(Disponível no Dwan e Walsh Filmes do YouTube.)
Sete anos antes de Dívida de Sangue/Cat Ballou (1965), 16 anos antes de Banzé no Oeste/Blazing Saddles (1974), houve uma mistura de faroeste com comédia, algo de provocar pavor e ranger de dentes entre os milhões de aficionados pelo western mundo afora. E o autor da coisa era – a vida é mesmo cheia de surpresas – um sujeito que havia realizado vários belos, autênticos, sérios westerns: Raoul Walsh.
A coisa é de 1958, e os títulos, tanto o original quanto o adotado no Brasil, já indicam o nível. The Sheriff of Fractured Jaw. Leva-se um tempo para o espectador ficar sabendo que a mandíbula fraturada não é a do xerife – é o nome da cidadezinha fictícia lá do Oeste Bravio, o Far West onde se passa a trama. As legendas da cópia que vi traduzem o nome da cidade por Queixo Quebrado – uma boa opção do tradutor.
O título adotado pelos distribuidores brasileiros, na época do lançamento do filme aqui, é ainda mais assustador: Apuros de um Xerife.
O Xerife de Queixo Quebrado, quer dizer, Apuros de um Xerife tem como o protagonista, o ator que faz personagem-título, o inglesérrimo Kenneth More (1914-1982), hoje seguramente pouquíssimo conhecido. Como sou velhinho, me lembrava bem do nome dele, de filmes que vi ou de que ouvi falar quando adolescente, em Belo Horizonte, como Afundem o Bismark (1960), O Mais Longo dos Dias (1962) e Somente Deus por Testemunha/A Night to Remember (1958), uma reconstituição da tragédia do Titanic, baseado no livro homônimo de Walter Lord.
No principal papel feminino, Jayne Mansfield, aquela atriz que ficou na memória das pessoas da minha geração como a dama dos maiores peitos do cinema. Neste filme, ela demonstra maravilhosamente que, além de ter os maiores peitos do cinema, tinha também uma das menores cinturas. Cinturinha de vespa, a moça! Incrível!
The Sheriff of Fractured Jaw é uma bela de uma porcaria. É um daqueles filmes tão bobos, tão tolinhos, tão bocós, que acabam sendo simpáticos – e até mesmo engraçados. A rigor, só é mesmo recomendável para pessoas apaixonadas pelos velhos filmes de Hollywood – e, como velhos, aí, quero dizer os feitos até o inicinho dos anos 60. Não é aconselhável, como acho que já deixei claro, para os cinéfilos que amam o western com veneração e respeito – porque ele não trata o gênero com veneração e respeito, muito antes ao contrário.
Pois é… No entanto… Para quem, como eu, ama de paixão os velhos filmes de Hollywood, essa porcaria feita pelo grande Raoul Walsh tem várias coisas bem interessantes.
Um western co-produção Reino Unido-EUA feito na Espanha
Alguns pontinhos interessantes, para começar: este western-comédia realizado por um veterano diretor de westerns de verdade, sérios, abre com sequências passadas em Londres – algo, vamos e venhamos, esquisitíssimo. O personagem-título, como já foi dito, é um inglês, um senhor inglês, de meia idade, nada assim boa pinta, formal, sempre vestido como se estivesse em Londres, mesmo nas pradarias do Wild, Far West, no meio de pistoleiros e índios.
Mais: é uma co-produção Reino Unido-Estados Unidos! Os ingleses não botaram apenas o personagem-título, as sequências iniciais, os atores Kenneth Moore e Robert Morley – botaram também grana. Achei esse detalhe bem interessante.
Com tanto Oeste disponível – Colorado, Novo México, Arizona –, este é um western filmado na Espanha. O que, na verdade, iniciava o que seria uma tendência naquele finalzinho dos anos 50 e parte dos 60 – filmes passados no Oeste americano, e também em outros lugares do mundo, mas filmados na Espanha, onde havia paisagens apropriadas e custos significativamente mais baixos. Para dar só uns poucos exemplos, 55 Dias em Pequim, de Nicholas Ray e Guy Green (1963) foi filmado na Espanha, Doutor Jivago (1965), Era Uma Vez no Oeste (1968) e Patton, Rebelde ou Herói? (1970) foram parcialmente filmados na Espanha.
Há outras características interessantes neste filme que não é bom, de jeito algum – mas, antes, é necessária uma sinopse. Todo texto sobre filme tem que ter uma sinopse, diabo.
O IMDb traz uma boa sinopse, versão curtíssima:
“Depois de ter, inadvertidamente, interrompido um ataque de índios à sua diligência, enquanto viajando no Oeste americano, um cavalheiro inglês se vê nomeado xerife de uma cidade próxima.”
Fantástico: em 187 caracteres, conta-se a base da trama do filme. Meu amigo Valdir Sanches não poderia reclamar que no meu texto ficou faltando a história do filme, a trama, o entrecho, o argumento, o soggeto.
Tenho uma imensa fascinação por quem tem o dom da síntese – essa dádiva maravilhosa com a qual não fui contemplado, porque, no dia em que o Senhor a distribuiu, eu estava bem longe dali.
As pessoas que fizeram o Cinéguide, uma obra fantástica, com “18000 films de A à Z”, bem ao contrário de mim, parece que passaram várias vezes na fila da distribuição do dom da síntese. O verbete do Cinéguide sobre La Blonde et le Shérif é assim:
“Um inglês refinado e distinto chega ao Far West.” Assim, com Far West en Anglais – 48 caracteres!
Bem. Acho que vou contar um pouco da história, da trama, do entrecho, do argumento, do soggeto, do meu jeito…
O inglês vai conversar com os índios que atacam a diligência!
Os créditos dizem que o roteiro é de Arthur Dales, baseado em história de Jacob Hay. Arthur Dales, parece, é um pseudônimo de Howard Dimsdale. Nenhum desses três nomes chega a existir na Wikipedia em inglês, e, no IMDb, há pouquíssimo sobre eles.
Pois bem. A história criada por esse Jacob Hay e roteirizada por Arthur Dales que é Howard Dimsdale é mais ou menos assim:
Começa o filme com o garoto me entregando um telegrama do Arizona…
Péra. Não, não: isso aí é o começo de “O Rei do Gatilho”, de Moreira da Silva. Nada a ver com este The Sheriff of Fractured Jaw – até porque o protagonista, Jonathan Tibbs (o papel de Kenneth More), não sabia atirar.
Começa o filme em uma daquelas propriedades imensas do campo inglês. O milionário Lucius (o papel do sempre ótimo Robert Morley) está querendo que os serviçais encontrem seu sobrinho Jonathan Tibbs. Jonathan Tibbs teoricamente deveria estar administrando a empresa que herdou do pai, que a havia herdado de seu pai, que a havia herdado de seu pai, e assim sucessivamente desde 1605, a Tibbs & Company, armourers & gunsmiths, armeiros, fabricantes de armas.
Mas Jonathan nunca se importou muito em tocar os negócios da empresa. Deixava tudo nas mãos dos empregados, enquanto ser dedicava a inventar coisas. Nós o vemos trabalhando na invenção de uma espécie de carroça movida não a cavalos, mas a motor. O protótipo daquilo que teria sido o primeiro automóvel do mundo, no entanto, pega fogo – e, diante da ameaça do tio de deserdá-lo caso não se dedicasse a fazer vender mais armas da Tibbs & Company, Jonathan tem uma idéia: vai ele mesmo vender armas em um lugar remoto onde todo mundo anda armado: o Oeste Selvagem da ex-colônia britânica grandona na América.
Corta, e vemos Jonathan em uma diligência no Wild West.
A diligência é atacada por índios, como costuma acontecer em boa parte dos westerns – e é aí que acontece o pulo do gato da história, a idéia que surgiu na cachola do tal Jacob Hay, sem a qual não haveria trama, não haveria o filme.
Perfeito cavalheiro inglês, Jonathan não consegue compreender por que raios aqueles seres humanos estavam atacando aqueles outros seres humanos. Ele não consegue ver lógica naquilo – e então desce da carruagem para ir conversar com os peles-vermelhas, argumentar com eles, como os cavalheiros fazem.
Chega por trás de um pele-vermelha que está deitado no chão em um rochedo, de onde tem uma vista privilegiada da diligência – os dois condutores estão reagindo ao ataque com suas espingardas, e aqueles índios ainda não eram possuidores de armas de fogo. Jonathan chega por trás do índio deitado, toma-lhe a machadinha, e argumenta com ele que aquilo não se faz, afinal de contas as pessoas da diligência não fizeram mal algum aos índios, e tal e coisa, e coisa e tal.
O índio, que, claro, não entende inglês, nem o falado pelos cara-pálidas locais, menos ainda aquele cara-pálida todo vestido de terno, fica absolutamente pasmo com aquilo. O branco segura sua arma, e portanto pode perfeitamente abatê-lo. Mas, em vez disso, o branco estende a mão para ele, o cumprimenta, dá meia-volta e se dirige de volta à diligência.
O índio – que é o cacique daquela tribo – faz sinal para seu povo parar o ataque.
A cena foi vista, testemunhada, pelos dois condutores e por um dos passageiros da diligência (o outro, um bêbado, estava dormindo).
Quando a diligência pára na cidade de Fractured Jaw/Queixo Quebrado, a história se espalha velozmente: aquele inglês ali enfrentou os índios e os índios fugiram.
A cidadezinha estava sem xerife. Ninguém queria aceitar o cargo, porque ali perto havia dois bandos em guerra.
Bem depressa o prefeito Masters (Henry Hull) faz com que o recém-chegado aceite o honroso cargo de xerife.
A personagem feminina é empresária – e cantora e dançarina
Levei muito tempo no relato – mas isso aí é só o começo. Não é necessário avançar mais na história, mas é imprescindível, claro, falar de Kate, a personagem de Jayne Mansfield.
Na minha opinião, Kate e Jayne Mansfield são os pontos mais interessantes desse filme ruinzinho.
Em geral, não há muito espaço para as mulheres no western, esse gênero machista por excelência. Em boa parte das vezes, as mulheres, nos faroestes, ou são donas de casa abnegadas, trabalhadoras, esforçadas, ou então são bailarinas, cantoras ou abertamente prostitutas. De forma dura, ou são santas ou são putas.
Essa Kate interpretada por Jayne Mansfield – belíssima, esplendorosa, aos 25 aninhos de idade – é uma das muitas exceções a essa regra. Kate é a dona do hotel da cidade, em que funciona também um grande saloon com palco para apresentações de bailarinas e cantoras – e a própria patroa é a principal atração da casa. Apresenta-se em trajes avançadíssimos, sensualíssima – e todos na cidade a respeitam como uma empresária de sucesso.
Uma mulher porreta, firme, forte, independente – e que canta e encanta a homarada, e é respeitada! Sem dúvida, um tipo raro.
Um detalhe gostoso: nas canções, Kate-Jayne Mansfield é dublada por Connie Francis. O nome pode ser absolutamente desconhecido para as gerações que vieram depois da guerra do Vietnã, mas, para quem nasceu antes da guerra da Coréia (com o devido crédito a Renato Teixeira pela canção), Concetta Rosa Maria Franconero era uma superstar. Estima-se que vendeu mais de 100 milhões de discos no mundo todo; era um tremendo sucesso nas décadas de 50 e início de 60 em países como Alemanha, Japão, Reino Unido, Itália, Austrália – além, claro, dos Estados Unidos. Foi a primeira mulher a chegar ao número 1 da Billboard Hot 100 – e esse foi apenas um dos 54 sucessos que botou na lista.
Depois que vi essa informação, fui checar no The Billboard Book of US Top 40 Hits, e lá está que ela emplacou três canções no número 1! “Everybody’s Somebody’s Fool”, “My Mind Has a Heart of it’s Own” e “Don’t Break the Heart That Loves You”, as duas primeiras em 1960, a última em 1962. Incrível! Não sabia disso.
Não é à toa que o nome de Connie Francis aparece em destaque nos créditos iniciais – em que ela canta “In the Valley of Love”, de um tal Harry Harris, ele também o autor das duas canções que Kate-Jayne Mansfield “canta”, dublada por Connie Francis, “If the San Francisco Hills Could Only Talk” e “Strolling Down the Lane with Bill”.
Mais estrela do que propriamente uma grande atriz
Um pouquinho sobre Jayne Mansfield.
“Jamais a ser levada seriamenente, Jayne Mansfield era uma mestra da publicidade, embora não fosse uma atriz excepcionalmente talentosa”, diz, talvez com excessivo rigor, o sério livro Actors and Actresses, organizado por James Vinson. “De fato, ela era muito mais popular como uma escandolosa figura pública do que como uma estrela de cinema, pois teve pouco sucesso de bilheteria além de sua estréia na Broadway estrelando Will Success Spoil Rock Hunter? (…) Ainda assim, Mansfield se mantém (o livro é de 1986) como o mais potente símbolo da América na despreocupada Era Eisenhower, mais ainda do que sua mais respeitada contrapartida, Marilyn Monroe.”
Interessante. A frase da atriz destacada em outro livro, o mais recente 501 Movie Stars, é exatamente sobre a coisa da publicidade: “Eu não aprecio particularmente a publicidade, parece que ela fica me seguindo”.
As indicações são de que esta é a mais pura verdade. Até hoje de vez quando surge nas redes sociais uma foto interessantíssima, em que estão sentadas a uma mesa Sophia Loren, com um belo decote, e Jayne Mansfield, com um decote igualmente generoso – e os olhos de Sophia estão fixados na vastidão da outra… O mesmo acontece com uma foto em que Frank Sinatra não consegue tirar os olhos do decote da moça.
Ela nasceu Vera Jayne Palmer, na Pensilvânia, em 1933. Estudou artes dramáticas e fez muito teatro antes de começar no cinema, em 1954. aos 21 anos, portanto. Sua filmografia tem 35 títulos. Depois de três casamentos, o primeiro deles aos 16, e cinco filhos, o primeiro deles aos 17, morreu em um acidente de carro perto de Nova Orleans, a caminho de uma apresentação na TV. Tinha apenas ridículos 34 anos de idade.
Hoje em dia, de vez em quando se fala dela – pelo fato de ser mãe de Mariska Hargitay, a bela detetive e depois capitã Olivia Benson de Law & Order: Special Victims Unit.
“Walsh conhecia muito bem o gênero”
Um registro obrigatório: The Sheriff of Fractured Jaw foi lançado comercialmente no Brasil com o título de Apuros de um Xerife. É assim que consta da filmografia de Raoul Walsh no livro de Rubinho Ewald Filho, Dicionário de Cineastas, e também no Dicionário de Cinema – Os Diretores, de Jean Tulard. É assim também que está no Dwan & Walsh Filmes, uma caprichada página hospedada no YouTube dedicada, como o nome indica, a Allan Dwan (1885-1981) e Raoul Walsh (1887-1980), dois diretores prolíficos, incansáveis, que passaram por todos os gêneros na época de ouro de Hollywood.
Estranhamente, no IMDb ele está como O Xerife do Queixo Quebrado. O que é grotesco, porque significa que o xerife tem o queixo quebrado. Se fosse O Xerife de Queixo Quebrado seria a tradução literal do título original, mas desse jeito…
Leonard Maltin Review deu 2.5 estrelas em 4: “Paródia inócua de western com o inglês More recebendo o emprego de xerife em uma cidade em pé de guerra – que ele desempenha surpreendentemente bem. CinemaScope.”
Sim, o filme é uma produção caprichada, com bela fotografia (de Otto Heller) de paisagens esplêndicas em cores e CinemaScope. Agora, surpreendente é Leonard Maltin não citar Jayne Mansfield…
E eis o que diz de La Blonde et le Shérif o Guide des Films de Jean Tulard:
“Western em tom de paródia, bem conduzido. Walsh conhecia muito bem o gênero para não ignorar os defeitos que ele coloca sob os holofotes de maneira divertida.”
Anotação em junho de 2024
Apuros de um Xerife/The Sheriff of Fractured Jaw
De Raoul Walsh, Reino Unido-EUA, 1958
Com Kenneth More (Jonathan Tibbs),
Jayne Mansfield (Kate),
e Henry Hull (prefeito Masters), William Campbell (Keno), Bruce Cabot (Jack), Robert Morley (tio Lucius), Ronald Squire (Toynbee), David Horne (James), Eynon Evans (Mason), Reed De Rouen (Clayborne), Charles Irwin (Luke), Gordon Tanner (Wilkins), Tucker McGuire (a mulher de Luke), Nicholas Brady (Slim), Nicholas Stuart (Feeney), Sheldon Lawrence (Johnny), Susan Denny (Cora), Sidney James (o bêbado), Clancy Cooper (o barbeiro), Jonas Applegarth (Running Deer), Chief Joe Buffalo (Red Wolf)
Roteiro Arthur Dales, também conhecido como Howard Dimsdale
Baseado em história de Jacob Hay
Fotografia Otto Heller
Música Robert Farnon
Diretor musical Muir Mathieson
Canções de Harry Harrys, interpretadas por Connie Francis
Montagem John Shirley
Direção de arte Bernard Robinson
Coreografia George Carden
Figurinos Julie Harris
Produção Daniel M. Angel, Angel Productions, Twentieth Century Fox.
Cor, 103 min (1h43)
Título na França: “La Blonde et le Shérif”
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