Lugares Comuns / Lugares Comunes

Nota: ★★★★

(Disponível em DVD e no YouTube.)

Lugares Comuns, co-produção Argentina-Espanha de 2002, é uma gema, uma pérola. Cinema grande, para platéias adultas. Uma obra-prima sobre o amor a vida a morte.

Grande cinema – mas é uma obra apaixonada pelas palavras, os livros, a literatura. É um dos filmes de melhor texto que eu já vi – a cada momento há frases de imensa beleza. Dá vontade de voltar o filme e ouvir e ler de novo as frases, saboreá-las, degluti-las com calma e prazer.

Isso não é à toa: Fernando Robles, o protagonista da história (uma interpretação maravilhosa do veterano Federico Luppi), é um professor de Literatura, e, como não podia deixar de ser, está sempre às voltas com um livro que está escrevendo, que não sabe definir bem se é ficção, autobiografia ou simplesmente anotações esparsas sobre sua vida e o mundo à sua volta.

Bem no início dos 108 minutos do filme, o professor Fernando recebe um ofício da universidade pública em que leciona há décadas comunicando que será aposentado compulsoriamente. Fica claríssimo para ele que é uma decisão política, uma punição por seu ideário esquerdista, de um socialismo mais romântico do que propriamente prático, pragmático, um socialismo com boas pitadas de anarquismo.

Vai tirar satisfação com o reitor – mas, em vez de pedir que ele interceda junto às autoridades do Ministério que decidiram aposentá-lo, briga com o sujeito, chama-o de imbecil. E, de volta à sala de aula, faz um discurso absolutamente encantador para seus alunos.

O que se desenrola a partir daí, ou seja, o que o filme vai mostrar, será a forma com que Fernando e sua mulher, a encantadora Liliana (o papel da espanhola Mercedes Sampietro), vão enfrentar a vida após a aposentadoria – a perspectiva de viver com menos dinheiro do que o salário confortável que ele ganhava, e, depois de muita indecisão, a opção por trocar o bom apartamento em Buenos Aires por uma pequena fazenda nos arredores de Córdoba, no centro-norte da Argentina.

Um belo, admirável casal de velhos

Quando recebe a notícia de que será aposentado contra a sua vontade, Fernando estava se preparando para viajar nas férias com Liliana para Madri, para visitar o filho Pedro (o papel de Carlos Santamaría, na foto abaixo), que havia emigrado para a Espanha. Com a intenção de não perturbar a mulher durante a viagem, ele tenta esconder dela a notícia da aposentadoria. Em vão: Liliana percebe que há alguma coisa preocupando o marido, e ele enfim conta o que havia acontecido.

Fernando e Liliana são um daqueles casais admiráveis, que tiraram a sorte grande. Os dois se amam, se admiram, se respeitam, adoram a companhia um do outro.

Já o relacionamento do velho professor de Literatura com o filho sempre foi tenso. Fernando acha que todas as escolhas de Pedro foram erradas – desde a decisão de deixar a Argentina até o casamento com Fabiana (Yael Barnatán), uma moça espanhola que vemos, numa conversa com Liliana, demonstrando ter ódio de imigrantes. Alguns dias depois de chegar a Madri, Fernando tem uma discussão acalorada com o filho; acusa-o de ter se “aburguesado”, abandonada a pátria e a vontade de ser escritor por um trabalho – com informática – que lhe dá bom dinheiro mas não dá prazer.

No aeroporto, pouco antes de embarcar de volta, o velho cabeçudo pede desculpas ao filho pelo rompante. E diz que foi a Argentina que abandonou a todos os argentinos…

Os grandes filmes são feitos de pequenos detalhes

Lugares Comuns é cheio de pequenos detalhes deliciosos que vão revelando mais e mais sobre as personalidades dos personagens. Cito três:

* Tendo já sido operado do coração, Fernando, naturalmente, não deveria fumar. Com a notícia da aposentadoria e a angústia em que se enfia por causa dela, volta a fumar. Numa hora lá, nós o vemos tirar o fundo de uma caixinha em que guarda lápis e canetas para encontrar alguns cigarros escondidos ali.

Cada vez mais me convenço que grandes filmes têm sempre pequenos detalhes como este…

* Depois da discussão com o filho, num bar, Fernando sai para a rua e acende um cigarro. Liliana vai atrás dele, e Fernando imagina que ela vá mandar jogar o cigarro fora. Mas ela percebe que o ato de fumar, afinal de contas, ajuda o marido naquele momento de tensão, e aí diz que ela também quer um cigarro.

* Quando já estão instalados no sítio longe deste insensato mundo, aos pés de uma belíssima cadeia de montanhas, Fernando vai ao galinheiro para pegar uma galinha para o jantar. Claro que apanha, e muito, das galinhas, que escapam com facilidade das mãos do urbanóide nada acostumado com aquilo. Corta, e o vemos entrar na cozinha carregando uma galinha branca e dizendo que ela driblava que nem Maradona. Diz que Liliana tem que matá-la – afinal, ela nasceu na roça. (O espectador já ouvira, antes, que ela havia nascido na região de Lérida, na Catalunha; os pais haviam emigrado para a Argentina quando ela era jovem.) Ela diz que o marido é que se vire – ela não vai matar a galinha coisa nenhuma. Corta, e os dois estão jantando uma torta. Fernando joga uns pedacinhos de pão para Diego, a galinha branca, que anda fagueira pela cozinha.

Duas lindas falas de um socialista romântico

Copiei dois trechos das falas maravilhosas do professor Fernando Luppi, esse socialista romântico mezzo anarquista que gosta de parecer um desesperançado, mas anda sempre atrás de uma esperança.

Esta aqui ele diz para seus alunos, universitários que depois de formados serão, em sua maioria, professores:

“Lembrem-se de que ensinar é mostrar. Mostrar não significa doutrinar. Significa dar informação, mas também mostrar como compreendê-la e analisá-la, como raciocinar e questionar essa informação.

Se algum de vocês for retardado mental e acreditar em dogma religioso ou doutrinas políticas, seria mais saudável escolher outra profissão, como pregar em um púlpito ou em um fórum público. Se tomarem a infeliz decisão de continuar com isto, tentem deixar suas superstições do lado de fora antes de entrar na sala de aula.

“Não obriguem seus alunos a memorizar coisas, não funciona. Eles rejeitam rapidamente e esquecem o que lhes é imposto. Nenhum jovem será um ser humano melhor porque sabe em que ano Cervantes nasceu.

“Procurem fazer com que eles pensem, duvidem, se perguntem. Não os julguem pelas respostas. As respostas não são a verdade. A busca deles pela verdade será sempre relativa. As melhores perguntas são as que as pessoas têm feito desde os tempos dos filósofos gregos. Elas agora parecem clichês, mas ainda são válidas: O quê? Como? Quando? Onde? Por quê? Se aceitarmos que a jornada é a meta, a resposta é inválida. Ela descreve a tragédia, mas não a explica.

“Existe uma tarefa que eu gostaria que vocês executassem. Ninguém lhes designou esta tarefa, mas espero que vocês, como professores, assumam a responsabilidade de levá-la adiante: despertar seus alunos para a dor da lucidez. Sem limites, sem piedade.”

Esta outra fala dele é durante um jantar que Liliana preparou para receber o maior amigo de Fernando, o advogado Carlos Solla (Arturo Puig), que cuida dos interesses dele, e é quem sugere a troca do apartamento de Buenos Aires pela bela fazenda na região de Córdoba. Carlos havia levado a namorada, Natasha (Valentina Bassi, na foto abaixo), muito mais nova que ele.

Os quatro conversam sobre a mudança de vida, a coisa de trabalhar junto da terra, longe da agitação da cidade grande. Fernando diz que não quer virar latifundiário, Liliana diz que também não é para exagerar, é uma fazenda pequena, e Carlos diz que Fernando parou em 1968, o ano das revoltas de estudantes e trabalhadores na França.

Fernando diz que o mundo parou muito antes – em 1789, o ano da Revolução Francesa. E prossegue:

“Não vou conseguir mudar o sistema. Perdemos esta guerra muito tempo atrás. Olhem para os que nos venceram, os donos do mundo.

Estão solidamente estabelecidos. Permitem até que a esquerda exista. Por quê? Porque ela não incomoda ninguém, não há mais a ameaça de revolução. Ela é só um button, um broche ou uma pichação. É pura nostalgia. No máximo, é uma atitude moral que jamais ultrapassará o âmbito da vida privada. (…) Nos deram um pé na bunda, e voltamos para 1789. O que esperamos? O que exigimos? Na verdade pedimos, não exigimos. Pior ainda, esperamos. Esperamos que o mundo se organize com bom senso. Que as pessoas saibam que são uma comunidade, que existe justiça, que se trabalha para o bem comum. Sabe o que é isso? Liberdade, igualdade, fraternidade. Mais de dois séculos – e nada. Fizemos uma merda. Ficamos parados em 1789.”

Quando finalmente Liliana e ele se mudam para a bela fazenda, ele pinta o nome que dá para ela numa placa que prega na porteira: “1789”.

Uma deliciosa relação com o caseiro

Demedio, o caseiro e faz-tudo da fazenda, não entende, diz que no campo as coisas são diferentes, não há numeração das casas, diferentemente do que acontece nas cidades. Liliana diz que aquilo na verdade não é um número, é um nome – e Fernando diz que um dia explicará tudo para ele.

Esse Demedio (interpretado por Claudio Rissi, excelente ator, como todos os demais) é uma grande figura, e o relacionamento dele com os novos patrões é delicioso de se ver. Logo que ele se apresenta para receber o casal, Fernando diz: – “Então você é o Delmedio”. Ele explica que o nome não tem a letra “l”, que o nome é Demedio, e que Zacarias, o patrão anterior, dizia Delmedio só para irritá-lo.

Quando, no dia seguinte, chama o recém-chegado de “Don Fernando”, o velho professor protesta, e diz que, se ele usar o “Don”, será chamado de Delmedio. “O ‘l’ está sobrando, assim como o ‘Don’.” E logo adianta que a casa em que o caseiro mora com a mulher e os três filhos agora pertence a ele.

A seu lado, Liliana percebe a felicidade que o empregado exprime, e dá um belo sorriso.

No seu caderno de anotações, Fernando escreve: “O sorriso de Lili foi o maior triunfo da minha vida. E foi também meu melhor presente. Para ela, chegar à chácara foi renascer, mudar de mundo. Estava outra vez jovem, bela, feliz. Com o tempo, comecei a deixar de lado a dor do fracasso. Percebendo como o senso do absurdo ficou instalado em mim, vi que o professor de Letras agora fazia parte do passado, como o tango. Tentei me convencer, às vezes com sucesso, de que minha vida teria sentido se a vivesse por ela, por Lili. Tinha que seguir cuidando dela, para que nunca perdesse sua alegria.”

Um diretor que admira John Ford, Howard Hawks…

Lugares Comuns ganhou 13 prêmios e teve outras 13 indicações em diversos festivais. Levou os Goyas – o maior prêmio do cinema espanhol -em duas categorias importantes: melhor atriz para essa ótima Mercedes Sampietro e melhor roteiro adaptado para o diretor Adolfo Aristarain e sua co-roteirista Kathy Saavedra. Exibido no Festival de Gramado, teve indicações nas categorias de melhor filme latino e melhor atriz para Mercedes Sampietro. Levou o de melhor atriz.

O roteiro se baseia no romance homônimo de autoria de Lorenzo F. Aristarain – um primo do diretor e roteirista Adolfo Aristarain.

Foi o décimo e penúltimo filme dirigido até agora pelo realizador. Depois dele, Adolfo Aristarain – nascido em Buenos Aires, em 1943 – dirigiu apenas mais um, Roma, Um Nome de Mulher, de 2004. De lá para cá, não voltou a dirigir.

A Wikipedia em espanhol traz uma definição sobre a obra do diretor que me pareceu brilhantemente adequada: “Seus filmes combinam a firmeza narrativa do cinema norte-americano clássico e os temas sociais do cinema político da Argentina”.

Antes de estrear na direção, com La Parte del León, de 1978, Aristarain trabalhou como assistente de direção tanto na Argentina quanto na Espanha e em outros países europeus. Foi assistente, entre outros, de Sergio Leone, Mario Camus, Vicente Aranda, Lewis Gilbert e Peter Collinson.

Uma preciosa escola para um diretor que declara que seus mestres são John Ford, Howard Hawks, Raoul Walsh, Nicholas Ray e John Huston.

Há tempos queria rever o filme para escrever sobre ele e tê-lo no + de 50 Anos de Filmes. Adorei revê-lo. Não sei se ele pode ser encontrado em streaming. Mas foi lançado no Brasil em DVD pela Europa Filmes.

É uma maravilha.

Anotação em dezembro de 2021

Lugares Comuns/Lugares Comunes

De Adolfo Aristarain, Argentina-Espanha, 2002

Com Federico Luppi (Fernando Robles),

Mercedes Sampietro (Liliana Rovira)

e Arturo Puig (Carlos Solla, o grande amigo de Fernando), Carlos Santamaría (Pedro Robles, o filho de Fernando e Liliana), Valentina Bassi (Natacha, a namorada de Carlos), Claudio Rissi (Demedio, o caseiro da fazenda), Yael Barnatán (Fabiana, a mulher de Pedro), Florencia Merlo (a mulher de Demedio), Patricia Pan (filha de Demedio), Micaela González (filha de Demedio), Lucas Ligorría (filho de Demedio)

Roteiro Adolfo Aristarain, Kathy Saavedra

Baseado em romance de Lorenzo F. Aristarain

Fotografia Porfírio Enríquez

Montaqgem Fernando Pardo

Direção de arte Abel Facello

Figurinos Valentina Bari, Kathy Saavedra

Produção Adolfo Aristarain, Gerardo Herrero, Javier López Blanco, Tornasol Films, Shazam S.A., Televisión Española (TVE), Vía Digital

Cor, 108 min (1h48)

R, ****

Título em inglês: Common Ground.

3 Comentários para “Lugares Comuns / Lugares Comunes”

  1. Assisti, faz tempo, e amei. Com seu texto pude relembrar o quanto esse filme é maravilhoso. Obrigada!

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