Até que de repente esbarra com um sujeito que diz que já viu o marido dela morto.
Então, aos 38 minutos de duração do filme, o personagem título, Mr. X, na verdade Mr. Alexis, The Spiritualist, O Místico, surpreende o espectador. Não exatamente como uma reviravolta absolutamente inesperada, mas, de qualquer forma, com uma mudança brusca de tom da história.
E aí, aos 53 minutos de filme, faltando 25 para terminar, Garrincha, que vinha indicando que iria driblar à direita, surpreende e dribla para a esquerda. Quer dizer, surge uma reviravolta – que é reviravolta, mesmo que o espectador mais atento, mais safo, já tenha previsto. O próprio Mr. X, na verdade Mr. Alexis, The Spiritualist, O Místico, fica assombrado com ela!
Um diretor respeitado por vários de seus grandes pares
Antes de me sentar para escrever esta anotação, pensei que deveria dizer de forma clara: este não é propriamente um bom filme. A rigor, ele só interessa mesmo a quem gosta de filmes dos anos de ouro de Hollywood, em especial a quem gosta de filmes B. Aquelas produções de baixo orçamento, sem grande diretor, sem o charme de grandes astros e estrelas – mas feitos com gosto, guts e talento.
Assim que o filme acabou, fui logo ver se ele estava no livro A Outra Face de Hollywood: Filme B, do estudioso carioca A.C. Gomes de Mattos. Yes, está lá. O professor faz, como sempre, uma cuidadosa, detalhada sinopse da trama – em que, na verdade, revela coisas que não deveriam ser reveladas, spoilers. Após a sinopse, ele diz: “A história tem seu fascínio, porém o que dá mais prestígio ao filme é a magnífica fotografia de John Alton em várias cenas. Por exemplo: na abertura com se fosse um sonho, nas sessões de clarividência, quando a luz emana diretamente da bola de cristal de Alexis; naquele enquadramento da mulher na praia bem de longe em câmera alta etc.”
Perfeito. É isso mesmo. Produção B, orçamento baixíssimo – e no entanto o filme tem uma beleza de fotografia.
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4: “Intrigante pequeno filme para assustar, em que a rica, vulnerável viúva (Lynn) Bari sente desesperadamente a falta do marido morto. Conseguirá ela entrar em contato com ele via os poderes do psíquico (Turhan) Bey? Também conhecido como The Spiritualist.”
Sobre a bela atriz Lynn Bari (1913-1989), a Katz’s Film Encyclopedia diz o seguinte:
“Filha de criação de um clérigo, o reverendo Robert Litzer, ela participou de peças na escola e fez sua estréia nas telas como uma dançarina em Dancing Lady (1933). Mais tarde tornou-se uma competente atriz, fazendo papéis principais e de segunda protagonista, principalmente para a Fox, muitas vezes como ‘a outra mulher’, em produções baratas, incluindo mistérios de Charlie Chan e Mr. Moto. Nos anos 50 estrelou em séries de TV e participou de turnês de companhias teatrais.”
E, finalmente, alguma informação sobre o diretor Bernard Vorhaus (1904-2000).
Nascido em Nova York, foi assistente de direção de William Wyler em A Princesa e o Plebeu/Roman Holiday, aquela deliciosa obra-prima. Sua filmografia como diretor tem 35 filmes, realizados entre 1933 e 1952. Este O Místico é um de seus últimos filmes; depois dele, faria apenas mais três, dos dos quais tiveram títulos, digamos, chamativos no Brasil: Depravadas, no original So Young, So Bad, e Garotas de Luxo, em inglês Luxury Girls.
Foi apontado como comunista durante o macarthismo e colocado na lista negra, o que explica porque não voltou a dirigir após 1953. Passou a adotar o nome falso de Piero Musetta, e a partir daí trabalhou como assistente de direção.
Meu Deus! Vejo agora que, como assistente de direção e com o pseudônimo, participou da realização de belos filmes feitos por grandes diretores. Além de A Princesa e o Plebeu, trabalhou em A Condessa Descalça (1954), de Joseph L. Mankiewicz, Guerra e Paz (1956), de King Vidor, O Americano Tranquiilo (1958) de Mankiewicz, Uma Cruz à Beira do Abismo (1959), de Fred Zinnemann, e Cinco Mulheres Marcadas (1960), de Martin Ritt.
Sinal de que a indústria o desprezou, depois que foi denunciado ao nojento Comitê da Câmara de Deputados sobre Atividades Anti-Americanas – mas alguns de seus pares mais importantes o abrigaram em seus filmes. Fascinante.
Anotação em dezembro de 2023
O Místico/The Amazing Mr. X ou The Spiritualist
De Bernard Vorhaus, EUA, 1948
Com Turhan Bey (Alexis, o místico),
Lynn Bari (Christine Faber, a viúva),
Cathy O’Donnell (Janet, a jovem irmã de Christine), Richard Carlson (Martin Abbott, o pretendente de Christine), Donald Curtis (Paul Faber), Virginia Gregg (Emily), Harry Mendoza (Hoffman), Norma Varden (a ricaça que consulta Alexis)
Roteiro Muriel Roy Bolton, Ian McLellan Hunter
Baseado em história de Crane Wilbur
Fotografia John Alton
Música Alexander Laszlo
Montagem Norman Colbert
Direção de arte Frank Durlauf
Figurinos Frances Ehren
Produção Ben Stoloff Productions
P&B, 78 min (1h18)
**1/2