Coração de Apache ou Coração Vadio / Liliom

0.5 out of 5.0 stars

(Disponível no Dwan & Walsh Filmes, no YouTube.)

Entre sua saída da Alemanha, logo que o Partido Nacional-Socialista de Adolf Hitler assumiu o poder, e os muitos anos radicado nos Estados Unidos, Fritz Lang passou pela França. Lá, em 1934, fez um único filme, Liliom, que no Brasilr teve dois títulos, Coração de Apache e também Coração Vadio.

O filme francês fica. assim, entre duas grandes obras deste que é um dos mais importantes realizadores da História do Cinema: O Testamento do Dr. Mabuse/Das Testament des Dr. Mabuse, de 1932, e Fúria/Fury, de 1936, o primeiro dos 17 que faria em Hollywood.

Vai aqui parte do início do texto sobre o filme na Wikipedia em inglês, que funciona muito bem como uma sinopse. Vai sem aspas, para me desobrigar de ser literal, e permitir que eu entre com alguns pitacos.

Liliom é um filme de fantasia francês de 1934 dirigido por Fritz Lang, baseado na peça teatral húngara de 1909 do mesmo título de Ferenc Molnár. O filme é estrelado por um Charles Boyer muito jovem como Liliom, o animador, o showman que atrai as pessoas de um parque de diversões para o carrossel. Ele é demitido de seu trabalho pela dona do parque de diversões, Madame Moscat (o papel de Florelle), que é apaixonada pelo sujeito alegre, charmoso, bonitão – e o motivo da demissão é o ciúme. Liliom demonstrou muito interesse em uma mocinha que frequenta o parque, uma empregada doméstica chamada Julie (o papel de Madeleine Ozeray, em duas fotos abaixo). Ele e Julie passam a morar juntos, na casa de uma tia da moça. Desempregado, Liliom é instigado por um amigo a participar de um assalto.

Bem… A sinopse da Wikipedia relata também todo o resto da trama, até o finalzinho. O que, evidentemente, é um gigantesco, imenso, absurdo spoiler…

Atenção: spoiler! Revelam-se fatos do final do filme!

Quem avisa amigo é – e está aí o aviso. O que vem a seguir a rigor é spoiler, dos mais bravos. Quem não viu o filme e tiver interesse em ver deveria parar de ler por aqui.

Quando falta ainda cerca de meia hora para acabar o filme de 118 minutos, Liliom morre. E aqui transcrevo literalmente o que diz a Wikipedia: “Sua alma é transportada para uma sala de espera no Céu. Um comissário celeste determina que Liliom não será admitido no Céu, apenas no Purgatório, enquanto não retornar à Terra para fazer uma boa ação”.

O visual é um ponto fundamental nos filmes de Fritz Lang

Tenho visto e/ou revisto as obras da fase hollywoodiana de Lang, realizados entre 1936 e 1956, e 10 das 17 já foram comentadas aqui. Na minha anotação sobre Vive-se Uma Só Vez/You Only Live Once, de 1937, fiz – modéstia às favas – o que me parece um bom apanhado sobre ele e sua obra.

Ainda pretendo me dedicar à sua primeira fase, a da Alemanha da época do expressionismo, em que fez diversas obras-primas, do primeiro Dr. Mabuse (1922) até M – O Vampiro de Düsseldorf, passando pela ficção-científica Metropolis (1926), um dos filmes mais reverenciados e mais influentes da História. O visual de Blade Runner, por exemplo, bebeu, e muito, em Metropolis.

O visual é um ponto fundamental nos filmes de Fritz Lang. Rubens Ewald Filho dá o devido destaque para isso no verbete sobre ele em seu Dicionário de Cineastas: “Nascido em Viena, filho de um importante arquiteto, estudou Pintura em Munique e Paris, lutou na Primeira Guerra. Treinado como pintor, artista gráfico e figurinista no início da carreira, sempre usou essa formação para conseguir o máximo de efeitos em particular em pesadelos e fantasias.”

Pois é.

Eu sabia que Lang havia passado pela França antes de ir para Hollywood, mas não me lembrava de que havia feito apenas um filme lá. E achava que jamais teria oportunidade de ver o trabalho dele na França.

Aí, a Mary, garimpando na mina de ouro de filmes antigos que é o YouTube, examinando um dos veios mais promissores, o Dwan & Walsh Filmes, encontrou Coração Vadio. Me apresentou junto com mais dois ou três títulos, mas não tive dúvida. Epa! Um Fritz Lang feito na França – festejei, alegre que nem pinto no lixo. Gosto de todas as sugestões, mas vamos já de Fritz Lang!

Pois é.

Assim de uma forma contida, na tentativa de ser elegante, como um crítico de cinema (coisa que não sou) e não como um espectador que tem sangue nas veias e a ousadia de opinar abertamente sobre obra de um gigante (o que eu sou), daria para dizer que Liliom é um filme extremamente, mas extremamente surpreendente. Estranho. Insólito. Enigmático – não dá para compreender o que ele quer dizer.

Vou à procura de outras opiniões.

O filme teve uma crítica muito elogiosa no NY Times

Não há verbetes sobre Liliom de Fritz Lang nos guias de Leonard Maltin, Pauline Kael, Steven H. Scheuer e Mick Martin & Marsha Potter. Nem no guia da revista inglesa Time Out. O que não chega a ser propriamente surpreendente, já que é de fato um filme bem pouco conhecido nas últimas décadas.

Mas os franceses têm.

O próprio Jean Tulard escreveu o verbete sobre Liliom no seu monumental Guide des Films. Sua avaliação é bem curta:

“Trabalho encomendado a Lang, que fugiu da Alemanha hitleriana e procurava o que fazer em Paris enquanto aguardava a ida para os Estados Unidos. A obra parece hoje muito ‘teatral’ em razão da atuação dos atores e dos cenários.”

Le Petit Larousse des Films – publicado em 2012 – também tem um verbete sobre o filme feito 78 anos antes:

“Único filme francês de Fritz Lang, realizado logo após sua saída da Alemanha nazista, e baseado em uma peça húngara que há havia sido adaptada para as telas em 1930. Charles Boyer estava vigoroso em um papel popular bem diferente dos senhores “de bem” que ele faria em seguida diversas vezes. O tratamento cinematográfico desse universo à la René Clair, estilizado, irônico e afiado. As cenas ‘no céu’ são notáveis pelo humor e pela fantasia.”

Mas… Ah, meu, que maravilha que é a internet, e que maravilha que é o Internet Movie Database, o IMDb! Ele dá o link para a crítica sobre Liliom que o New York Times publicou no dia 18 de março de 1935, assinada por H.T.S. – assim, só as iniciais.

“Tendo iniciado sua turnê mundial em Budapeste em 1909 e tendo visitado Nova York três vezes falando Inglês, no palco, em 1921 e 1932 e nas telas em 1930, Liliom, o belo, irresponsável indolente criado por Ferenc Molnar, está agora no (cine) Cameo, exprimindo-se na língua francesa com bastante fluência. Desta vez ele é personificado por Charles Boyer, o hábil ator bilingue de Paris cujo trabalho como um oficial naval em The Battle contribuiu tanto para fazer daquela produção um evento notável. Na versão atual de Liliom, M. Boyer dá ainda mais prova de sua versatilidade. Ele faz com que fique inteiramente crível o egoísta atendente de um carrossel que perde seu emprego por flertar com uma servente e então passa a viver sustentado por ela e sua tia.

“Os espectadores gostariam de descer as mãos em Liliom por causa da forma negligente e ocasionalmente abusiva com que trata a pequenina patética mulher e sua insistência em que é um ‘artista’ que não pode trabalhar como zelador, mas, ao mesmo tempo, têm que reconhecer que ele não é tão basicamente mal, e é em grande parte uma vítima das circunstâncias. E quando ele finalmente sai do filme, depois de um breve interlúdio na antessala de um paraíso de cinema, suas últimas palavras sobre o fato de que quando ele encontrar Deus cara a cara e explicar as coisas ele será compreendido carregam uma certa quantidade de convicção.

“M. Boyer desfruta de um excelente apoio de Mlle. Ozeray. Ela parece ter nascido para o papel de Julie, e sua atuação é da mais alta qualidade o tempo todo. Embora ela possa parecer um pouco calma demais na cena da morte, deve-se lembrar que, embora ela tivesse amado Liliom desinteressadamente, ela provavelmente também sabia que sua vida seria mais fácil no futuro, mesmo com a perspectiva de ter que sustentar uma filha. Mlle Florelle tem uma ótima atuação como a proprietária do carrossel à la Mae West que demite Liliom num acesso de ciúme e depois tenta ganhá-lo de volta. Os demais membros do elenco são competentes. (…)

“Ao fazer bom uso do poder da ilusão inerente ao filme, o diretor adicionou muito interesse à ação, especialmente as cenas representando o vôo de Liliom para o céu e sua entrevista com um comissário de polícia celestial que é idêntico ao que ele conhecera tão bem na Terra. Ele fica sabendo então que nos dias de hoje os registros do arquivo dos anjos são mantidos não em um grande livro, mas em fitas de celulóide, prontas para serem projetadas a qualquer momento. Há numerosas legendas em Inglês para pessoas ignorantes do Francês.”

Que beleza de crítica essa assinada por Mr. H.T.S. quando o filme foi lançado no Cine Cameo em Nova York. O detalhinho de ele usar o M. de Monsieur, o Mlle. de Mademoiselle…

Na minha opinião, o filme não merecia uma crítica tão gostosa…

Eu, aqui no meu cantinho, achei o filme um abacaxi azedo

É necessário fazer alguns registros básicos.

Ferenc Molnár nasceu em 1878, em Budapeste, então Império Áustro-Húngaro; morreria em Nova York, em 1952, aos 74 anos – exatamente como Fritz Lang, emigrou para os Estados Unidos para escapar da perseguição dos nazistas. Foi dramaturgo, romancista, diretor teatral e poeta. Liliom, que estreou, como já foi dito, em 1909, foi a quarta de suas 16 peças teatrais. E foi, como ficou claro na crítica do filme de Fritz Lang feita pelo New York Times, um grande sucesso internacional, com montagens em Paris, Londres e Nova York – depois de fracassar na primeira encenação em Budapeste.

Houve um filme mudo norte-americano baseado na peça, A Trip to Paradise, de 1921, bem distante da peça, segundo consta. E em 1930, nos primórdios do cinema falado, foi lançada a versão dirigida por Frank Borzage, estrelada por Charls Farrell e Rose Hobart.

E em 1945 – nada se perde, nada se cria, tudo se copia – a fantástica dupla Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II escreveu Carousel, uma adaptação da peça para o teatro musical. Foi, como tudo o que que tinha a grife Rodgers & Hammerstein, um grande sucesso na Broadway – e, como todo grande sucesso da Broadway, virou filme de Hollywood. Carrossel/Carousel, de 1956, foi dirigido por Henry King, com Gordon McRae e Shirley Jones.

Esses registros feitos, registro finalmente que eu, pessoalmente, euzinho aqui, achei este Liliom uma coisa horrorosa, pavorosa, horrivelmente ruim, um abacaxi azedo, uma danada de uma porcaria.

É tudo, tudo absolutamente falso, que nem nota de três guaranis paraguaios. Os atores atuam como se estivessem em uma peça infantil escrita e encenada para crianças bem pequenas – e burras. Os personagens não se sustentam, não param em pé. Da forma com que Fritz Lang a encenou, a história parece bobinha, tolinha. Bocó.

Anotação em junho de 2024

Coração de Apache ou Coração Vadio/Liliom

De Fritz Lang, França, 1934.

Com Charles Boyer (Liliom Zadowski),

Madeleine Ozeray (Julie Boulard),

Florelle (Madame Moscat, a dona do parque de diversões), Alexandre Rignault (Hollinger, funcionário do parque), Robert Arnoux (o torneiro), Roland Toutain (o marinheiro bêbado), Henri Richard (o comissário de polícia), Marcel Barencey (o policial do Purgatório), Raoul Marco (o inspetor), Antonin Artaud (o amolador de facas), Léon Arvel (funcionário do comissariado), René Stern (o caixa), Mimi Funès (Marie), Maximilienne (madame Menoux), Viviane Romance (a vendedora de cigarros),

Roteiro Fritz Lang (não creditado)

Baseado na peça de Franz Molnár

Adaptação Robert Liebmann  

Diálogos Bernard Zimmer

Fotografia Rudolph Maté

Música Jean Lenoir, Franz Waxman

Direção de arte André Daven

Figurinos René Hubert

Produção Erich Pommer, Les Productions Fox Europa.

P&B, 118 min (1h58)

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