3.5 out of 5.0 stars
(Disponível na Netflix em 1/2024.)
Com uma sensibilidade extrema, um olhar absolutamente feminino, O Lugar da Esperança, no original Herself, trata de duas invenções superlativas dos seres humanos. Uma é das piores de todas as coisas que conseguimos criar ao longo destes mais de 6 mil anos de História: a brutalidade do homem contra a mulher. A outra é exatamente o oposto, o antônimo, o antípoda: a solidariedade, a maravilhosa capacidade de ajudar o outro.
É uma co-produção Irlanda-Reino Unido de 2020, dirigida pela inglesa Phyllida Lloyd, realizadora de poucos títulos, apenas oito, de 1997 para cá – os mais conhecidos deles são o musical Mamma Mia! (2008) e A Dama de Ferro (2011), a biografia da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Por coincidência, ou não, os dois com Meryl Streep e elenco estreladíssimo.
Depois de um musical alegre, vibrante, e uma biografia de uma das mais importantes líderes políticas das últimas décadas, Phyllida Lloyd dedicou-se a este drama familiar e social sem grandes estrelas no elenco – mas com atuações esplendorosas, magníficas, de todos os atores. Em especial da atriz que faz a protagonista da história, Sandra, uma jovem e amorosa mãe de duas filhas pequenas que, depois de ser longa e brutalmente espancada pelo marido, rompe enfim o casamento.
Chama-se Clare Dunne a atriz que nos brinda como uma interpretação memorável, tocante, emocionante. Nasceu em Dublin, não se sabe em que ano – no filme, lançado, repito, em 2020, ela parecia ter uns 35, talvez 38, no máximo 40 anos. Graduou-se no País de Gales, no Royal Welsh College of Music & Drama, trabalhou no teatro, na TV e no cinema – sua filmografia tinha, no início de 2024, um total de 15 títulos, apenas três deles filmes de longa-metragem.
Clare Dunne não apenas presenteia o espectador com a atuação brilhante como essa moça Sandra, levando-o a sofrer com ela, a torcer por ela. Ela criou Sandra; é dela essa história ao mesmo tempo terrível e com uma luz de esperança de uma mulher que come o pão que o diabo amassou, e depois encontra, através da solidariedade de um grupo de pessoas, a possibilidade de uma vida melhor, para em seguida se deparar com nova, terrível tragédia.
Clare Dunne criou a história – e escreveu o roteiro do filme, trabalhado depois também por Malcolm Campbell .
É algo muito impressionante. Clare Dunne é absolutamente admirável. E o filme que ela escreveu e Phyllida Lloyd dirigiu é uma maravilhosa surpresa. Uma linda, admirável gema.
Logo no início, o marido espanca brutalmente a mulher
A brutal, violentíssima, criminosa agressão do marido Gary (o papel de Ian Lloyd Anderson) vem logo no início da narrativa, quando estamos com apenas 3 dos 97 minutos de duração.
Não há propriamente créditos iniciais. Vemos os nomes das empresas produtoras – e lá estão, além da BBC Films, o que já é garantia de bons serviços prestados, os importantes nomes institucionais da República da Irlanda e do Reino Unido, Fís Éireann/Screen Ireland e British Film Institute – e o da realizadora Phyllida Lloyd. E, na primeira sequência, a jovem mãe Sandra está brincando com as duas filhinhas, Emma e Molly (os papéis de Ruby Rose O’Hara e Molly McCann).
As duas meninas lindas brincam de maquiar o rosto da mãe – e aí entra na história criada por Clare Dunne uma característica específica dela. A atriz tem uma marca de nascença sob o olho esquerdo. Uma das crianças pergunta mais uma vez o que é aquilo, e Sandra-Clare Dunne diz: – “Eu já contei, amor. Eu nasci com ela. (…) Deus disse: ‘Caso eu precise encontrar você, é melhor deixar uma marquinha, porque…””
E aí as três falam juntas a frase que a mãe claramente já havia dito muitas vezes: – “Porque há muitas Sandras em Dublin!”
Daí a pouquinho estão cantando e dançando, felizes, as três, na cozinha de sua casa – e aí chega o marido.
As meninas o saúdam alegres – mas ele diz para elas saírem, porque precisa conversar com a mãe delas.
Sandra percebe o que virá, e sussurra ao ouvido de Emma, no momento em que as duas estão saindo para o quintal: – “Viúva negra”.
Gary havia encontrado um maço de notas. Pergunta o que é aquilo, se ela estava pretendendo fugir – e começa a espancar Sandra.
A diretora Phyllida Lloyd, seu diretor de fotografia Tom Comerford e sua montadora Rebecca Lloyd fizeram um trabalho admirável para mostrar a sequência do espancamento. São muitas, várias, várias tomadas bem rápidas, com montagem aceleradíssima. Vemos que Sandra cai no chão e o criminoso continua espancando. Há sangue no rosto da mulher, e ele pisa no pulso esquerdo dela.
Paralelamente, vemos a primogênita Emma correndo loucamente até uma loja e entregando para um funcionário um bilhete-pedido: “Ligue para 199. Minha vida está em perigo. Sandra Kelly, 14 Hazelwood Road”.
Não se mostra o que houve no passado
Há um longo fade out, e na sequência seguinte Sandra está chegando com as filhas a um corredor de hotel, providenciado pela assistência social do governo. Uma assistente social simpática, prestativa, Jo (Cathy Belton), diz para Sandra que ela pode ficar tranquila, que Gary está bem informado de que não pode encostar a mão nela – se tentar, terá que enfrentar a polícia, a Justiça.
O roteiro escrito por Clare Dunne e Malcolm Campbell não volta atrás no tempo, para antes daquele momento em que Sandra estava brincando com as filhas e de repente a brincadeira é interrompida por Gary. Há alguns rápidos flashbacks – mas são dos momentos daquela agressão mostrada bem rapidamente no inicinho do filme. Rápidos flashbacks – Sandra se lembrando de detalhes do espancamento.
Mas não há flashback mais para o passado. Os realizadores preferiram não explicitar como era a vida do casal antes daquele momento em que a história começa a ser contada. Fica absolutamente claro que já tinha havido agressões, ou no mínimo ameaças de agressões físicas – tanto que a pobre mulher já havia escrito um pedido de socorro e combinando com a filha mais velha que, diante da senha “Viúva negra”, ela deveria correr até a loja mais próxima e apresentar o apelo.
Propositadamente, no entanto, não se fala às claras, com todas as letras, de espancamentos antes daquele ali. As referências ao passado são um tanto vagas. Há, lá pelo meio do filme, uma referência ao fato de que no começo do relacionamento dos dois Gary não era violento. Há uma sequência em que o pai de Gary tem desprezo pelo filho, que o considera um caso perdido. Mas de fato o que houve no passado não é mostrado.
Porque não importa.
O que importa foi que daquela vez o limite final foi ultrapassado. Não poderia haver volta. Crápula, sem caráter, criminoso, Gary fará acenos para que os dois voltassem – ah, não sei o que deu em mim, foi um momento de loucura, estou fazendo terapia, esse papo furado.
Não poderia haver volta – e Sandra fica absolutamente firme nisso.
Mas os dois precisam se ver toda semana, porque ficou determinado que o pai teria o direito de ficar um dia com as crianças.
Vai ser um suplício.
A moça sonha em construir uma casa simples, barata
A vida provisória com as duas filhas em um quarto de hotel pago pelo governo, em que é tratada como pessoa de segunda categoria – só pode entrar e sair pelos fundos, pela porta de serviço – vai se tornando um peso cada vez mais difícil para Sandra. Não que ela seja uma dondoca fresca; não é, de forma alguma. Seus dois locais de trabalho e a escola das meninas ficam longe, os gastos com gasolina ficam altos, o tempo escasso demais.
Ela trabalha como garçonete em um pub e também como faxineira na casa bem ampla de uma médica, a dra. Margareth O’Toole (o papel da ótima veterana inglesa Harriet Walter, na foto acima), que, naquele momento, se recupera de um acidente sofrido na África, onde estivera trabalhando, e que resultou na quebra do quadril.
Na primeira vez que vemos a dra. O’Toole, a impressão não é muito boa. Parece uma senhorinha mal-humorada, ranzinza, que reclama das tentativas bem intencionadas de Sandra de ajudá-la a se mover – ela está usando um andador. – “Quebrei o quadril num hospital de campanha na África, e não tropeçando em uma loja”, reclama ela para Sandra. – “Pode parar de me tratar como uma velha?”
As aparências enganam, e a dra. Margaret O’Toole vai depois virar Peggy, um anjo da guarda para a pobre Sandra.
Sandra começa a fazer pesquisas na internet sobre a construção de casa básica, simples, barata. Passa a fazer contas. Quando o filme está com 22 minutos, ela apresenta sua aritmética para uma funcionária da área de previdência social do governo.
– “Eu quero construir uma casa. Estes são alguns dos lotes que vocês têm. (Ela entrega alguns papéis para a funcionária.) Estes são os custos para os materiais, o encanador, o eletricista. São 35 mil euros. Eu calculei que vocês gastam 33 mil euros comigo com aluguel e auxílio durante um ano. Estou no número 653 na fila de moradia. São três ou quatro anos morando em hotéis, o que custa a vocês 120 mil euros, talvez até mais. Mas, se vocês me emprestarem o dinheiro e me deixarem usar um lote, posso terminar de construir até o Natal, e pagar aluguel pela casa.”
A funcionária olha para Sandra como se estivesse vendo um E.T., e sua resposta é curta: – “Desculpe. Não posso ajudar com isso.”
Solidariedade, essa bênção, essa dádiva divina
Sandra não é do tipo que desiste facilmente – e, depois de tanta dor, vem para ela um momento de sorte.
A dra. O’Toole vê que Sandra andou mexendo em seu computador, fazendo pesquisas sobre construção de casas – e oferece parte de seu grande quintal para que a moça construa ali. Só nesse momento percebemos que, sob as maneiras toscas da médica, há um coração gigante. A mãe de Sandra havia trabalhado anos e anos para a médica, tinham sido próximas, amigas – e ela sente que pode ajudar a moça.
Por que não?
O segundo golpe de sorte é o encontro de Sandra com Aido Deveney (Conleth Hill), um mestre de obras já aposentado que no passado havia conhecido Gary. A princípio, Aido resiste aos pedidos de Sandra para que ele a ajude – mas o coração dele também se derrete.
Há um terceiro golpe de sorte: Amy (Ericka Roe), a garota que é colega de Sandra no pub, não apenas topa ajudá-la na obra, nos fins de semana de folga, como leva a turma do lugar em que mora, uma moradia coletiva que reúne um bando de gente boa, como Dariusz (Dmitry Vinokurov), um jovem imigrante da Europa do Leste que tem jeito para marcenaria, e Yewande (Mabel Chah), uma imigrante vinda de Camarões com talentos culinários.
Solidariedade. Essa bênção, essa dádiva de Deus. Ou então, para quem for ateu, essa maravilhosa qualidade de que é capaz o bicho homem – essa espécie que sabe tão bem erguer e destruir coisas belas, como resumiu Caetano.
Há o que espanca violentamente a mulher, pisa no seu pulso. Há os que são solidários.
Raça maluca.
As esplêndidas, lindíssimas, emocionantes sequências que mostram aquele bando de gente não treinada, aquele Exército de Brancaleone construindo a pequena casa para Sandra e suas filhinhas me fizeram lembrar de dois outros filmes. O Teto/Il Tetto, de 1956, de Vittorio De Sica, roteiro original de Cesare Zavattini, é uma pequena jóia de um neo-realismo italiano, uma obra absolutamente minimalista: um casal bem pobre aprende que, se construir do dia para a noite um barraco, mesmo que em terreno que não é deles, a obra não poderá, por lei, ser derrubada. Se houver um teto, não poderá ser derrubada.
O outro filme é A Testemunha/Witness, de 1985, do australiano Peter Weir, sobre um policial que penetra numa comunidade Amish, no meio rural. Lá pela metade do filme, toda a comunidade se reúne para construir o celeiro da fazenda de um jovem casal recém-casado. A sequência, de uma beleza fantástica, é, como escrevi ao rever o filme em 2008…
… “o equivalente em imagens ao que John Lennon quis dizer na letra de ‘Imagine’ – e a letra de ‘Imagine’, vamos e venhamos, embora já gasta por tanta repetição, é uma maravilha. É uma coisa utópica, um grande grupo de pessoas trabalhando juntos pelo bem comum, sem competição, com companheirismo, criando algo palpável, que vai se materializando diante de nossos olhos. Utopia, sim – mas o que seria de nós se não pudéssemos acreditar que seria possível haver um mundo melhor?”
Quem vê gosta, como mostram IMDb e Rotten Tomatoes
Há diferentes mundos neste planeta, e, embora em The Commitments, aquela delícia que Alan Parker cometeu em 1991, os personagens insistam em dizer que a Irlanda é o lugar mais pobre da Europa, para nós, aqui do fundo do fundo do Terceiro Mundo, o sistema de proteção dos mais pobres naquele país parece quase o paraíso.
Sandra é uma moça pobre, que trabalha em dois turnos, como faxineira e garçonete de bar, para se manter. Mas tinha uma vida digna, em termos materiais – e, quando é obrigada a deixar a casa do marido violento, brutal, tem um suporte do governo de fazer inveja. A pobreza, ali, está muito, mas muito distante da miséria.
Mas, se não há miséria material, o que não falta no mundo é a miséria humana – e, como já foi dito bem de passagem no início deste texto, haverá uma nova tragédia. Dizer isso, só isso, não me parece um spoiler – mas é claro que relatar mais seria, sim, estragar o prazer de quem ainda não viu este belo filme.
O Lugar da Esperança/Herself recebeu quatro prêmios e teve 10 indicações. Elas não incluem as dos mais importantes festivais (Cannes, Berlim, Veneza), nem Oscar, nem Globo de Ouro. Afinal, é um pequeno filme de baixo custo, sem grandes estrelas. Mas há uma das indicações que me chamou a atenção: a Casting Society of America, exatamente a entidade que reúne os profissionais da escolha de atores, percebeu essa grande qualidade do filme, e o indicou para o prêmio de melhor casting para longa-metragens de baixo orçamento. Uma bela confirmação daquilo que afirmei no início desta anotação – “tem atuações esplendorosas, magníficas, de todos os atores”.
Quem vê o filme gosta – no IMDb, ele tem nota 7 em 10, média da avaliação de 4,6 leitores. No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, Herself tem 94% de aprovação entre 139 resenhas de críticos e 84% dos leitores. O “consenso da crítica”, segundo o Rotten Tomatoes, é: “Sensivelmente dirigido por Phyllida Lloyd e trazido à vida pela atuação da co-roteirista Clare Dunne, Herself traça a jornada de uma mulher com empatia e graça”.
Donald Clarke, do Irish Times, escreveu: “Lloyd transforma os piores ataques em algo genuinamente apavorante, mas a crescente vulnerabilidade de Dunne nos mantém presos à realidade.” E Kate Muir, do Daily Mail de Londres, sintetizou: “Edificante em todos os sentidos”.
É, sem dúvida, um filme que deve ser visto. Uma beleza de filme.
Anotação em janeiro de 2024
O Lugar da Esperança/Herself
De Phyllida Lloyd, Irlanda-Reino Unido, 2020.
Com Clare Dunne (Sandra)
e Molly McCann (Molly, a filha mais nova de Sandra), Ruby Rose O’Hara (Emma, a filha mais velha de Sandra), Ian Lloyd Anderson (Gary, o marido), Harriet Walter (dra. Margaret O’Toole, Peggy), Cathy Belton (Jo, a assistente social), Conleth Hill (Aido Deveney, o chefe de obra), Art Kearns (John, o dono do pub), Ericka Roe (Amy, a colega de Sandra no pub), Dmitry Vinokurov (Dariusz, da turma da Amy), Mabel Chah (Yewande, da turma da Amy), Anita Petry (Rosa), Lorcan Cranitch (Michael), Tina Kellegher (Tina), Donking Rongavilla (Lazlo), Sean Duggan (Ciaran Crowley), Laura Kelly (funcionária), Rebecca O’Mara (Grainne), Daniel Ryan (Francis Deveney), Peter Gaynor (Nathan, o vizinho), Aaron Lockhart (Tomo), Lucy Parker Byrne (moça do hotel), Esosa Ighodaro (advogado de Sandra), Jane Brennan (juíza McBride)
Roteiro Clare Dunne e Malcolm Campbell
Baseado em história de Clare Dunne
Fotografia Tom Comerford
Música Natalie Holt
Montagem Rebecca Lloyd
Casting Louise Kiely
Desenho de produção Tamara Conboy
Figurinos Consolata Boyle
Produção Rory Gilmartin, Ed Guiney, Sharon Horgan, BBC Film, British Film Institute, Element Pictures, Screen Ireland, Element Pictures, Merman Films.
Cor, 97 min (1h37)
***1/2
Um comentário para “O Lugar da Esperança / Herself”