O Julgamento de Tóquio / Tokyo Trial

Nota: ★★★★

(Disponível na Netflix em abril de 2022.)

O Julgamento de Tóquio, microssérie de 2016, é espetacularmente bem realizada, em todos os quesitos. É cinema de primeira qualidade, cinema grande, mesmo que feito para a TV. (Faz anos que essas fronteiras entre feito para a TV e feito para a cinema viraram ficção, e muito do melhor cinema que se faz é para a TV.)

Mas, para além de ser grande cinema, a microssérie (apenas quatro episódios de cerca de 45 minutos cada, num total de 3 horas, bem menos que Ben-Hur, Cleópatra e tantos outros filmes), tem pelo menos três características fantásticas, fascinantes.

A primeira: Tokyo Trial consegue a proeza de abordar um evento bem pouco conhecido da Segunda Guerra Mundial, o conflito que mais rendeu filmes ao longo destes 120 anos de cinema. “Seguramente nenhum evento da História da humanidade foi tão dissecado pelo cinema quanto a Segunda Guerra Mundial”, escrevi em 1995, quando fazia exatos 50 anos que ela havia acabado, no texto de apresentação de uma seção do CD-ROM produzido pela Agência Estado sobre a Segunda Guerra. A afirmação continua valendo hoje, quase um quarto de século depois que foi feita, 74 anos após o final do conflito. Até porque de lá para cá dezenas e dezenas de novos filmes sobre a guerra foram e continuam sendo produzidos.

Pois então. A série reconstitui – com talento, brilho – o que foi o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente (The International Military Tribunal for the Far East, ou IMTFE, em inglês). O Nuremberg dos criminosos de guerra japoneses.

Diabo! Até ver a série agora, eu nunca soube que houve um julgamento em Tóquio nos moldes do Julgamento de Nuremberg, este sim, é claro, super conhecido – e que, além de muitíssimo falado, deu origem a um filme maravilhoso, um grande clássico, Julgamento em Nuremberg (1961), de Stanley Kramer, com um elenco multi-estelar (Spencer Tracy, Burt Lancaster, Richard Widmark, Marlene Dietrich, Maximilian Schell, Judy Garland, Montgomery Clift, William Shatner), 11 indicações ao Oscar, vencedor nas categorias de ator para Maximilian Schell e roteiro adaptado para Abby Mann.

Nem eu, nem Mary tínhamos ouvido falar – o que fez com ela repetisse a versão dela da verdade socrática, “a gente não sabe de coisíssima nenhuma, a gente não conhece nada”.

Parece que não somos propriamente uma exceção. Está no IMDb, na página de Trivia sobre Tokyo Trial: “Antes que essa minissérie fosse produzida, pouco se sabia sobre o Julgamento de Tóquio no mundo ocidental. É uma das maiores histórias não contadas da História da Segunda Guerra Mundial”.

Um filme internacional, com gente de 14 países

A segunda característica sensacional desta série é que ela é uma produção absolutamente internacional. É uma co-produção de três países, cada um de um continente: Canadá, Países Baixos e Japão. São dois diretores, um canadense, Rob W. King, um holandês, Pieter Verhoeff. O roteiro é de autoria de quatro pessoas: o canadense Rob W. King, o australiano Max Mannix, o japonês Toru Takagi e o holandês Kees van Beijnum.

O cinema é uma arte que em geral está alguns anos-luz à frente da sociedade, e o fato de haver filmes sobre a Segunda Guerra feitos por países que estiveram dos lados opostos no front não é de forma alguma novidade. Em 1970, 25 anos após o final da guerra, por exemplo, japoneses e americanos se uniram para fazer Tora! Tora! Tora!, sobre o ataque japonês à base americana de Pearl Harbor na ilha de Oahu, no Havai, na manhã de 7 de dezembro de 1941, que marcou o início da guerra entre os dois países e a entrada dos Estados Unidos, finalmente, na luta contra o nazifascismo na Europa e no Norte da África.

Ainda antes disso, em 1961 – apenas 16 anos após o fim da guerra -,

o astro Kirk Douglas e a então jovenzinha Christine Kaufmann, austríaca filha de alemão, contracenaram em um filme absolutamente ousado, sobre quatro soldados do Exército de ocupação americano acusados de estuprar uma jovem alemã; o diretor era o alemão Gottfried Reinhardt, e Cidade Sem Compaixão era uma co-produção EUA-Alemanha Ocidental-Suíça.

São, é claro, apenas dois exemplos. Há muitos e muitos outros.

Mas o fantástico neste Tokyo Trial é que é uma co-produção de Japão contra dois de seus inimigos na guerra, Canadá e Paíkses Baixos, e que tem pessoas de nada menos de 14 diferentes nacionalidades! Entre o elenco e as equipes há gente dos seguintes países: Austrália, Canadá, China, Estados Unidos, Filipinas, França, Países Baixos, Índia, Japão, Lituânia, Polônia, Reino Unido, Rússia e Sérvia.

Uma beleza de quasedocumentário, featurmentary

A terceira característica fenomenal da minissérie é junção impressionante que ela faz de tomadas de cinejornais da época, do próprio julgamento, com as sequências feitas agora, as sequências da série mesmo, de recriação, reconstituição dos eventos históricos.

De novo, mais uma vez: não que isso seja algo inédito. Claro que não é inédito. Ninguém descobre uma nova roda, nunca se cria algo que já não tenha sido feito antes, depois de 120 anos de História do cinema.

Vários outros filmes já fizeram, com maestria, a junção, a mistura de tomadas de cinejornais com as criadas para contar uma história real, ou que tenha a ver com elementos da grande História. O número de exemplos é imenso, mas me ocorreu aqui o caso – lindíssimo – de A Insustentável Leveza do Ser (1988), em que Philip Kaufman, o mestre da fotografia Sven Nykvist e o montador Walter Murch misturam tomadas de cinejornais da invasão de Praga pelos tanques do Pacto de Varsóvia em 1968 com as sequências filmadas 20 anos depois.

Mas a verdade é que não me lembro de ter visto nada que tenha juntado filmagens de cenas reais, históricas, com as sequências que recriam os fatos reais durante tanto tempo, tantas vezes ao longo da narrativa, e de forma tão absolutamente brilhante.

É muito, muito, muito impressionante.

Vemos imagens filmadas na época da bancada em que estão sentados os 11 juízes internacionais, diante do tribunal, os acusados, o público reunido no grande salão – e em seguida a câmara faz um travelling mostrando os atores que estão representando aqueles 11 juízes.

Logo em seguida vemos a imagem de um dos acusados respondendo a perguntas do promotor – imagens da época, o próprio acusado ali na cadeira da testemunha falando. E corta e vemos a recriação daquela cena feita agora para a série.

As imagens de época, as imagens do evento histórico, se misturam perfeitamente ao filme feito agora. Se juntam, se mesclam, se fundem.

Para aumentar ainda mais o efeito dessa junção, muitas vezes as imagens filmadas agora, com os atores, aparecem em preto-e-branco, como eram as imagens dos cinejornais da época.

É impressionante. É sensacional.

No dia seguinte àquele em que vimos os episódios 3 e 4 da microssérie, antes de me sentar para começar este texto, me peguei pensando na palavra mockumentary.

Mockumentary é a junção de mock (zombaria, imitação, coisa falsa) com documentary. O termo foi criado para designar filmes que apresentavam falsos documentários, pseudodocumentários – essa coisa de que Woody Allen foi um precursor, com seu filme de estréia como diretor, Um Assaltante Bem Trapalhão/Take the Money and Run (1969).

A língua inglesa, que tanto adora criar palavras novas, precisaria inventar um termo para designar os filmes de ficção baseados em histórias reais que procuram reproduzir com grande fidelidade os eventos históricos. Os filmes que são exatamente o oposto dos mockumentaries. Os filmes de ficção que são tão precisos na reconstituição histórica que até parecem documentários.

Featurmentary, talvez. Mistura, junção, de feature film, a expressão para designar filme de ficção, de relato de história, com documentário.

Na nossa Última Flor do Lácio poderias ser quasedocumentário. Ou ficdocumento.

Tokyo Trial, do canadense Rob W. King e do holandês Pieter Verhoeff, é uma beleza de quasedocumentário, Ficdocumento, Featurmentary.

Juízes de 11 países se reuniram para o julgamento

A série abre com imagens tiradas de cinejornais da época, enquanto a voz em off de um narrador (o veterano ator de teatro e cinema Stacy Keach) ajuda o espectador a entender o contexto histórico do que virá em seguida:

“Entre os anos 30 e 40, o Japão enviou tropas à China, a todo o Sudeste Asiático e a ilhas do Pacífico, para travar uma guerra que acabaria de4ixando dezenas de milhões de mortos. Em 2 de setembro de 1945, o Japão assinou o Instrumento de Rendição para terminar a guerra.”

No momento em que o narrador fala da rendição, vemos a imagem do cogumelo atômico. O texto de abertura da série não fala que em agosto de 1945 os americanos lançaram bombas atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, acelerando a rendição japonesa.

“As Forças Aliadas designaram o general Douglas MacArthur como comandante supremo e rapidamente ocuparam todo o Japão. Ex-ministros e líderes militares japoneses foram presos. Em novembro do mesmo ano, líderes da Alemanha nazista, aliada do Japão na guerra, foram a julgamento

em Nuremberg. Em janeiro de 1946, usando Nuremberg como referência, o comandante supremo MacArthur proclamou uma Carta para o Julgamento de Tóquio, que reúne três categorias de crimes de guerra. São elas os crimes contra a paz; os crimes de guerra convencionais; e os crimes contra a Humanidade. Vinte e oito ex-líderes japoneses são acusados de crimes de guerra de Classe A. O Julgamento de Tóquio começa.”

A voz em off de Stacy Keach volta diversas vezes ao longo dos quatro episódios da série, para ajudar o espectador a compreender os eventos históricos. Também para ajudar o espectador, sempre que se inicia uma sequência um letreiro nos informa o onde e o quanto. A primeira delas aparece logo que o narrador termina essa sua primeira intervenção: “Hotel Imperial, Tóquio. 11 de março de 1946”.

Será ali, no Hotel Imperial – que milagrosamente não havia sido destruído pelos bombardeios americanos sobre a capital japonesa antes da rendição –, que se reunirão os juízes escolhidos para o julgamento.

Ao todo, 11 juízes de carreira foram enviados por seus países para participar do julgamento dos criminosos de guerra japoneses. Inicialmente foram nove, aos quais logo se somaram mais dois. Deve seguramente ter havido uma gigantesca negociação política envolvendo autoridades dos 11 países que teriam representantes ali. Os 11 eram países que participaram diretamente das batalhas contra as forças japonesas e/ou haviam sido invadidos por elas.

Apenas o russo não dominava o inglês

Considero importante registrar aqui quais foram os 11 países – e aproveito para registrar também os nomes dos juízes enviados por eles para Tóquio, e também os dos atores que os representam. Pode parecer meio chato, meio coisa de livro de História, mas quero fazer o registro.

E aproveito para relatar também o que aconteceu com cada um deles após o fim do julgamento de Tóquio – essas informações são apresentadas ao final da série, em letreiros junto das fotos dos personagens da vida real.

* Estados Unidos. Myron Crammer era oficial do Exército americano. Depois de voltar para seu país, passou para a reserva e abriu um escritório de advocacia em Washington. O ator Tim Ahern. nascido em Boston, tem 60 títulos na filmografia.

* A União Soviética de Stálin mandou como representante o general  I.M. Zaryanov. A série o mostra como um sujeito sério no trabalho, mas dado a fazer piadinhas – e o único membro do tribunal que não domina a língua inglesa; ao lado dele está sempre uma fiel tradutora, cujo nome não é falado uma vez sequer. De volta a seu país, permaneceu um fiel seguidor de Stálin, mas, após a morte do ditador, foi expulso do Partido Comunista e perdeu a patente militar. Zaryanov é interpretado por Kestutis Stasys Jakstas, ator nascido na Lituânia, à época uma das repúblicas que compunham a URSS. A tradutora é o papel da atriz Gabija Jaraminaite, também lituana.

* O Reino Unido foi representado por William. D. Patrick, juiz e lorde escocês. Após o final do julgamento, lorde Patrick retomaria seu assento na Suprema Corte da Escócia. O ator Paul Freeman – meu Deus do céu e também da Terra, a passagem do tempo! – interpretou o arqueólogo Belloq, o maior rival de Indiana Jones em Caçadores da Arca Perdida (1981).

* A França mandou o juiz Henri Bernard, que, após o julgamento, tornou-se um burocrata da Justiça nas colônias francesas da África. É o papel do ator parisiense Serge Hazanavicius, mais de 80 títulos no currículo, inclusive o ótimo Caçadores de Obras-Primas, que George Clooney estrelou e dirigiu em 2014.

O juiz holandês se mostra um humanista

* Os Países Baixos enviaram o juiz Bert Röling, mostrado na série como, além de competente jurista, um humanista, um amante das artes; De volta a seu país, tornou-se professor de Direito Internacional na Universidade de Groningen; foi um dos fundadores do Instituto de Pesquisa para a Paz. O ator Marcel Hensema (à esquerda na foto abaixo) é formado pela academia de teatro de Maastricht, uma das mais importantes escolas de arte dramática da Europa, e, segundo o IMDb, é um dos mais aclamados atores holandeses. Sua filmografia tem mais de 110 títulos.

* A China era, quando o julgamento de Tóquio começou, governada por Chiang Kai-shek, que enfrentava numa guerra civil os comunistas liderados por Mao Tsé-tung. O enviado pelo governo chinês foi Mei Ju Hao – que, quando o julgamento terminou, encontrou seu país governado pelos inimigos do governo que o havia mandado para Tóquio. Os letreiros sobre ele ao final da série são – mesmo que não tenha sido essa a intenção dos realizadores – irônicos: “Voltou para casa, tornou-se um apoiador de Mao Tsé-Tung e trabalhou como um burocrata da Justiça. Mais tarde, tornou-se vítima da Grande Revolução Cultural.” Mei é interpretado por David Tse, e sobre o ator não há muita informação na internet, ao menos numa pesquisa rápida. Aparentemente, ele é britânico, de ascendência chinesa; entre seus filmes estão Lara Croft: Tomb Raider (2001) e Jogo de Espiões (2001).

* A Austrália mandou um juiz da sua Suprema Corte, William Webb, que acabou sendo escolhido para presidir o Tribunal de Tóquio. Após os trabalhos, Webb reassumiu seu posto na Suprema Corte de seu país. Ele é interpretado por Jonathan Hyde (na foto acima), veterano ator australiano com mais de 80 títulos no currículo, inclusive Anaconda (1997) e Jumanji (1995).

* Da Nova Zelândia foi para o tribunal o juiz Erima H. Northcroft. Após o final dos trabalhos, ele voltou para a Suprema Corte de seu país e mais tarde foi condecorado cavaleiro por seu trabalho no Julgamento de Tóquio. Northcroft foi um dos poucos juízes do tribunal que não foi interpretado por um conterrâneo seu: Julian Wadham é inglês de Hertfordshire, e participou de O Paciente Inglês (1996), As Loucuras do Rei George (1994) e Sombras de Goya (2006).

* O Canadá foi representado por Stuart Mac Dougall, que, após o julgamento, retomou seu posto na Corte de Apelação de Québec. Foi interpretado por Stephen McHattie, canadense da Nova Escócia, mais de 200 (!) títulos na filmografia.

Os juízes se dividiram em dois grupos

Depois que os trabalhos começaram, com os nove juízes citados aí acima, decidiu-se que mais dois países seriam representados.

* Pela Índia, que, no início do julgamento, nos primeiros meses de 1946, ainda era uma colônia da Grã-Bretanha, foi a Tóquio o juiz Radhabinod Pal. A série o mostra como o mais distante das teses da maioria. Depois do julgamento, ele iria representar a Índia – já então uma nação soberana – na Comissão de Direito Internacional da ONU. Pal é representado pelo indiano de Jaipur Irrfan Khan, 160 títulos na filmografia, 35 prêmios e mais outras 44 indicações. Khan morreu em 2020, com apenas 53 anos.

* As Filipinas enviaram Delfín Jaranilla, um dos mais velhos do grupo. Ele iria se aposentar do serviço público pouco depois de voltar para Manila após o julgamento. Jaranilla é interpretado pelo filipino Bert Matias, que tem apenas 18 títulos na filmografia.

Cada um dos 11 juízes tem alguma importância na narrativa, mas os roteiristas deram maior destaque a dois deles – o veterano escocês Sir Patrick e o dinamarquês Bert Röling, o mais jovem do grupo.

Ficam em campos quase opostos, ao longo do julgamento. Sir Patrick, que havia lutado na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), era defensor de um julgamento curto, rápido, incisivo. Com sentenças duríssimas, pena de morte inclusive, para servir de alerta para outros políticos e militares com propensão a iniciar guerras. Queria – assim como o comandante supremo MacArthur, e seguramente as lideranças de vários dos países envolvidos – que o julgamento seguisse estritamente o que previa a carta de convocação, apresentada pelo próprio MacArthur, e que fosse uma cópia do que havia acontecido em Nuremberg.

Rölling seguramente gostaria, da mesma forma, de evitar novas guerras – mas tinha um profundo sentimento legalista, de que tudo tinha que seguir rigorosamente os preceitos das leis internacionais. Tudo deveria respeitar os tratados já firmados após o final de guerras anteriores, em especial a Primeira Grande Guerra.

O indiano Pal era ainda mais preocupado com firulas legais – e suas argumentações influenciaram o holandês Rölling.

Os 11 juízes do tribunal se dividiram. Sir Patrick era o membro mais ativo da maioria, que lutava pela celeridade dos trabalhos e pelas condenações duras. Pal, Rôlling e às vezes o francês Bernard tendiam a pedir menos pressa e mais atenção aos detalhes legais. (Na foto abaixo, Paul Freeman, que faz Sir Patrick.)

Para suavizar a aridez, uma pianista e um poeta

O holandês Rölling acaba sendo o preferido pelos roteiristas, pelos diretores – e se torna também, é claro, a figura mais interessante para o espectador.

É com Rölling que a série consegue sair um pouco da aridez que é a narrativa dura, seca, de um evento histórico como esse julgamento de Tóquio. Mostrar por alguns momentos o lado puramente humano daqueles personagens.

Rölling era casado, pai de cinco filhos – um número absurdamente grande para um país rico e desenvolvido como o seu. Escreve cartas de amor e saudade para a mulher. Toca violino – e toca bem. Fica conhecendo uma famosa pianista alemã que morava havia anos no Japão, Eta Harich-Schneider (o papel de Hadewych Minis, tida como uma das mais versáteis atrizes holandesas), e forma-se entre eles uma ligação um tanto tensa, estranha. Cheguei a achar, provavelmente influenciado por aquela lei de Hollywood segundo a qual todo filme tem que ter um “female interest” –

uma mulher para despertar a atenção, comover, emocionar –, que poderia haver um caso entre o jurista que é violinista por prazer e a alemã rígida pianista por profissão. Como diria o jovem Chico, qual o quê. Não é nada disso – é outra coisa completamente diferente.

Um humanista, um sujeito sensível, admirador das artes, Rölling se aproxima, nas poucas horas em que não está trabalhando, de um poeta japonês, Michio Takeyama (Shin’ya Tsukamoto, na foto abaixo). Conversam sobre artes, a influência que o holandês Van Gogh admitia ter de um artista japonês, cujo nome não anotei – e sobre a guerra, o que o povo japonês pensa da guerra, do julgamento dos crimes de guerra por aquele grupo de estrangeiros.

Não sei, e nem tenho curiosidade de ir ao tio Google para saber, se a pianista alemã Eta Harich-Schneider e o escritor japonês Michio Takeyama existiram de fato. Seguramente devem ter existido, mas isso não importa tanto. Importa mais é notar que é através do relacionamento do juiz Rölling com essas duas pessoas que os realizadores de Tokyo Trial tentaram dar um toque de vida fora da aridez das discussões do tribunal.

E funcionou muito bem.

Uma das produtoras é a NHK, espécie de BBC japonesa

O julgamento de Nuremberg durou 11 meses. O julgamento de Tóquio, que deveria se pautar por aquele que examinou os crimes de guerra dos nazistas, durou dois anos e meio. Iniciado, como já foi dito, no princípio de 1946, só iria terminar no segundo semestre de 1948.

Segundo semestre de 1948. Dois anos e pouquinho antes de o escriba aqui nascer. O que me faz lembrar que meu irmão Geraldo, que veio logo antes de mim, nasceu em 5 de agosto de 1945, exatamente o dia da bomba de Hiroshima. Mas essas são outras histórias.

Os belíssimos, cuidadosos, impressionantes créditos iniciais da série dizem, na abertura de cada um dos quatro episódios, que esta é uma produção da NHK (que os letreiros traduzem, nessa língua que virou o esperanto real da humanidade, por Japan Broadcasting Corporation), em associação com a Netflix, e o apoio The Netherlands Film Fund & The Netherlands Film Production Incentive (algo como deveria ser a Ancine no Brasil, ou o British Film Institute e o Lottery Fund dos britânicos).

E em seguida: “A NHK (Iapan Broadcasting Corporation), Fatt Productions & Don Carmody Television (DCTV) production”.

Fiquei tentado a acreditar que a NHK – esse N seguramente é de Nippon – seja uma empresa bem antiga, uma espécie de BBC do Japão, e que seja dela a guarda dos cinejornais originais, as cenas reais filmadas nos anos 40 e 50 que aparecem na série.

Eta Harich-Schneider e Michio Takeyama não despertaram minha curiosidade, mas é claro que fui atrás da NHK. E eu estava certo. Segundo a Wikipedia, a NHK, Nippon Hōsō Kyōkai/Nihon Hōsō Kyōkai, é a organização nacional de radiodifusão pública do Japão, uma empresa pública financiada pelo pagamento de uma taxa de licença pelos telespectadores. Foi fundada em 1926, e então, sim, aquelas cenas reais que vemos ao longo da série Tokyo Trial pertencem sem dúvida aos arquivos da NHK. Muitas delas devem com toda certeza ter sido filmadas por profissionais da NHK.

A série, no entanto, não foi rodada no Japão. Por motivos orçamentários, cerca de 90% das sequências, segundo o IMDb, foram filmadas na Lituânia; apenas um pequeno número de tomadas foi de fato rodado no Japão.

O que não compromete em nada o resultado final. Só para dar um exemplo: Tess (1979), o filmaço de Roman Polanski a partir do romance de Thomas Hardy, faz uma extraordinária reprodução da vida em região rural inglesa – e foi totalmente filmado na França.

Um registro absolutamente necessário: embora o julgamento dos crimes de guerra cometidos pelos japoneses seja um episódio de fato bem pouco conhecido no Ocidente, como foi dito no início do texto, houve outros filmes sobre ele antes desta minissérie admirável.

Em 1983, foi lançado Tôkyô saiban, um documentário de 4h37, dirigido por Masaki Kobayashi.

Em 2016, o mesmo ano em que foi lançada esta minissérie, houve outro documentário, de 57 minutos, dirigido por Tim Toidze, com o título de Judging Japan, julgando o Japão. Era uma co-produção França-Canadá.

E em 2017 foi lançado Tokyo Trial, um filme de 1h45, que é um compacto desta série aqui. Uma versão menor, compactada, da série.

Ao final, um aceno ao Tribunal Penal Internacional

Os juízes Patrick e Rölling surgem conversando ao se conhecerem bem no início do primeiro episódio da série. Bem no final do quarto e último episódio, os dois – que, como já foi dito, assumiram posições a rigor opostas ao longo do julgamento – se encontram novamente num corredor do Hotel Imperial.

É, seguramente, um daqueles momentos em que os realizadores desta série que procura ser tão absolutamente fiel à verdade dos fatos se permitem um pequeno vôo para a ficção. Uma licença poética.

Me parece bastante claro que aquele diálogo ao final da série não aconteceu de verdade, que é de fato uma licença poética – mas poderia perfeitamente ter acontecido.

O veterano escocês faz um elogio ao jovem holandês, diz que gostou muito de conhecê-lo, que gostou de seus argumentos e os respeitou. E aí acrescenta:

– “Northcroft (o representante da Nova Zelândia) está sugerindo um tribunal permanente para julgar crimes de guerra, mas não liderado pelos Estados Unidos.”

O holandês brinca: – “Talvez localizado na Holanda…”

Logo em seguida, depois da belíssima sequência que encerra a narrativa, vêm aqueles letreiros informando o que aconteceu com cada um dos 11 juízes após o final do Julgamento de Tóquio. E letreiros dão informações básicas sobre o Tribunal Penal Internacional que hoje está instalado em Haia, Holanda.

O tribunal que julgou – e condenou – os criminosos de guerra responsáveis pelas atrocidades nos Bálcãs, na década de 90, após a dissolução da Iugoslávia.

O tribunal que, se a Humanidade tiver jeito, ainda vai julgar por seus atos os criminosos Vladimir Putin e Jair Bolsonaro.

Anotação em abril de 2022

O Julgamento de Tóquio/Tokyo Trial

De Rob W. King & Pieter Verhoeff, Canadá-Países Baixos-Japão, 2016   

Com Tim Ahern (Myron C. Cramer), Paul Freeman (William. D. Patrick), Serge Hazanavicius (Henri Bernard). Marcel Hensema (B. V. A. Röling), William Hope (John P. Higgins), Jonathan Hyde (Sir William Webb), Michael Ironside (general Douglas MacArthur), Irrfan Khan (Radhabinod Pal), Stephen McHattie (E. Stuart McDougall), David Tse (Mei Ru’ao), Shin’ya Tsukamoto (Michio Takeyama), Julian Wadham (Erima H. Northcroft), Bert Matias (coronel Delfín Jaranilla), Hadewych Minis (Eta Harich-Schneider), Gabija Jaraminaite (a tradutora russa), Porgy Franssen (general Willink), Kestutis Stasys Jakstas (general I.M. Zaryanov), Stacy Keach (narrador), Jules Knight (Quentin Quentin-Baxter), Roteiro Rob W. King, Max Mannix, Toru Takagi, Kees van Beijnum

Fotografia Rolf Dekens

Música Robert Carli

Montagem Daryl K. Davis, Bart van den Broek

Casting Kelly Valentine Hendry, Victor Jenkins, Donatas Simukauskas

Desenho de prodeução Harry Ammerlaan  

Produção Shinsuke Naitô, Don Carmody Television, FATT Productions, NHK Enterprises, NHK.

Cor e P&B, cerca de 180 min (3h)

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Um comentário para “O Julgamento de Tóquio / Tokyo Trial”

  1. Eu por acaso sabia que houve este julgamento. Devo ter lido na Wikipedia.
    Os crimes cometidos pelos japoneses durante a guerra são comparáveis aos dos alemães durante a segunda guerra mundial.
    Até tiveram a sua versão do “famoso” Dr. Mengele – chamava-se Shirō Ishii e não foi levado ao tribunal, os americanos ficaram com ele para fazer experiências.
    Há um filme que vale a pena ver com o título John Rabe.
    Trata de uma acção japonese contra a China e onde está patente toda a brutalidade nipónica,

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