E Deus Criou a Mulher / Et Dieu… Créa la Femme

Nota: ★★★☆

(Disponível em DVD.)

Na primeira tomada em que Brigitte Bardot aparece em E Deus Criou a Mulher, só vemos seus pezinhos e canelas. Na segunda, aí sim, ela está inteirinha, e inteirinha nua, em CinemaScope e Eastman Color.

Não é uma nudez frontal, e sim lateral: ela está deitada de bruços no chão de um quintal, tomando o sol da Côte d’Azur, as costas, a bundinha e as pernas voltadas para cima. A bundinha é bela como os anjos renascentistas, como a Primavera de Boticelli. A tomada dura menos de cinco segundos, mas o mundo veio abaixo – ao mesmo tempo em que ganhava um dos maiores símbolos sexuais da História.

Roger Vadim criou um escândalo com seu primeiro filme, … And God Created Woman, estrelado por sua jovem mulher, Brigitte Bardot. O tumulto foi causado pelo erotismo e pela nudez nas cenas de amor, e a natureza amoral da heroína sexy de 18 anos”, diz o livro Cinema Year by Year 1894-2000, que traz textos sobre os filmes e fatos mais marcantes de um século de cinema como se fossem reportagens da época. O texto sobre Et Dieu… Cré la Femme, por exemplo, é de “Paris, 28 de novembro de 1956”, a data de lançamento do filme. O título é “Scandalous charms of Brigitte Bardot”, e é ilustrado uma foto de BB dançando, as coxas à mostra, sob o olhar de um Jean-Louis Trintignant atônito.

O texto prossegue:

“Mas Vadim se arrepende por não ter ido tão longe quando gostaria, porque os censores o forçaram a cortar muitas sequências. Em resposta àqueles que o criticaram por exibir sua mulher dessa maneira, Vadim diz: ‘Brigitte ama as cenas de nudez porque ela odeia hipocrisia. Ela é uma garota de seu próprio tempo, liberada de todos os sentimentos de culpa e livre dos tabus impostos pela sociedade’. O crítico François Truffaut defendeu o filme em um artigo publicado na revista Arts, com o título ‘B.B. é vítima de uma intriga’. Além dos charmes felinos de Bardot, o filme revela as delícias de St. Tropez em cor e CinemaScope.”

A biografia de Roger Vadim (1928-2000) no Baseline, uma base de dados americana sobre cinema, começa assim:

“Presença formidável no cinema francês da segunda metade dos anos 1950 e 60, tão bem conhecido por sua capacidade de moldar esposas e amantes em starlets quanto por suas ocasionais conquistas cinematográficas. Ex-ator de teatro, assistente do diretor Marc Allégret e jornalista, Vadim – com sua então esposa Brigitte Bardot – atraiu atenções mundiais com o lançamento de … And God Created Woman (1956). As cores impressionantes em widescreen e a franqueza erótica (inclusive tomadas de Bardot seminua) garantiram ao filme um vasto sucesso comercial e pavimentou o caminho para o subsequente avanço da New Wave, ao convencer os produtores franceses da viabilidade dos jovens diretores.”

         Uma trama interessante, personagens bem construídos

Pretendo transcrever aqui outros textos sobre E Deus Criou a Mulher, mas antes é necessário fazer uma sinopse – e um primeiro rápido registro meu. Nunca tinha visto o filme antes; sempre soube da importância dele pelo fato de ter transformado a jovem Brigitte Bardot em um fenômeno mundial – mas achava que muito certamente seria um filme muito ruim, um fiapinho de história boba só para exibir o corpo da atriz. Finalmente resolvi ver agora, 66 anos depois de seu lançamento.

Não é, de forma alguma, um filme muito ruim, uma porcaria, um abacaxi. De forma alguma.

Roger Vadim e o produtor Raoul Lévy assinam o roteiro original – ou seja, foram também os criadores do argumento, da história. E é uma história interessante, bem construída, com bons personagens, sólidos, fortes. É bom lembrar que este foi o primeiro filme dirigido por Vadim, então com 28 anos de idade, apenas, mas ele já era um roteirista com alguma experiência, com oito filmes no currículo.

Vou tentar fazer uma sinopse sintética, objetiva, deixando para depois eventuais considerações, opiniões.

St. Tropez, cidade até então não muito badalada na Côte d’Azur, dias atuais (1956, portanto). Juliette Christine Hardy era órfã de pai e mãe, e havia sido recolhida no orfanato por um casal de meia-idade, sem filhos, os Morin (os papéis de Jeanne Marken e Paul Faivre). Não se fala exatamente a idade de Juliette, se 18, 19 ou 20, mas o fato é que não tem 21 anos, é legalmente menor de idade – fato fundamental na trama.

Juliette nos é apresentada como uma mocinha alegre, que quer aproveitar a vida – ouvir música, dançar, ir a bares, namorar. Trabalha numa livraria-banca de jornais e revistas – por obrigação, apenas; não gosta daquilo, não trata bem os clientes. Na verdade, a moça é preguiçosa. Não gosta dessa coisa de fazer esforço, trabalhar.

Não se mostra se Juliette já namorou várias pessoas, se já fez sexo alguma ou muitas vezes. Nos anos 1950, a virgindade era tida como uma coisa importantíssima – era um grande tabu. Mas o fato é que a moça belíssima tem fama de “galinha”, “vagabunda”, “puta”.

Dois homens bastante díspares babam em especial por Juliette. Eric Carradine (o papel do astro alemão Curd Jürgens, muito famoso na época) é um empresário milionário, que tem planos de investir muito dinheiro em St. Tropez, para construir um bom estaleiro e um grande cassino. Michel Tardieu (o papel de Jean-Louis Trintignant, 26 aninhos no ano do lançamento, belo como um Apolo jovem, no quinto dos 146 títulos de sua filmografia) é o segundo dos três filhos de uma família batalhadora, dona de uma pequena oficina de conserto de barcos.

Juliette, por sua vez, baba por Antoine Tardieu, o irmão mais velho de Michel. (Antoine é o papel do galã Christian Marquand, à época com 14 filmes no currículo.) Já Antoine gostaria muito de comer aquela garotinha gostosérrima – mas só isso, nenhuma ligação afetiva envolvida. Na cabeça dele, ela é uma putinha.

Já há aí elementos dramáticos suficientes – mas tem muito mais.

Os planos do milionário Eric Carradine de construir um estaleiro e um cassino no litoral ali de St. Tropez incluem necessariamente a compra do terreno que pertence à família Tardieu, ocupado pelo pequena oficina-estaleiro criado pelo pai de Antoine e Michel, morto dois anos antes.

Madame Morin, a senhora que havia resolvido adotar Juliette, está cada vez mais irritada com ela, com a preguiça dela, com aquela vontade eterna dela de só gozar a vida, com sua má fama de namoradeira. E decide que vai devolver a moça ao orfanato.

Numa boa de sacada dos criadores da trama, há um momento, uma noite, em que tudo se encaminha para que Antoine coma a moça – mas ele fala tudo o que sente sobre ela no banheiro do bar em que os dois estão, e, no banheiro feminino, ao lado, Juliette ouve tudo. E corta na hora o programa já todo desenhado pelo babaca.

O casal quer devolver a moça para o orfanato

Ahnn… Não estou conseguindo fazer uma sinopse sintética, nem objetiva. Síntese e objetividade são qualidades admiráveis que o Criador distribuiu em um momento em que eu estava bem longe. Mas vamos em frente.

Eric, o empresário milionário, consulta seu advogado sobre que formas haveria de impedir que os Morin devolvessem Juliette ao orfanato. Uma das formas, ele fica sabendo, seria alguém se casar com ela.

Dá-se, então, uma sequência impressionante.

É o domingo de Páscoa, e a família Tardieu vai ao cemitério prestar homenagem ao pai dos três homens, Emile. Anotei as datas de nascimento e morte do patriarca: 1897-1954. Saem do cemitério, caminhando pela estrada, a mãe, Madame Tardieu (Marie Glory) e os três filhos. O ricaço Eric Carradine chega perto deles, desce do carro, caminha com eles. Rola este diálogo:

A senhora Tardieu: – “Acabo de ficar sabendo que os Morin vão mandar Juliette de volta ao orfanato”.

Michel, o segundo filho, tímido, pergunta para o ricaço: – “O senhor disse que podemos impedir de a levarem para o orfanato? Como?”

Carradine: – “Precisaria que um homem sacrificasse sua liberdade para que ela mantivesse a dela.”

– “Casar com ela?”, pergunta Michel.

Antoine, o mais velho, dá uma gargalhada: – “Casar com Juliette? O infeliz nunca mais poderia usar um chapéu.”

E a senhora Tardieu confirma: – “Ela não encontrará um marido aqui. Pode acreditar.”

O grupo continua andando – menos Michel, que fica parado junto a um muro, uma expressão pensativa.

Anotei também um outro diálogo interessante, que acontece bem mais tarde. O milionário Eric Carradine conversa com Antoine a respeito de Juliette.

Carradine: – “Ela chora?”

Antoine: – “Claro que não.”

Carradine: – “Talvez chore quando está sozinha.”

Antoine: – “Ela é safada demais para isso.”

Carradine: – “Quando se trata de psicologia das mulheres, meu caro Antoine, você ficou na Idade da Pedra.”

“Para acabar com o puritanismo e o excesso de rigor”

Volto a transcrever mais textos. Acho que E Deus Criou a Mulher é um filme importante, que merece ter aqui essas transcrições – e ainda há o fato de que este + de 50 Anos de Filmes ainda não havia falado devidamente sobre Brigitte Bardot.

Já transcrevi o que diz um belo livro inglês que fala dos principais filmes e eventos de mais de um século de cinema. Vou agora com o que diz o livro Le Siècle du Cinéma, de Vincent Pinel:

“Brigitte Bardot explode na cara do cinema francês sobre uma tela grande colorida e em dimensões de CinémaScope: Et Dieu Créa la Femme. Vadim impõe uma atriz fora das normas. Um único filme basta para criar o fenómeno B.B. Ela tinha apenas 22 anos em 1956, e já uma longa carreira. Em 1949, posando para a capa de um jornal da moda, foi notada por Marc Allégret, cujo assistente era exatamente Roger Vadim. Em 1952, ela se casa com Vadim, que a encoraja a ser atriz.”

Pausa na transcrição para realçar o detalhe. A moça havia nascido em 1934. Em 1952, tinha portanto 18 anos. Era menor de idade, assim como a Juliette que Vadim criou e ela encarnou!

Volto ao texto do Le Siècle du Cinéma:

“Ela obteve papéis secundários em filmes que tiveram algum reconhecimento: Si Versailles m’était conté, de Guitry, Le Fils de Caroline Chérie, de Devaivre, e sobretudo Les Grandes Manoeuvres, de René Clair, mas parecia que ela deveria se contentar com empregos um pouco decorativos de starlette loura.”

(Os títulos brasileiros são, respectivamente, Se Versalhes Falasse, 1954, Os Amores do Filho de Carolina, 1955, e As Grandes Manobras, 1955.)

“Em 1956, com o medíocre filme La Lumière d’en Face (no Brasil A Luz do Desejo), Bardot se mostra mais perturbadora: seu jogo insólito e sua sensualidade transbordante incomodam profundamente Truffaut (que em seguida mudará de idéia), enquanto deixam entusiasmado Doniol-Valcroze, que faz da atriz essa descrição magnífica: ‘Uma bela pessoa, graciosamente provocante, com perfil das moças de Auguste Renoir, um andar de dançarina, uma admirável crina de cavalo selvagem e aquelas curvas requintadas que Maillol teria amado’. Toda a personagem de B.B. já está lá. E depois chega às salas francesas Et Dieu Créa la Femme. Bardot detona antes de tudo por sua atuação: como mais tarde faria um Jean-Pierre Léaud, ela impõe um tom falso que soa justo. Ela rompe um certo número de convenções um pouco teatrais da atuação do ator de cinema (os grandes astros da época eram Micheline Presle e Gérard Philipe…). A atuação ‘natural’ não será mais como era…

“O título, Et Dieu Créa la Femme, anuncia já essa procura por um ‘novo natural’, um retorno a um frescor original. Vadim propõe uma visão mais autêntica da mulher, rompendo com a imagem que dava ela o cinema do após-guerra. Por essa razão o filme, mostrando uma circulação de desejos desculpabilizados, parece uma pedra na lagoa. A ‘revolução de Bardot’ é, sem dúvida, para acabar com o puritanismo e o excesso de rigor do cinema francês do pós-guerra.”

Uau!

“Um filme sensível e inteligente”, escreveu Truffaut

Em 1956, o ano de lançamento do filme, todo mundo era jovem demais. Como já foi dito, Roger Vadim estava com 28 anos, Jean-Louis Trintignant, com 26, Brigitte, com 22. François Truffaut tinha 24, e trabalhava como crítico de cinema – e como escrevia bem o rapaz! A crítica dele foi incluída no seu livro Os Filmes da Minha Vida, lançado no Brasil pela Editora Nova Fronteira em 1989, com tradução de Vera Adami. É impossível, para mim, não transcrevê-lo.

“Paris inteiro assistiu ao filme, Paris inteiro fala nele; há os que se lamentam: “Nem ao menos é sujo!” e os que ficam chocados: “É indecente!” E Deus Criou a Mulher, do qual tínhamos tudo a temer depois da campanha de propaganda gratuita realizada pela censura, é um filme sensível e inteligente onde não se vê uma única vulgaridade; é um filme típico de nossa geração, pois é amoral (recusando a moral vigente sem propor nenhuma outra) e puritano (consciente dessa amoralidade e preocupado com ela). Não é um filme licencioso, é um filme lúcido e de grande franqueza.

“Muitos filmes são baseados no sexo e jamais se encontrou melhor maneira de fazer o público entrar no cinema que prometendo, por meio de cartazes e fotografias ‘sugestivos’ pregados na entrada, mundos e fundos, ou seja, carne fresca, geralmente a de corpos femininos jovens. Observemos que a clientela feminina não é menos insensível à atração carnal masculina: contem os filmes nos quais Georges Marchal, James Dean e Curd Jürgens não aparecem pelo menos um instante de torso nu. (Quanto a Pierre Fresnay, ele sempre se reserva uma cena de pulôver com gola rulê.)

“E no entanto, logo que essa carne fresca aparece na tela, ouvem-se apenas cacarejos, gozações e barulho da parte de um público inescrupuloso que vem secretamente em busca de emoções mas que, a ser surpreendido com a boca na botija, prefere dar uma de mais esperto que os autores.

“Para evitar as zombarias, muitos diretores desistem das cenas eróticas que muitas vezes estão implícitas nos roteiros; é deprimente ouvir o público rir de uma cena audaciosa que se pretendeu forte e grave. Os cineastas franceses se desforram no erotismo dos diálogos e nossas libertinagens nacionais, de incrível vulgaridade e complacência, passam por espirituosas comédias satíricas.

“É sobre essa questão de erotismo e costumes que as gerações se opõem mais claramente e, apesar da vasta audiência que E Deus Criou a Mulher certamente terá, apenas os jovens espectadores ficarão do lado de Vadim, que vê as coisas como eles vêem, com o melhor olhar.

“Com o pretexto de contar uma história que vale o que vale, nem mais nem menos, Vadim nos mostra, sob todos os ângulos, uma mulher que conhece bem, a sua. Exibicionista, vagamente inconsciente, de temperamento bastante nudista, Juliette, mulher-criança, ou melhor, mulher-bebê, passeia ao sol mediterrâneo, os cabelos ao vento do mar, suscitando desejos obscuros e precisos, puros ou impuros, desejos. É uma boa moça a quem amam ou demais ou não o bastante, que é mal amada e que só pede para amar de verdade, para sempre, e a quem o conseguir.

“O escândalo – pois há um pequeno escândalo – provém da incomum franqueza do roteiro. Para provocar o público e deixá-lo ir embora com a consciência tranquila, Leonide Moguy apresenta ‘casos médicos’, Cayatte ‘casos jurídicos’ e Ralph Habib ‘casos sociais’; basta colocar um figurante de jaleco branco na entrada de um hospital para salvar as aparências e fazer com que os censores, cada um mais cretino que o outro, fiquem do seu lado. Vadim não quis utilizar esses procedimentos hipócritas, jogou o jogo do realismo, da vida, sem nenhum cinismo e sem provocação, e ganhou à força de idéias e criações incessantes.

“O filme, evidentemente, não é perfeito. O roteiro poderia ser melhorado, cinco ou seis mots d’auteur poderiam sair; o ritmo inexiste e a direção de atores é desigual. O essencial, porém, é que o que há de bom realmente o seja: Brigitte Bardot está magnífica, ela mesma pela primeira vez; é preciso ver seus lábios tremerem violentamente depois das quatro bofetadas desfechadas por Trintignant; ela é dirigida amorosamente, como um animalzinho, como outrora Renoir dirigiu Cathérine Hessling em Nana.

“Não há nenhuma vulgaridade, nenhum mau gosto. A fotografia de Thirard é excelente, assim como os cenários de Jean André. Curd Jürgens confirma-se como um dos quatro piores atores do mundo; Christian Marquand encontra-se em franco progresso.

E Deus Criou a Mulher, filme intimista, filme caderno de anotações, revela um novo diretor francês mais pessoal que Boisrond, Boissol, Carbonnaux e Jofflé, e igualmente talentoso.”

Meu… Que honra para o jovem Roger Vadim receber uma crítica destas assinada por François Truffaut!

Juliette não é safada. E não tem culpa de ser bela

Acho que é necessário lembrar que naquela época – segunda metade dos anos 1950 –, vários jovens críticos franceses escreviam em diversas publicações, mas em especial nos Cahiers du Cinéma, a revista mensal que se transformava na Bíblia Sagrada para cinéfilos do mundo inteiro. Eram jovens, e queriam mudar tudo. Falavam muito mal do cinema francês que era feito até então (aquele texto do livro Le Siècle du Cinéma tem o mesmo tom negativo com relação ao “cinema do pós-guerra). E adoravam tudo que era diferente do padrão do cinemão feito pelos realizadores franceses que atuavam na época. Isso explica, creio, o entusiasmo de Truffaut com o primeiro filme dirigido por Roger Vadim.

A partir de 1959, aqueles jovens críticos rebeldes – o próprio Truffaut, mais Jean-Luc Godard, Éric Rohmer, Claude Chabrol – passariam a realizar seus próprios filmes, no que passou para a história como a nouvelle vague. A nova onda.

Acho interessante notar que o próprio Truffaut jamais dirigiu Brigitte Bardot. Godard fez um filme com ela, O Desprezo (1963), e, em Masculino-Feminino (1966), ela teve uma participação especial, não creditada. Louis Malle reuniu Brigitte e Jeanne Moreau na aventura Viva Maria (1965), e a dirigiu de novo em seu segmento de Histórias Extraordinárias (1968). E creio que foram só esses os filmes que a atriz fez com os diretores da nouvelle vague – sem contar, é claro, os vários em que ela foi dirigida pelo próprio Roger Vadim.

Lá no início desta anotação transcrevi o que diz o livro Cinema Year by Year 1894-2000: “O tumulto foi causado pelo erotismo e pela nudez nas cenas de amor”.

A afirmação não procede. Não há nudez em cenas de amor; a rigor, não há propriamente cenas de sexo, e não há explicitude alguma ao longo dos 92 minutos do filme. Há aquela tomada rapidíssima de Juliette-Brigitte deitada com a barriga para baixo e a bundinha para cima, e há várias cenas em que ela aparece com as coxas à mostra. E só. Acho que Truffaut acertou em cheia na sua crítica: “Não se vê uma única vulgaridade (…). Não é um filme licencioso, é um filme lúcido e de grande franqueza.”

Ele está corretíssimo também quando chama Juliette de “mulher-criança, ou melhor, mulher-bebê”. Juliette não é safada – bem ao contrário do que diz Antoine, um machista horroroso, parado na Idade da Pedra, como diz Eric Carradine. É uma mulher-criança, que não tem culpa alguma de ser bela e de sua beleza enlouquecer os homens.

Enquanto via este filme agora, pela primeira vez, um tanto surpreso por ver que, ao contrário do que eu imagina, não é de forma alguma uma porcaria, me ocorreu que essa Juliette de St. Tropez nos anos 1950 tem coisas em comuns com a Tess do campo inglês nos anos, sei lá, 1870, 1880 criada pelo grande Thomas Hardy e que Nastasja Kinski interpretou maravilhosamente no filme de Roman Polanski.

Há algumas coincidências interessantes. As duas lindas atrizes eram jovens demais quando interpretaram esses papéis; Brigitte tinha 22, como já foi dito, e Nastasja Kinski, 17. A interpretação de Tess transformou Nastasja em estrela mundial, exatamente como a interpretação de Juliette lançou Brigitte ao estrelato.

Mas o importante mesmo, me parece, é que as duas personagens atraíram sobre si as tragédias pelo fato de serem extremamente belas.

Tess não tinha culpa alguma. Juliette não tinha culpa alguma.

Anotação em dezembro de 2022

E Deus Criou a Mulher/Et Dieu… Créa la Femme

De Roger Vadim, França, 1956

Com Brigitte Bardot (Juliette Christine Hardy)

e Curt Jurgens (Eric Carradine, o milionário), Jean-Louis Trintignant (Michel Tardieu), Christian Marquand (Antoine Tardieu), Georges Poujouly (Christian Tardieu), Marie Glory (Madame Tardieu), Jeanne Marken (Madame Morin, a mãe adotiva de Juliette), Isabelle Corey (Lucienne, a amiga de Juliette), Jean Lefebvre (René, o cara que bate em Antoine), Philippe Grenier (Perri), Jean Tissier (M. Vigier-Lefranc, o amigo de Eric), Jacqueline Ventura (Mme. Vigier-Lefrance), Jacques Giron (Roger), Paul Faivre (M. Morin, o pai adotivo de Juliette), Leopoldo Frances (dançarino)

Argumento e roteiro Roger Vadim & Raoul Lévy

Fotografia Armand Thirard

Música Paul Misraki

Montagem Victoria Mercanton

Direção de arte Jean Andre

Produção Raoul J. Lévy, Cocinor, Iéna Productions, Union Cinématographique Lyonnaise (UCIL).

Cor, 92 min (1h32)

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Título em inglês: … And God Created Woman.

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