As Leis de Lidia Poët / La Legge di Lidia Poët

3.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 2/2023)

As Leis de Lidia Poët, minissérie italiana lançada em 2023 na Netflix, é uma inteligente, bem humorada, apaixonante, saborosíssima mistura de história real com desvairada fantasia. A produção é caprichadíssima, esmerada, com uma reconstituição de época impressionante. A ação se passa em Turim, na década de 1880.

E ainda tem a beleza, a graça, a sensualidade de Matilda de Angelis, essa moça fantástica.

Lidia Poët existiu – e foi uma personalidade muito importante, a primeira mulher advogada da Itália. Por puro e absoluto machismo, um tribunal de Turim cassou o direito de ela exercer a advocacia. Lutou anos, décadas para recuperar esse direito – e sua luta inspirou milhares e milhares de italianas. Nasceu em 1855, e teve vida longa – morreria em 1949, aos 93 anos. Os fatos de sua vida real foram contados em uma biografia assinada por Cristina Ricci, com um título que já diz muito, Lidia Poët. Vita e battaglie della prima avvocata italiana, pioniera dell’emancipazione femminile.

Bem diferentemente do que deve ser aquele trabalho, As Leis de Lidia Poët apenas se inspira na vida da mulher batalhadora, pioneira, feminista – e, a partir de alguns fatos reais, cria histórias que até poderiam ter acontecido, mas não aconteceram, de forma alguma.

Os autores fazem questão de dizer isso, com todas as letras – letrinhas bem pequeninas, é verdade, no meio dos longos créditos finais de cada um dos seis episódios de cerca de 40 a 45 minutos cada. Adorei a forma com que eles explicam que viajaram, soltaram a franga e a imaginação para inventar as histórias da série:

“Este filme é livremente inspirado na figura e na vida de Lidia Poët, primeira mulher advogada da Itália. Os eventos e os personagens foram todavia romanceados pelos autores, por fins narrativos, e portanto qualquer eventual referência a fatos ou personagens que realmente existiram ou existem é fruto de reelaboração criativa, sem qualquer intenção de reconstrução histórica.”

“Reelaboração criativa”, nada a ver com “reconstrução histórica”. Uma deliciosa maneira de dizer: ó, pessoal, nós inventamos quase tudo, tá legal?

Cada episódio tem uma boa história policial

E a verdade é que os criadores da série, Guido Iuculano e Davide Orsini, autores do argumento e do roteiro, fizeram uma beleza de trabalho. (Assinam o roteiro, além dos dois criadores, também Elisa Dondi, Daniela Gambaro e Paolo Piccirillo.) Em cada um dos seis episódios, conta-se uma história, um caso policial, um crime – em que Lidia Poët trabalhou a favor do acusado. Ao mesmo tempo, ao longo de todos os seis episódios, vai rolando a história da própria personagem-título, na profissão, na família, nas relações afetivas.

A Lidia da série é filha de um homem importante, rico, muito conhecido em Turim, um advogado famoso. Extremamente rígido e conservador, ele não admitia que a filha estudasse Direito, coisa que, diabo, não é para mulher. E mais ainda: exigia que ela se casasse com um determinado rapaz, filho de um amigo dele.

E então Lidia havia fugido de casa, sumido completamente das vistas da família, e se dedicara a estudar Direito.

Tudo isso acontece antes dos fatos mostrados na série; vamos ficando sabendo dessas coisas do passado aqui e ali, através de diálogos.

Quando o primeiro episódio começa, Lidia está formada e já havia obtido o direito a exercer a advocacia. Não demora, no entanto, para que um tribunal casse esse direito, sob a argumentação – espantosa, chocante – de que as lides nos tribunais não são coisa para mulheres, da mesma maneira como, por exemplo, o direito ao voto.

Aqui, creio, é bom contextualizar, lembrar elementos da vida real. A Itália não era um caso isolado nessa coisa absurda de proibir que mulheres advocassem. Segundo a Wikipedia, a Alemanha teve sua primeira advogada mulher em 1897; Portugal, em 1913; a Espanha, em 1921. Aqui neste longínquo e atrasado Terceiro Mundo, até que as coisas não foram feias, na comparação com a Europa: o Chile teve a primeira advogada em 1892, o Brasil, em 1898, e a Argentina, em 1909.

Voltando à série:

Sem dinheiro para nada, sequer para pagar o quarto de pensão em que vivia, Lidia aparece pela primeira vez em muitos anos na casa de seu único irmão, o primogênito Enrico (o papel de Pier Luigi Pasino, na foto abaixo). Pai e mãe, a essa altura, já estavam mortos fazia algum tempo.

Enrico é uma figuraça – e esse Pier Luigi Pasino está perfeito na composição do personagem. Careta ao extremo, formal, todo empertigado, é dominado pela mulher, Teresa (Sara Lazzaro) igualmente careta, formal e empertigada. O casal aceita receber a irmã dele na sua casa extremamente ampla, mas é visível, a cada momento, que marido e mulher se assustam com cada movimento de Lidia. E Lidia de fato parece, naquela casa burguesa e careta, um elefante numa loja de louça.

Enrico e Teresa têm uma filha, Marianna (Sinéad Thornhill), uma adolescente muito bonita, aí de uns 16 ou 17 anos, que está namorando (obviamente em segredo) o jovem jardineiro da casa. A moça, naturalmente, é a parente que mais gosta de Lidia, a ovelha negra da família.

Lidia tem um amante, um rapaz bem de vida, Andrea (Dario Aita). Mas vai se sentir bastante atraída pelo irmão de Teresa, que também vive no casarão de Enrico. Chama-se Jacopo Barbieris (o papel de Eduardo Scarpetta, um ator danado de feio porém charmoso), é jornalista e um danado de um mulherengo.

Uma detetive de fazer inveja a Holmes

Os acontecimentos da vida pessoal de Lidia, suas relações com a família, com o amante e o cunhado do irmão, tudo isso, como foi dito, vai sendo mostrado ao longo de todos os seis episódios. Em cada um deles, paralelamente, apresenta-se um caso policial.

A Lidia Poët que os criadores da série nos apresentam é, antes mesmo que uma grande advogada, uma sensacional, extraordinária detetive. Tem um faro fantástico para enxergar indícios da inocência dos acusados de crimes que caem em suas mãos, e para descobrir quem poderia ser na verdade o criminoso.

No primeiro episódio, é assassinada a prima ballerina do corpo de baile mais importante de Turim, e o acusado é um rapaz pobre que era fascinado pela garota. A mãe do rapaz procura Lidia para defender o filho – e logo a jovem advogada vai fazendo descobertas que deixariam o próprio Sherlock Holmes encantado com a intuição da moça.

No segundo episódio, uma trabalhadora em uma indústria, uma anarquista, é acusada de matar a mulher do patrão. Lidia já havia sido proibida de continuar exercendo a advocacia, mas ela insiste para que seu irmão aceite fazer a defesa da acusada, ela mesma trabalhando como sua assistente.

No terceiro episódio, Vittorio Muraro (Luca Filippi), amigo de infância de Enrico e Lidia, aparece no casarão do advogado confessando que matou seu pai – o homem que havia sido grande amigo do pai dos dois irmãos, e que havia comprado do dr. Poët a mansão em que Enrico e Lidia passaram a infância. Vittorio era viciado em ópio, vivia sempre drogado; uma noite, acordou com uma faca ensanguentada na mão, e viu no escritório o corpo do pai no meio de uma poça de sangue.

Lidia investiga, e logo descobre que Vittorio era inocente.

Esse terceiro episódio é especialmente fascinante e bem escrito; mistura, de maneira brilhante, aquele caso policial com a vida pessoal dos irmãos Poët. Era com Alberto Muraro (Alessio Del Mastro), o irmão de Vittorio, que o dr. Poët exigia que a filha se casasse.

As descobertas de Lidia sobre o caso não apenas vão garantir que Vittorio seja inocentado como vão também lançar luzes sobre mazelas do pai – o que, de maneira interessante, fará com que Enrico passe a se aproximar mais da irmã ovelha negra a partir dali.

No quarto episódio, a trama policial envolve uma pesquisadora acusada de envenenar um cientista que era seu professor. E, na quinta, uma prostituta é acusada de assassinar um cliente.

Uma narrativa brincalhona, que foge do realismo

Todas as tramas policiais são muito bem boladas, interessantes, fisgam direitinho o espectador.

O desempenho de Lidia Poët como detetive em todos esses casos é fantástico, delicioso. A moça é inteligentíssima, tem um faro que não falha – e ela se lança de corpo e alma nas investigações. Não fica de longe, raciocinando, confiando apenas na sua capacidade de dedução. Não: ela se joga no meio da confusão. Por exemplo: para investigar a morte da mulher do industrial, no segundo episódio, ela invade o escritório dos diretores da fábrica, durante a noite, acompanhada de Jacopo Barberis, o jornalista igualmente enxerido, corajoso – e, é claro, a fim da moça bonita e gostosa, e topando tudo para agradá-la. Para investigar o caso em que a prostituta é acusada de assassinato, topa participar de um programa com um grupo de prostitutas que toda quarta-feira à noite vai a um quartel transar com a soldadesca.

Enquanto víamos a série, Mary reparou algumas vezes que Lidia Poët trabalha como detetive com o mesmo jeitinho impetuoso e aventureiro de Enola Holmes, a personagem maravilhosa criada pela escritora Nancy Springer e interpretada pela igualmente maravilhosa Millie Bobbie Brown.

De fato, têm muito a ver uma com a outra a adolescente inglesa irmã caçula de Sherlock Holmes e esta advogada italiana com um fantástico talento para detetive. Até a época em que as duas vivem é a mesma – as últimas décadas do século XVIII, a época da Rainha Victoria no Império Britânico e do imperador Umberto I na Itália, citado algumas vezes na série.

Ambas são inteligentíssimas, ambas são detetives com talento extraordinário. Ambas são alegres, brincalhonas, atrevidas, aventureiras, corajosas, destemidas.

Assim com os dois filmes Enola Holmes, esta série aqui tem, o tempo todo, um tom brincalhão, divertido, gozador.

Esta é uma característica fundamental de La Legge de Lidia Poët: a narrativa não procura jamais ser realista. O tempo todo – ou no mínimo na maior parte do tempo – o tom é brincalhão, divertido, propositalmente distante de um retrato fiel da realidade. E volta e meia Lidia Poët-Matilda de Angelis faz uma expressão divertida, como se estivesse, ela própria, rindo da forma com que sua história está sendo apresentada.

A série não se furta a apresentar gostosas cenas de sexo

Claro, é preciso realçar que há uma diferença marcante, importante, entre Enola Holmes e Lidia Poët. A inglesinha é uma adolescente, ainda, enquanto a italiana está aí na plenitude dos quase 30 anos – e, muito diferentemente da irmã caçula de Sherlock, a advogada faz sexo. Adora o esporte, é craque – e bate um bolão.

Há na série gostosas, alegres cenas de sexo.

Matilda de Angelis nasceu em Bolonha, no Norte da Itália, em 1995. Estreou diante das câmaras aos 20 anos, em 2015, numa minissérie, L’età dell’oro, a idade de ouro, e, no início de 2023, quando As Leis de Lidia Poët foi lançada, já estava com 21 títulos na filmografia, seis prêmios e outras seis indicações. Em 2020 trabalhou no gostoso filme A Incrível História da Ilha dos Rosas e na minissérie da HBO The Undoing, ao lado de Hugh Grant e Nicole Kidman, no papel da jovem sensualíssima que se torna amante do bem sucedido médico protagonista da história, interpretado pelo galã inglês – e é brutalmente assassinada, ao que tudo indica pelo próprio amante.

Os realizadores de The Undoing não tiveram dúvida alguma, e expuseram o corpo da jovem italiana em diversas sequências. Sobre sua personagem na série e ela mesma, anotei: “Elena Alves tem um corpo absolutamente escultural, belíssimo, uma perfeição, uma obra de arte, um tesão absoluto. Quando o primeiro episódio está com apenas 18 minutos, a câmara focaliza Elena Alves inteiramente nua – de pé, de frente, depois de costas. Elena Alves, quer dizer, a atriz Matilda De Angelis, que a interpreta, é uma monstruosidade de mulher gostosa.”

A série encerra um ciclo. Mas, se for o caso…

Um detalhinho sobre os títulos que a série recebeu. (Adoro detalhinhos sobre títulos…)

No original italiano é La Legge de Lidia Poët. A lei de Lidia, direto, no singular. No Brasil optaram pelo plural, As Leis de Lidia Poët. Em inglês e em francês, fugiram um tanto da simplicidade básica do original e do espírito da série, me parece. Virou The Law According to Lidia Poët, a lei segundo Lidia, de acordo com Lidia, e Lidia Fait Sa Loi, Lidia faz sua lei. Ora bolas. Tanto o título em francês quanto o em inglês dão a entender que a protagonista cria suas próprias leis, que não obedece às leis existentes, ao ordenamento jurídico. Quase como se ela fosse uma fora-da-lei.

Isso me parece que de fato não tem a ver com o que a série quer passar e passa.

Sim, Lidia é uma rebelde, uma pioneira, uma batalhadora, quer fazer avançar o curso da História. Mas ela não se insurge contra as leis existentes, e sim contra o reacionarismo calhorda, os preconceitos imbecis – não escritos, não regulamentados, não legais – que cassavam das mulheres alguns de seus direitos básicos.

Bem, mas isso de fato é detalhe.

Agora, um pouco sobre a Lidia Poët da vida real (na foto acima), tirado da Wikipedia:

Lidia Poët (26 de agosto de 1855-25 de fevereiro de 1949) foi a primeira advogada mulher da Itália. Ela passou nos exames da Faculdade de Direito da Universidade de Turim e recebeu seu diploma em 1881. Em 1883, foi aprovada nos exames teóricos e práticos da Ordem dos Advogados de Turim por 45 dos 50 votos.

Todavia, a inscrição de uma mulher na ordem “não agradou” (está entre aspas, assim, na Wikipedia em inglês) o escritório do procurador geral, que entrou com uma queixa na Corte de Apelação de Turim. Apesar das réplicas, argumentos, dos exemplos de advogadas em outros países, a Corte de Apelação decidiu que a inscrição de Lidia Poët era ilegal. Ela apelou para a Corte de Cassação de Turim – e perdeu.

Interessante: esses fatos básicos estão todos nos seis episódios da série. Os criadores – é o que tudo de indica – tomaram toda a liberdade para criar as histórias policiais da série, mas se apoiaram firmemente nos principais dados reais da luta de Lidia Poët para advogar.

O banimento de Lidia Poët da Ordem dos Advogados, prossegue a Wikipedia, abriu um grande debate na sociedade italiana, e levou a um amplo movimento em defesa dos direitos das mulheres. Nada menos de 25 jornais do país passaram a defender a atuação das mulheres nos tribunais, enquanto três outros defendiam a posição inversa.

Lilia Poët passou a ter uma atuação destacada em defesa dos direitos das mulheres. Em 1919, uma lei nacional garantiu o acesso das mulheres italianas a postos na administração pública. Um ano depois, quando já estava com 65 anos, a pioneira foi finalmente inscrita na Ordem dos Advogados de Turim.

Os criadores da série souberam, com muita esperteza, encerrar o sexto episódio de uma forma que ao mesmo tempo fecha um ciclo, conclui aquela parte da história dessa personagem fascinante – e deixa aberta a possibilidade de, quem sabe?, fazer uma segunda temporada. A depender, é claro, da receptividade que esses seis primeiros episódios obtiverem.

O lançamento mundial da série foi no dia 15 de fevereiro – Mary e eu a vimos pouquíssimos dias após a Netflix a colocar no ar, algo que não é nada comum para nós. Assim, ainda é muito cedo para saber como serão os índices de audiência.

Dez dias após o lançamento, 2 mil pessoas haviam dado nota à série no IMDb – e a média obtida era bem alta, de 7,5.

Torço para que haja uma segunda temporada. Mas, se não houver, paciência. Beleza: essa primeira é absolutamente satisfatória. É, sem dúvida, uma delícia de série.

(Na foto posada para o marketing da série, os atores que fazem Marianna, Jacopo, Lidia, Enrico e Teresa.)

Anotação em fevereiro de 2023

As Leis de Lidia Poët/La Legge di Lidia Poët

De Guido Iuculano e Davide Orsini, criadores, roteiristas, Itália, 2023

Direção Letizia Lamartire, Matteo Rovere  

Com Matilda De Angelis (Lidia Poët)

e Eduardo Scarpetta (Jacopo Barberism jornalista, cunhado de Enrico),

Pier Luigi Pasino (Enrico Poët, o irmão mais velho de Lidia),

Sinéad Thornhill (Marianna Poët, a filha de Enrico e Teresa), Sara Lazzaro (Teresa Barberis, a mulher de Enrico), Dario Aita (Andrea, o namorado de Lidia), Francesco Patanè (Pietro Baiocchi), Luca Filippi (Vittorio Muraro, o amigo viciado em ópio), Alessio Del Mastro (Alberto Muraro, o irmão de Vittorio), Francesca De Martini (Matilde Muraro), Marit Nissen (Vera Cressphal), Matilde Vigna (Anita Tosetti), Giorgia Spinelli (Margherita Sangiacomo), Sara Borsarelli (a dona do bordel), Denis Fasolo (Massimino Chiaia), Marco Cacciola (Rodolfo Fumigi), Riccardo Forte (advogado Coletti), Ulisse Provolo (Agostino Cervi), Margherita Di Rauso (Giuditta Ancelli, a encarcerada no hospício), Eugenio Gradabosco (juiz do tgribunsal de cassação), Valentina Violo (Beatrice), Diego Giangrasso (Carlo Ferrero), Alexander Perotto (Professor Manganelli), Nicolo Pasetti (Louis, o anarquista francês), Mia McGovern Zaini (Lidia Poët criança)

Roteiro Guido Iuculano, Davide Orsini, criadores, e Elisa Dondi, Daniela Gambaro, Paolo Piccirillo    

Argumento Guido Iuculano, Davide Orsini

Fotografia Francesco Scazzosi, Vladan Radovic

Música Massimiliano Mechelli

Casting Sara Casani      

Desenho de produção Luisa Iemma  

Produção Guido Iuculano, Davide Orsini, Groenlandia

Cor, cerca de 270 min (4h30)

***1/2

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