(Disponível no HBO Max em outubro de 2022.)
Nesta segunda temporada das aventuras e desventuras afetivas, amorosas, sexuais de María, Cris e Esther, três amigas espanholas na faixa dos 30 e muitos anos, a vida, que evidentemente já não era nada, mas nada, mas nada perfeita, ficou bastante pior. A vida de María, em especial – e ela é a mais importante das três protagonistas da série –, está um inferno. Um absoluto inferno.
É claro que Vida Perfecta é um título irônico. A série, naturalmente, mostra o exato oposto do que ao título diz. Como a sigla que se usa nestes nossos tempos de redes sociais, para enfatizar o que já deveria ser o absolutamente óbvio – SQN, só que não.
Nos créditos iniciais, é usado um artifício mais esperto, mais inteligente, mais engraçado do que o SQN, mas tão claro quanto ele: o título aparece de cabeça para baixo. De ponta-cabeça, como se diz no mais clássico paulistês.
Nos oito episódios (curtos, de cerca de 30 minutos cada) da primeira temporada, lançada em 2019, não havia nada de perfeito nas vidas de María, Cris e Esther, essas espécies assim de Carrie, Samantha, Charlotte e Miranda de um Sex and the City à espanhola, em que a Nova York da série de fabuloso sucesso lançada de 1998 a 2004 é substituída por Barcelona, a metrópole catalã.
Cris (o papel de Celia Freijeiro), a mais bela das três, mãe de duas meninas, enfrentava problemas sérios no seu casamento com Pablo (Font García) e no dia-a-dia apertado da dupla jornada de advogada e dona de casa. Absorto com seu próprio trabalho, Pablo andava deixando todas as tarefas de casa e das crianças nas mãos da mulher, e, mais grave ainda, se descuidara dela. E Cris começava a procurar nas redes sociais homens que dessem a ela o prazer que o marido não estava mais dando.
Esther… Bem, Esther (o papel da ótima Aixa Villagrán, uma atriz perfeita para os exageros de Pedro Almodóvar), essa não tem jeito: é um desacerto ambulante. Gay daquele tipo que não quer descansar enquanto não comer todas as mulheres do mundo – ou pelo menos do país –, Esther estava permanentemente em algum tipo de crise.
Sua irmã mais nova, María, então, essa não estava nada bem. Na abertura da série, na primeira sequência do primeiro episódio, no escritório de uma corretora de imóveis, enquanto se preparava para comprar um imóvel, María e seu noivo de longa data, Gustavo (David Verdaguer), haviam começado uma discussão da relação que terminara com o noivo saindo da sala e do noivado. No fundo do poço, María havia transado com um desconhecido e ficado grávida. O desconhecido, Gari (Enric Auquer), era um amor de pessoa – mas una persona con discapacidad, uma pessoa com um grau (ainda que não grave) de incapacidade mental.
María é o papel de Leticia Dolera – a criadora da história e da série, a roteirista, juntamente com Manuel Burque, e também diretora da maioria dos episódios.
Bem, essa era, basicamente, a situação das protagonistas da história na primeira temporada.
A vida nada perfeita de María, Esther e Cris nos era apresentada com imensa franqueza – muitas cenas de sexo, sem qualquer insistência em explicitudes desnecessárias, mas também sem qualquer pudor, frescura. Linguagem aberta, verdadeira, como na vida real, menções tranquilas aos pedaços do corpo sobre os quais a educação tradicional sugere que sejam evitadas. Imensa, cristalina, bem-aventurada franqueza – e um bom humor absoluto.
Pois bem. Na segunda temporada – formada por seis episódios apenas, cada um de cerca de 30 minutos –, o tom continua o mesmo. Imensa, deliciosa, maravilhosa franqueza, e muito bom humor.
Só que a situação piorou muito. A vida – em especial a de María, que, afinal de contas é a principal entre as três protagonistas – está mal demais.
Quando terminamos de ver o quarto dos seis episódio desta segunda temporada, eu me sentia não como se estivesse vendo uma gostosa comédia com alguns tons dramáticos, mas sim apavorado diante de um drama denso, pesado, sufocante.
Sim, porque cada vez mais me sinto alheio ao que se costumava chamar de “distanciamento brechtiano”. Cada vez mais me identifico com os personagens da história que está sendo contada, e, em vez de procurar compreender as motivações sociológicas, econômico-financeiras das situações, mais eu sofro com quem está sofrendo.
E, diacho, como sofre essa María interpretada pela criadora, escritora e diretora Leticia Dolera (na foto abaixo), essa mulher que estava com 40 anos em 2021, quando foi lançada esta segunda temporada, mas parecia ter não mais que uns 25.
O inferno de uma mãe que rejeita o filho
A abertura da primeira temporada havia sido hilariante – a sequência no escritório da corretora imobiliária, María e Gustavo começando uma D.R. que falava em limpeza intestinal e sexo anal e terminava com o noivo cascando fora da idéia de comprar o imóvel para o casal e da própria idéia de se casar.
A abertura desta segunda temporada é tão bem realizada quanto a outra – mas é apavorante. É, a rigor, tétrica.
Vemos uma caixa em que havia sido entregue um produto sendo preparada para que o consumidor devolvesse aquele objeto.
Pedacinhos de isopor são colocados na caixa. O produto – que o espectador não vê – é recolocado na caixa de papelão.
É tudo mostrado em close-up, como se fosse um filme publicitário.
Vemos mãos fechando a caixa cuidadosamente, com uma fita adesiva. As mãos são ágeis, a fita adesiva é colocada da maneira mais perfeita possível.
Vemos María entregando de volta a caixa com o produto defeituoso a um funcionário de uma loja.
O funcionário abre a caixa, enquanto María informa que ele veio com defeito.
Close-up da caixa aberta: lá dentro está um bebê.
Corta, e vemos María acordando do pesadelo.
Nos quatro primeiros dos seis episódios da segunda e última temporada de Vida Perfeita, veremos María completamente imersa no pesadelo, no inferno que deve ser a vida de uma mãe que se recusa a gostar da existência do filho. Uma mãe que rejeita o filho.
Mulheres que não sabem ser mães é assunto tabu
Essa moça Leticia Dolora, com todo o jeito de garota de 20 e tantos anos, uma aparência um tanto frágil, um tanto mignon (embora tenha 1 metro e 65), bem magrinha, é uma artista de força incrível, de coragem fantástica, para quem é necessário se tirar o chapéu.
Na primeira temporada desta série criada por ela, Letícia enfrentou o perigo imenso de tratar da questão delicadíssima que é a incapacidade mental. Repito o que disse sobre a primeira temporada: o perigo de se cair no estereótipo, ou no agressivo, no ofensivo, já seria gigantesco uns 50 anos atrás – o que dirá hoje, nestes tempos do politicamente correto, do não pode usar tal palavra, não pode falar aquilo, não pode isso, aquilo ali não pode de jeito algum.
Pois ela e seu colaborador na criação do roteiro, Manuel Burque, se sairan extremamente bem nesse terreno perigoso, movediço, em que resolveram se meter. (Manuel Burque também trabalha como ator, interpretando Xosé, o grande amigo de Gari, um assistente social que serve como orientador tanto do rapaz quanto de outros jovens com o mesmo tipo de problema, e que vivem juntos numa espécie de república.)
Na primeira temporada, Vida Perfeita conseguiu falar de incapacidade mental sem ser ofensivo, grosseiro. De forma respeitosa, carinhosa. Um gol e tanto, uma proeza de se respeitar, de se aplaudir.
Nesta segunda, a série cai de boca nessa coisa ao mesmo tempo tão pavorosa, tão comum e tão tabu que é o fato de haver mães que não se dão bem com o fato de serem mães.
É pavoroso – e por isso é bastante tabu. Não é costume se falar disso – embora seja tão comum.
O entendimento geral é de que as mulheres foram feitas para serem mães, e a maternidade é uma das maiores maravilhas da existência.
E é uma absoluta maravilha que um filme e/ou série vá contra esse entendimento geral, essa falsa imagem, essa mentira.
Não são todas as mulheres que querem ser mães, não são todas as mulheres que têm talento suficiente para serem mães.
Há muitas, muitas, muitas que simplesmente não querem ser mães. Conheço diversas delas – uma dorme comigo há mais de 32 anos. Há muitas, muitas, muitas que têm filhos mas não têm o mínimo, o mínimo, o mais mínimo talento para isso.
É muito grande o número de mulheres que sofrem de depressão pós-parto – assim como é muito grande também o número delas que se trata, se cuida, e sara, e fica bem. Um texto da Fundação Oswaldo Cruz informa uma em cada quatro mulheres brasileiras apresenta sintomas de depressão no período de 6 a 18 meses após o nascimento do bebê. A constatação é do estudo “Factors associated with postpartum depressive symptomatology in Brazil: The Birth in Brazil National Research Study, 2011/2012”, realizado pela pesquisadora Mariza Theme, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e publicado na edição de abril do Journal of Affective Disorders. A taxa de 25% verificada no Brasil foi mais elevada que a estimada pela OMS para países de baixa renda, em que 19,8% das parturientes apresentaram transtorno mental, em sua maioria a depressão.
Letícia Dolera, um talento a ser acompanhado
O problema existe, está aí, é muito mais comum do que se poderia imaginar – mas fala-se pouco sobre ele.
Letícia Dolera resolveu falar – e a verdade é que boa parte desta segunda temporada se tornou bastante dura, pesada.
Diante da rejeição de María pelo garotinho Juanito, os problemas de Esther e de Cris ficam até pequenos.
Esther, na verdade, parece – no começo da segunda temporada – estar até bem. Parece mais assentada, menos ansiosa, menos doidona: mergulhou numa relação séria com uma mulher mais velha, Júlia (o papel de Míriam Iscla). Júlia é uma pessoa absolutamente calma, segura, resolvida, e passa muito disso para Esther. As duas estão muito apaixonadas, o sexo entre elas é ótimo, fazem muito sexo. (Na foto acima, Aixa Villagrán, que faz Esther.)
Marcam casamento – e pagam uma fortuna para ter uma festa de arromba, para dezenas de pessoas, numa bela fazenda, com DJ caro e tudo o mais.
Só que, lá pelas tantas, Esther entra em parafuso: será que quer mesmo casar?
No início da temporada, também parece que os problemas entre Cris e Pablo diminuíram. Ele se tocou, voltou a dar muita atenção à bela mulher que tem.
Mas Cris continua inquieta, insatisfeita. Tentam partir para um esquema de swing, depois tentam adotar a fórmula do casamento aberto. Cris reencontra um sujeito, Álex, por quem tem imenso tesão.
Bons personagens, bela trama, belas interpretações. Eis aí uma bela série.
Essa moça Letícia Dolera é um talento a se acompanhar.
Anotação em outubro de 2022
Vida Perfeita/Vida Perfecta – A Segunda Temporada
De Letícia Dolera, Espanha, 2021
Direção Leticia Dolera, Lucía Alemany, Irene Moray
Com Letícia Dolera (María),
Celia Freijeiro (Cris),
Aixa Villagrán (Esther),
e Enric Auquer (Gari, o pai do filho de María), Font García (Pablo, o marido de Cris), Manuel Burque (Xosé, o amigo de Gari), Cocó Salvador (Paula), Carmen Machi (María del Pilar, a mãe de María e Esther), Fernando Colomo (José Antonio, o pai de María e Esther), Víctor Fontela (Richi), Míriam Iscla (Júlia, a namorada de Esther), Sara González Salces (Mónica), Betsy Túrnez (Laura, a psicóloga), Alejandro Tous (Álex, o caso de Cris), Lily Hohenhorst Nikolova (Martina), Jordi Figueras (Jaime), Rosa Renom (Mayte), Leo Cuevas Domínguez (Juanito, o filho de María), Alexis Giménez Vidiella (Juanito, o filho de María)
Argumento Leticia Dolera (criadora), roteiro Letícia Dolera, Manuel Burque
Fotografia Marc Gómez del Moral
Montagem David Gallart, Pau Itarte, Queralt González
Casting Arantza Vélez, Irene Roqué
Desenho de produção Laia Ateca
Produção Movistar+, Corte y Confección de Películas
Cor, cerca de 180 min (3h)
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