(Disponível na Netflix em 1/2024.)
Camaleões, no original Reptile, réptil, é um belo filme. Um drama policial forte, duro, triste – embora, ao final, acene com uma réstia de esperança.
A trama – uma história original do diretor Grant Singer e de Benjamin Brewer, também autores do roteiro, juntamente com Benicio Del Toro, que interpreta o protagonista – é daquele tipo de novela policial que começa com um crime, mas, à medida em que o investigador vai escarafunchando os meandros que cercam aquele delito, vai percebendo, juntamente com o espectador, que por trás há um imenso mar de lama.
Muitas histórias do filme noir eram assim. Muitas histórias dos grandes autores dos romances policiais hard-boiled dos anos 1930 e 1940 que inspiraram o gênero noir eram assim – Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain. Chinatown (1974), de Roman Polanksi, seguramente um dos melhores filmes noir feitos depois dos anos 1940 e 1950, era exatamente assim.
Os realizadores deste Reptile não procuraram fazer um filme no estilo noir – mas a história que eles contam, esta, sim, tem tudo a ver.
Mar de lama. Poço sem fim de falta de moral, de caráter, de bons valores. Mundo viciado, nojento, corrupto, podre.
Quando há o fade out ao fim da última sequência do filme, e a tela fica toda negra durante alguns segundos, até o início dos créditos finais (não há crédito inicial algum), os realizadores nos fazem ouvir “Knockin’ on heaven’s door”, na gravação original que Bob Dylan fez para o filme Pat Garrett & Billy the Kid (1973), de Sam Peckinpah.
É uma beleza de achado, porque aquela é uma canção que o policial Tom Nichols, o protagonista da história, o papel escrito para Benicio Del Toro, poderia perfeitamente cantar – um homem absolutamente perdido, se sentindo como se estivesse batendo na porta do céu.
Depois que o filme acabou, e Mary e eu ficamos um tempo em silêncio (coisa rara…), tentando deglutir aquilo tudo, me vieram à cabeça outros versos do cara, na canção “Blind Willie McTell”: “Well, God is in his heaven / And we are what was his / But power and greed and corruptible seed / Seem to be all that there is”. Bem, Deus está no céu dele, e nós somos o que foi dele, mas o poder e a ganância e a semente corruptível parecem ser tudo o que existe.
Mar de lama habitado por répteis. Não camaleões, como escolheram os exibidores brasileiros. Répteis.
A jovem corretora é encontrada morta
O crime que acontece no começo da narrativa e dá início ao desenrolar da trama é o assassinato de uma bela e jovem mulher, Summer Elswick (o papel de Matilda Anna Ingrid Lutz, na foto acima).
Na primeira sequência do filme, Summer está com seu namorado, Will Grady (o papel de Justin Timberlake) em uma casa gigantesca, vazia. Logo veremos que Will é um dos donos de uma imobiliária, criada e ainda chefiada por sua mãe, Camille (Frances Fisher), e Summer trabalha como corretora para a empresa. Estão ali examinando em detalhes a casa, que será posta à venda.
Há logo de cara uma indicação de que as coisas não vão muito bem entre o jovem casal. Summer está na cozinha, Will chega por trás dela e a abraça, beija seu pescoço. e ela diz; – “Pare”. Will a solta e diz: – “O que há? Você costumava gostar de fazer sacanagem nas casas bacanas.”
Pouco depois, Will está dando uma palestra sobre o ramo imobiliário e como as empresas do setor podem se dar bem. É quando conhecemos a mãe dele – e vemos que Camille é uma mulher forte, determinada, dominadora. Ao chegar em casa depois da palestra, ele reclama com Summer que sentiu a falta dela, que aquilo era importante para ele, que era um absurdo ela não ter ido. A moça pede desculpas, diz que caiu no sono. Um segundo indício, e este forte, de que de fato as coisas não vão bem entre os dois.
Na sequência seguinte, Summer está de novo naquela imensa casa, limpando, arrumando. Manda recado para Will pedindo que ele vá encontrá-la. Vemos Will entrando na casa, subindo as escadas, chamando por Summer. Ela está no chão do quarto principal – morta. Estamos com 8 minutos dos 134 que duram o filme, e a palavra “reptile” toma toda a tela, em maiúsculas vermelhas.
Não há nenhuma outra informação, crédito algum – apenas o título. E, na sequência seguinte, ficamos conhecendo o policial Tom Nichols, sua mulher Judy (o papel de Alicia Silverstone) e vários dos colegas e amigos dele. O chefe de Tom, Robert Allen (Eric Bogosian), chama Judy de “minha sobrinha favorita” – veremos que ela é de fato sobrinha da mulher de Allen, Deena (Catherine Dyer).
Estão em um belo restaurante. Com eles está também o policial Wally (Domenick Lombardozzi), um sujeito grande, careca, falastrão.
Allen pede desculpa e se levanta da mesa para atender o celular, enquanto Tom conta uma piada gozando gays.
O telefonema para o capitão da polícia, naturalmente, era para avisar que havia sido encontrado o corpo de uma jovem mulher assassinada. Allen e Tom vão de carro para a casa em que aconteceu o crime.
Caso encerrado, o bom policial continua a investigar
Ótimo policial, excelente investigador, pessoa em que o capitão confia plenamente, Tom Nichols será o encarregado do caso. E Will Grady, o namorado da moça, é o principal suspeito.
Ele ´parece colaborar com a polícia, Dá sua versão dos fatos, conta que chegou à casa, encontrou a namorada morta, ainda achou que fosse possível reanimá-la, tentou, fez o que pôde. Passado algum tempo, Allen diz para Tom que Will deve ser solto, enquanto as investigações continuam.
Vão surgir duas pessoas na história. Um é uma figura muito estranha, que tem um ódio visceral de Will Grady e sua mãe, a quem responsabiliza pelo suicídio de seu pai, arrependido de ter vendido uma propriedade aos donos da imobiliária.
O outro é o ex-marido de Summer, Sam Gifford (Karl Glusman). Descobre-se que ele e a ex-mulher haviam voltado a se ver – e a trepar. Um exame de DNA indica que ele e Summer haviam tido relações no dia da morte dela.
Allen, o superior de Tom, considera que o caso foi resolvido: Summer havia sido assassinada por Sam Gifford, o ex-marido.
Tom discorda. Acha que há pontas soltas na história. Sozinho, continua a investigar.
Isso que relatei acontece bem antes da metade do filme. A investigação solitária de Tom será longa – e chegará a um mar de lama.
Uma grande interpretação – e firulinhas formais
Fiquei pensando, enquanto escrevia este comentário, que Camaleões tem um tanto a ver com A Promessa (2001), de Sean Penn, com Jack Nicholson no papel central e, por coincidência, Benício Del Toro como um coadjuvante que aparece pouco tempo na tela. Nos dois filmes, os protagonistas são policiais competentes, experientes, que se recusam a acreditar na culpa da pessoa que os superiores determinam que foi o assassino. E prosseguem, sozinhos, contra a vontade dos chefes, a investigar o caso, de maneira obstinada, quase obsessiva.
Os dois personagens vivem momentos difíceis de suas vidas. O Jerry Black do filme de Sean Penn estava iniciando um romance com uma bela mulher, mas eventos relacionados à sua investigação vão destruir a relação. O Tom Nichols de Benicio Del Toro, exatamente no meio da investigação do assassinato de Summer Elswick, vai descobrindo verdades que o deixam chocadíssimo, perplexo, perdido, como alguém batendo na porta do céu.
E não são apenas fatos relacionados ao seu trabalho, ao seu universo profissional. Tom Nichols começa a desconfiar que sua mulher, a bela Judy, pode estar sendo infiel.
Além dessa proximidade no tema, no conteúdo, há também elementos formais que são comuns aos dois filmes. Nos dois, os atores centrais, Jack Nicholson e Benicio Del Toro, têm interpretações impressionantes, notáveis, marcantes – ambas chegando bem pertinho do over, do excesso, do exagero. Nos dois, há over, excesso, exagero de super ultra big close-ups do rosto do protagonista – aquelas tomadas em que a câmara focaliza o rosto de tão perto que ele nem cabe inteiro na tela, ficam de fora a parte superior da testa e o queixo.
Nos dois, há muitas firulinhas formais, visuais – coisa típica de diretor novo ou no mínimo de quem não é propriamente do ofício. No de Sean Penn, é isso: o sujeito de talento vulcânico já realizou diversos filmes (sete longas, se minha conta estiver certa), mas a rigor o ofício dele é outro. É um ator que eventualmente dirige.
E esse Grant Singer – que bolou a história juntamente com Benjamin Brewer, escreveu o roteiro com ele e mais Benicio Del Toro, e dirigiu o filme – é jovem e novato. Nasceu em 1985, meu Deus do céu e também da Terra, quando minha filha, criança linda, já via comigo filmes de Hitchcock e Spielberg! (Os mais leves deles, é verdade…)
Sua filmografia como diretor tem 31 títulos, neste iniciozinho de 2024 – mas o número é enganador. Na imensa maioria, são vídeos musicais. Como é garotão jovem, dirigiu vídeos de bandas e artistas que o velhinho aqui desconhece completamente – The Weekend,. V Nixie, Sam Smith, Jack Antonoff, Lorde…
Em 2020, realizou um longa-metragem, o documentário sobre o cantor e compositor Shawn Mendes, Shawn Mendes: In Wonder. Este Reptile aqui é seu primeiro longa-metragem de ficção.
O herói tem dois amores– e não se sente correspondido
Acho estranho Benicio Del Toro não ter sido sequer indicado ao Globo de Ouro de melhor ator.
Nascido em Porto Rico, em 1967, Benicio Del Toro tem 65 títulos como ator em sua filmografia. Coleciona 49 prêmios e 75 indicações no total. Ao Oscar, foi indicado duas vezes na categoria de ator coadjuvante, por 21 Gramas (2003) e por Traffic: Ninguém Sai Limpo (2000) – e levou o prêmio por este último. Também por seu desempenho em Traffic, levou o Urso de Prata no Festival de Berlim, um dos mais importantes que existem, ao lado do de Cannes e o de Veneza.
Como marca registrada, segundo o IMDb, Benicio Del Toro tem uma “voz rouca profunda”, “maneirismos esquisitos” e “frequentemente interpreta personagens sombrios, trágicos”. Pimba na gorduchinha: o IMDb definiu perfeitamente o sujeito.
Há uma curiosidade interessante sobre o ator: ele e a bela Alicia Silverstone (na foto acima) tiveram um caso entre 1996 e 1997. Este aqui é o segundo filme em que os dois interpretam um casal, depois de Excesso de Bagagem, de 1997, exatamente a época em que estavam juntos.
Quando Camalões está se aproximando do fim, o personagem de Benicio Del Toro diz para sua mulher uma frase assim (não está literal; não anotei na hora): – “A única coisa que eu amo na vida além de você é o meu trabalho na polícia. E sinto que não estou sendo correspondido.”
Há um detalhe fascinante aí. Que o amor dele pelo trabalho na polícia não está sendo correspondido por seus colegas é perfeitamente verdadeiro. Já quanto à bela Judy interpretada pela ex-namorada de Benicio Del Toro, o filme – de uma maneira muito interessante, inteligente, eu acho – não deixa claro se ela de fato estava tendo um caso com o rapazinho lourinho bonito de quem Tom Nichols desconfia, ou se era apenas paranóia de um sujeito que se sente inteiramente perdido.
É um belo filme este Camaleões/Reptile.
Anotação em janeiro de 2024
Camaleões/Reptile
De Grant Singer, EUA, 2023
Com Benicio Del Toro (Tom Nichols)
e Justin Timberlake (Will Grady), Eric Bogosian (capitão de polícia Robert Allen), Alicia Silverstone (Judy Nichols, a mulher de Tom), Domenick Lombardozzi (Wally, colega de Tom), Frances Fisher (Camille Grady, a mãe de Will), Ato Essandoh (Dan Cleary, colega de Tom), Michael Pitt (Eli Phillips, o rapaz que odeia os Grady), Matilda Anna Ingrid Lutz (Summer Elswick, a moça assassinada), Karl Glusman (Sam Gifford, o ex-marido de Summer), Mike Pniewski (chefe de polícia Marty Graeber), Matilda Anna Ingrid Lutz (Summer Elswick), Catherine Dyer (Deena, a mulher de Robert Allen), Thad Luckinbill (Peter), Michael Beasley (Victor), JC Capone (Paul), Sky Ferreira (Renee), James Devoti (Bennett Rossoff), Amy Parrish (Valerie Mark), Elizabeth Houston (Jessica), Jesse C. Boyd (Dale), Owen Teague (Rudi Rackozy, traficante), Matt Medrano (Lazaro), Tom Nowicki (médico)
Roteiro Grant Singer & Benjamin Brewer & Benicio Del Toro
História Grant Singer & Benjamin Brewer
Fotografia Mike Gioulakis
Música Yair Elazar Glotman
Montagem Kevin Hickman
Casting Tamara-Lee Notcutt
Desenho de produção Patrick M. Sullivan Jr.
Figurinos Amanda Ford
Produção Thad Luckinbill, Trent Luckinbill, Black Label Media;
Cor, 134 min (2h14)
***1/2
Um comentário para “Camaleões / Reptile”