Pátria / Patria

4.0 out of 5.0 stars

Pátria, produção espanhola de 2020, é uma obra-prima, uma maravilha, uma obra de arte absolutamente extraordinária.

É uma das melhores séries de TV que já vi na vida.

Como toda obra narrativa realmente grande, à la Guerra e Paz ou Doutor Jivago, para dar apenas dois exemplos, faz com imenso talento a mescla entre o macro e o micro, entre as duas histórias – a vida das pessoas, os personagens de ficção, suas relações afetivas, seus dramas íntimos, e a Grande História por trás.

Focaliza duas famílias que eram amigas íntimas e foram brutalmente separadas por causa da ideologia, no País Basco dilacerado pela luta separatista do ETA na Espanha que havia conseguido enfim se libertar do jugo da ditadura fascista do generalíssimo Francisco Franco.

E não são apenas as duas famílias que são brutalmente separadas: a ideologia, a posição política afasta irmão de irmão, marido de mulher, filho de pais. No lugar em que havia amor, infiltra a desconfiança, a suspeita, o ódio.

A ação se passa ao longo de mais de duas décadas, desde um pouco antes de 1990 até um tanto depois de 2011 – e é absolutamente fantástico, é um prodígio, uma prova de excelência, de talento descomunal que cada personagem seja representado por um único ator, ao longo desse período de mais de 21 anos.

Uma proeza das equipes de maquiagem e peluqueria, mas também daquele grupo incrível de atores. São nove personagens centrais – pai, mãe e dois filhos, outro pai e outra mãe e três filhos. Em 1990 os cinco filhos das duas famílias estão aí no finalzinho da adolescência, e em 2011 todos estão na idade madura jovem, beirando os 40 anos – e são sempre os mesmos atores.

Só isso aí já é de fato uma proeza, um tour de force, uma prova de que há talento saindo pelo ladrão.

O primeiro episódio abre no dia em que Txato Lertxundi (o papel de José Ramón Soroiz) é assassinado no meio da rua, bem perto de sua casa, por terroristas do ETA. Um letreiro nos mostra a data: 1990.

Logo em seguida a viúva de Txato, Bittori (Elena Irureta, na foto abaixo), está vendo na televisão o noticiário sobre o anúncio feito pelo ETA de que a organização está depondo as armas, deixando para trás a luta armada. Cada cidadão basco seguramente sabe muito bem a data, a imensa maioria de todos espanhóis também, mas Pátria é para ser mostrada ao mundo inteiro, e então um letreiro nos diz que estamos em 2011.

Junto com a viúva Bittori, toda a Espanha está vendo o noticiário na TV – e o retrospecto que os jornalistas fazem é uma oportunidade perfeita para a série informar ao espectador, especialmente os que não estão familiarizados com a luta armada no País Basco, alguns fatos básicos:

* a luta armada do grupo ETA pela independência do País Basco durou 43 anos;

* mais de 800 pessoas foram mortas nessa guerra;

* no momento em que o ETA anunciou que estava depondo as armas, havia 709 terroristas detidos nas prisões espanholas.

Toda guerra é obrigatoriamente suja, e Pátria irá mostrar que, para combater a selvageria dos terroristas, as forças de segurança do governo democrático da Espanha usaram de toda a selvageria de que o ser humano é capaz.

Toda guerra é necessariamente cruel, mas não pode haver guerra mais cruel do que entre pessoas do mesmo país, como a Guerra Civil Americana, a própria Guerra Civil Espanhola que terminou com a vitória do fascismo de Franco, ou a luta armada contra as ditaduras, como aconteceu nos anos 60 e 70 no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile.

O que Pátria mostra, ao longo de oito episódios de cerca de 60 minutos do mais brilhante cinema, é como foi especialmente cruel a guerra suja no País Basco. E como cada um, cada pessoa daquelas duas famílias, e  todos em volta delas, sofreram durissimamente.

Duas crenças minhas sobre cinema, uma sobre a vida

Assim que vimos, de enfiada, os quatro primeiros dos oito episódios da série, corri para anotar aqui estes três parágrafos que vão abaixo:

Chocado, zonzo – confesso –, diante dessa beleza, fico aqui pensando que Pátria é uma série cuja qualidade só é comparável ao máximo do máximo, o topo, o céu: Downton Abbey, The Crown.

O que tem todo sentido, tem tudo a ver com duas crenças minhas de já há algum tempo: a de que hoje e nos últimos muitos anos o cinema espanhol é o segundo melhor do mundo, depois do feito nas Ilhas Britânicas. E a de que muito do melhor cinema dos últimos tempos é feito para a TV.

Mas tem mais ainda. Pátria tem também a ver com uma crença que me chegou apenas com a velhice: a de que a ideologia não é a coisa mais importante que há. De que, muito ao contrário, a ideologia é muito, mas muito menor, menos importante do que as pessoas. De que a ideologia, em especial quando exacerbada, muitas vezes leva à cegueira, à insensibilidade, à desumanização. À idiotia.

Temos provas demais disso aqui neste nosso país.

A narrativa vai e vem no tempo – e tinha mesmo que ser assim

Toda a narrativa, ao longo dos oito episódios, é construída em cima de idas e vindas no tempo.

Desde aquelas duas primeiras sequências, que mostram fatos de 1990 e em seguida de 2011, vemos eventos ocorridos no passado e no presente – o “presente” sendo 2011 e início de 2012.

E as únicas vezes em que aparece na tela alguma data são aquelas duas primeiras: 1990 na primeira sequência da série, em que Txato acorda da sesta às 4 horas da tarde, despede-se de Bittori, e é assassinado no meio da rua, enquanto caminhava a pequena distância entre sua casa e a garagem em que guardava seu carro, e 2011, quando todas as emissoras de TV estão noticiando que o ETA anunciou a deposição das armas.

A partir daí, entramos num eterno vai e vem no tempo – vai e vem, vai e vem, feito bola de tênis.

E não é apenas entre aquele momento de 1990 e aquele momento de 2011, cada um deles sendo o início de narrativas em ordem cronológica. Ah, não, nada disso. Não há letreiros para nos dizer as datas, mas de, digamos, outubro de 2011, que foi quando o ETA anunciou o cessar-fogo, voltamos para, digamos, junho de 1990, depois para novembro de 2011, depois para algum mês de 1989, depois para setembro de 2011, e por aí vai.

Vai e vem no tempo, vai e vem, feito bola de tênis. E sem letreiro para ajudar o espectador.

Roger Ebert, o crítico de cinema que mais admiro, várias vezes reclamava dos roteiros que iam e vinham no tempo. Defendia as histórias contadas na velha e boa ordem cronológica, apresentando para o espectador os fatos na ordem em que aconteceram: primeiro o anteontem, depois o ontem, depois o hoje, depois o amanhã, depois o depois de amanhã, e assim por diante, que nem na vida real. Se a vida real é assim, por que raios ficar a narrativa de um filme indo e voltando no tempo?

Não sei dizer se o romance Pátria, de Fernando Aramburu, um catatau de cerca de 500 páginas, conta a história das famílias de Txato e de Joxian, de suas mulheres Bittori e Miren e seus filhos indo e voltando no tempo, ou se foi o roteirista e criador da série de TV Aitor Gabilondo que fez essa opção. Mas tenho a absoluta certeza de que a história de Pátria, criado por esse Fernando Aramburu, tinha que ser filmada exatamente assim, indo e vindo no tempo, alternando eventos ocorridos entre 1990 e 2011.

Parte do brilho da série é exatamente isso, essas idas e vindas no tempo. Elas aumentam, e muito, a dramaticidade da história – e realçam a própria importância da passagem do tempo, as mudanças pelas quais vão passando os personagens.

O roteiro de Pátria é um dos casos perfeitos de que a história perderia demais se fosse contada em ordem cronológica.

É fácil para o espectador acompanhar o vai e vem

E com que maestria o roteirista Aitor Gabilondo, os atores e os dois diretores da série, Félix Viscarret e Óscar Pedraza, lidam com essa coisa do vai e vem, vai e vem!

Em termos de ordem cronológica, é tudo caótico. Mas, ao mesmo tempo, é tudo absolutamente compreensível. É muito tranquilo para o espectador entender que tal coisa aconteceu antes daquela outra, tal coisa veio logo depois daquela outra.

A caracterização dos atores é uma absoluta maravilha. As atrizes Elena Irureta (que faz Bittori, repito) e Ane Gabarain (Miren) dão um show – e basta bater o olho nelas a cada nova sequência que o espectador já sabe se aquilo aconteceu lá atrás, no passado, no início da década de 1990, ou agora mais recentemente, em 2011 ou por volta disso.

Como é uma série, com cerca de 480 minutos, ou 6 horas de duração, e não um filme, com a limitação de ter cerca de 120 minutos, 2 horas, ou menos, os realizadores puderam se dar ao luxo de repetir algumas sequências, ao longo dos oito episódios.

E isso é feito com grande talento. É um luxo, um brilho, um absoluto brilho, como o roteiro faz com que algumas sequências sejam vistas mais de uma vez – uma vez quando a história está sendo contada acompanhando um dos personagens, outra vez quando estamos seguindo os passos de outro.

É um roteiro escrito com tanto talento, tanto brilho, que dá vontade de a gente se levantar da poltrona e aplaudir de pé como na ópera.

Só para dar um exemplo: o momento em que Txato está dentro da garagem em que deixa seu carro, e vê Joxe Mari (Jon Olivares, nas fotos acima, preso e torturado, e abaixo) na calçada junto da porta da garagem, é mostrado três vezes, ao longo da série. Faz sentido ele ser mostrado em cada uma das vezes, porque aquelas cenas vêm em momentos específicos da narrativa.

E aquele momento em que os dois se vêem é importantíssimo na história. É exatamente naquela tarde chuvosa de 1990 que Txato será executado por membros do ETA. E Joxe Mari – filho de Joxian (Mikel Laskurain) e Miren, casal amigo de Txato e sua mulher Bittori – é terrorista do ETA, e pertence à célula que recebe a ordem de executar Txato.

A série não se preocupa em explicar a Geografia

A série mostra que os casais Txato & Bittori e Joxian & Miren são amigos desde sempre. Bittorti e Miren eram tão próximas, antes de 1990, que chegavam a conversar sobre suas vidas sexuais – algo que, convenhamos, senhoras casadas, maduras, católicas, em país latino, só fazem com as amigas mais íntimas, mais chegadas.

Os dois homens são os maiores amigos um do outro. Pertencem a um grupo de ciclistas que depois do esforço físico vão para o bar, que ninguém é de ferro. Estavam sempre juntos.

Embora Txato seja um pequeno empresário, dono de uma empresa de transportes, de caminhões, e Joxian seja um operário de fábrica, as duas famílias são vizinhas, numa pequena comunidade, a que no original se referem como pueblo e nas legendas como vilarejo. Vilarejo é de fato uma das acepções de pueblo, além de cidade, vila ou lugar, povoação pequena.

Jamais, em qualquer dos 480 minutos da série, é mencionado o nome do pueblo, do vilarejo em que se passa boa parte da história.

Na verdade, a rigor, a série, que situa o quando com as datas 1990 e 2011, e nada mais, é ainda mais arredia em relação ao onde. Não apenas se recusa terminantemente, teimosamente, ou seja, espanholamente, a dizer o nome do vilarejo, como faz questão de não explicitar em que cidade perto do vilarejo estamos, afinal de contas.

A série usa o noticiário de TV para dar ao espectador – em especial os não espanhóis – as informações básicas, as coordenadas sobre o contexto histórico. Já quanto à Geografia, a série parece dar uma solene banana para o público.

É citado o nome Donostia. É dito que Bilbao – a maior cidade do País do Basco – fica a 1 hora de carro dali. É dito também que Zaragoza fica a 3 horas de carro de San Sebastíán.

Não consigo compreender o motivo, mas o fato é que a série parece fazer questão de demorar a informar ao pobre espectador não basco e não espanhol que a cidade grande próxima do vilarejo sem nome, a cidade em que Bittori vive em 2011, é San Sebastián.

Mas – ufa! – é San Sebastián, a bela cidade litorânea próxima da fronteira com a França, bem mais perto de Biarritz do que de Madri. A gente não é obrigado a saber, mas Donostia é o nome de San Sebastián em basco. Oficialmente, o nome da cidade é Donostia/San Sebastián.

(Não tem nada a ver, mas lembro que, desde 1953, desde a época da ditadura de Franco, portanto, San Sebastián sedia um dos mais importantes festivais de cinema do mundo. Aliás, a série foi apresentada no festival de 2020, com a presença de atores e realizadores – todos de máscara, por causa da pandemia.)

Logo depois que o ETA anuncia que está depondo as armas, Bittori vai ao cemitério de San Sebastián em que está enterrado Txato, e informa a ele que está indo ao vilarejo.

Sim: Bittori conversa com o marido morto 21 anos antes – mas não conversa com ele em qualquer lugar, como se fosse uma louca. Ela não é louca, de forma alguma. Conversa com ele, e longamente, no lugar em que ele está – o túmulo.

Muito adiante na série, no penúltimo ou no último episódio, veremos que Bittori, que era católica, havia perdido completamente a fé quando seu marido foi assassinado. Faz todo sentido, portanto, o fato de ela só conversar com o marido morto diante do túmulo. Claro: ela agora já não acreditava em espírito – apenas nas coisas materiais.

Uma informação a mais sobre as localidades: as filmagens – iniciadas nos primeiros meses de 2019 – foram em San Sebastián e nos povoados bascos de Soraluze e Elgoibar. O escritor Fernando Aramburu se inspirou em Hernani para criar o vilarejo de seu romance, mas o prefeito não autorizou as gravações da série na cidade, segundo informa a editora Intrínseca, que lançou o livro no Brasil.

A série demora a nos mostrar alguns fatos básicos

De forma brilhante, o roteiro escrito por Aitor Gabilondo faz com que o espectador vá conhecendo os fatos bem pouco a pouco, bem lentamente. A série só vai abrindo de forma muito vagarosa as informações básicas sobre o que afinal havia acontecido no passado, antes de 1990, que teria levado ao assassinato de Txato.

É tudo bem aos poucos.

Pelo que a série nos faz entender, Bittori havia saído do pueblo pouco depois que o marido foi assassinado, em 1990. Seu filho mais velho, Xabier (Iñigo Aranbarri), havia conseguido fazer com que ela se instalasse no belo apartamento com vista para o mar, em San Sebastián, que Txato  havia comprado – e ela jamais voltara a pisar no seu pueblo.

Assim que o ETA anuncia que havia deixado a luta armada, porém, Bittori decide voltar ao antigo apartamento no pueblo em que havia vivido anos e anos com a família. O apartamento havia permanecido fechado durante todo aquele tempo – uma empregada ia lá de vez em quando tirar o pó dos móveis.

Sua ex-grande amiga Miren percebe imediatamente que ela está de volta. Já não quer saber dela. Chama-a de “louca”.

Miren, a mãe de Joxe Mari, terrorista do ETA, chama de louca a antiga amiga, a viúva de Txato, que havia sido assassinado por terroristas do ETA. Talvez pelo próprio Joxe Mari.

A mãe do terrorista, do rapaz que, por um ideal político, havia assassinado pessoas, chama de louca sua ex-amiga que havia ficado viúva num atentado daquele grupo terrorista.

O espectador poderia imaginar que Txato fosse um dedo-duro, um colaborador da polícia, algo assim, para se tornar alvo do ETA. Nada disso. Txato é apolítico, não se mete em nada que diga respeito a ideologia. É apenas um empresário, um pequeno empresário. Vira alvo do ETA, e acaba sendo assassinado, simplesmente porque não pagou a segunda prestação de uma fortuna que a organização terrorista exige dele. E não porque ele se recusasse a pagar, mas apenas porque não conseguiu entrar em contato com alguém do grupo para tentar negociar uma divisão da nova quantia exigida.

Pátria mostra claramente que o ETA extorquia os empresários do País Basco para financiar a luta armada pela separação da Espanha. Quem não pagava virava inimigo mortal. Vemos o assassinato de um outro empresário – e os terroristas comentam que ele não havia pago a quantia exigida.

Dois diálogos que definem o que a série quer dizer

É uma trama absolutamente maravilhosa.

E que texto! Toda a série é povoada por maravilhosos diálogos. Vou digitar aqui dois deles; dá trabalho, mas vale a pena.

Creio que estes diálogos mostram a essência do que a série pretende dizer – e diz.

Gorka (o papel de Eneko Sagardoy), o mais novo dos três filhos de Joxian e Miren, vai visitar na prisão seu irmão Joxe Mari, o terrorista do ETA. Tudo indica que é a primeira vez que Gorka vai ver o irmão no presídio. Ao contrário da mãe, que aderiu com todas as forças às idéias do grupo separatista, e do irmão, agora preso por seus crimes, Gorka não aprova os métodos do ETA, o terrorismo, os assassinatos. É um rapaz sensível, gosta de literatura, escreve poemas, contos.

(Creio até que Gorka é um alter-ego de Fernando Aramburu, o autor do livro.)

Joxe Mari: – “Não está feliz por me ver?”

Gorka: – “Claro que estou feliz. Ainda que preferisse ver você em outro lugar.”

Joxe Mari: – “Não brinca! Eu também. (Uma pausa.) O quê? O que foi? Você veio, mas no fundo me odeia pelo que eu fiz.”

Gorka: – “Por que está dizendo isso?”

Joxe Mari: – “Você não me engana. Está na cara que nossos pais obrigaram você a vir.”

Gorka: – “Eu vim porque quis. Mesmo não aprovando o que você fez para estar aqui. Nunca aprovei.”

Joxe Mari: – “Você acha que mereço isso, não é?”

Gorka: – “Pergunte isso às suas vítimas.”

Um longo, amargo silêncio.

Joxe Mari: – “Gorka, eu estou apanhando desde o dia em que fui preso. Mas nada doeu tanto quanto o que você acaba de dizer. Meu próprio irmão, cacete!”

Gorka: – “Você prefere que eu minta? Quer que eu te dê os parabéns por tudo o que você fez? Para quê?”

Joxe Mari: – “Para quê? Para libertar meu povo.”

Gorka: – “Libertar? Com o sangue dos outros? Que bonito.”

Joxe Mari: – “Sangue de quem nos oprime e não nos deixa ser livres!”

Gorka: – “Isso vale para quem você matou?”

Joxe Mari: – “Se não fosse pelo vidro (prisioneiro e visitante se falam separados por vidro grosso), eu faria você entender bem!”

Gorka: – “Ou, se quiser, me dê um tiro. Por bem menos você matou por um povo que não pediu por isso.”

Um longo silêncio. O prisioneiro está possesso – e tristíssimo. O visitante se sente desconfortável, incomodado.

Joxe Mari: – “Melhor deixar pra lá. Já vi que não vamos nos entender.”

Gorka: – “Você começou.”

Joxe Mari: – “Uns lutam para libertar o País Basco. Outros preferem uma vida cômoda pra ficar curtindo. Alguns se sacrificam. Outros aproveitam.”

Gorka: – “Faço programas de rádio e escrevo livros na língua basca. Essa é a minha maneira de fazer algo pelo povo, sem deixar um monte de viúvas e órfãos.”

Uma duríssima discussão entre mãe e filha

O outro diálogo acontece uns poucos minutos depois desse aí acima. É entre a Miren, a mãe que virou uma defensora incansável do ETA, e a filha, Arantxa (Loreto Mauleón). Arantxa tinha ido visitar os pais, levando os dois filhos, Endika, um garoto de uns 10 ou 12 anos, e Ainhoa, uma menina de uns 7. Naquele mesmo dia, uma explosão de um carro havia matado Manolo, um político que era amigo do marido de Arantxa, Guillermo. A explosão acontecera bem perto de onde estavam Guillermo e Endika; por pouco eles não foram gravemente feridos, ou até mortos.

Guillermo, o marido, é o papel de Javier Beltrán. Endika, o de Daniel Helguera, e a garotinha Ainhoa, o de Askoa Uriarte.

Depois do jantar, Arantxa se senta no sofá junto com o pai, Joxian, diante da TV. A garota está à mesa, desenhando, e o garoto está na cozinha, ajudando a avó a lavar a louça.

Miren pergunta ao neto por que o pai não tinha vindo com eles para jantar, e ele responde que “uns homens maus mataram um amigo dele”. E acrescenta que o pai tinha passado a manhã inteira chorando.

Chamar os soldados do ETA de homens maus, e ouvir do neto que o genro – um espanhol do País Basco que faz questão de dizer que é espanhol, e não basco –, é demais para Miren. E ela diz: – “Que tipo de homem é esse que chora tanto?”

O garoto Endika se afasta imediatamente da avó, vai se sentar perto da mãe. Arantxa percebe logo que algo aconteceu, pergunta o que foi, Endika conta: – “A vovó disse que o pai é um chorão”.

Joxian ainda tenta impedir que a filha vá tirar satisfações – Joxian sempre foi uma pessoa omissa, fraca, sem coragem de enfrentar a mulher mandona e cada mais uma separatista ativa. Mas Arantxa ignora o gesto do pai vai para cima da mãe.

A filha: – “O que você disse ao meu filho?”

A mãe: – “E o que vocês disseram? Sobre os homens maus?”

A filha: – “O que nós dissemos? Esta manhã mesma eu só não perdi meu filho e fiquei viúva por milagre. Eles passaram ao lado da bomba meio minuto antes da explosão.”

A mãe: – “Não lutamos contra inocentes.”

A filha: – “Mas então você luta? Devo parabenizar você pelo que aconteceu esta manhã?”

A mãe: – “O vereador amigo do seu marido era do PP.” (O Partido Popular é conservador, liberal em termos econômicos – tudo o que que a esquerda odeia.)

A filha: – “Você está louca? Era uma pessoa boa, um pai de família.”

A mãe: – “Era um opressor! Lembre-se de que seu irmão vai apodrecer numa cadeia espanhola por causa de pessoas como ele.”

A filha: – “Pois o seu filho, de quem você tem tanto orgulho, matou pessoas, e por isso está na cadeia, por ser terrorista. Vou falar de novo: por ser terrorista. E não por falar em basco, como você disse ao Endika. Sua mentirosa! Você é uma mentirosa!”

A mãe: – “Como você pode falar do meu filho? Como você pode? Como? Um soldado que arriscou a vida pelo País Basco!”

A filha: – “Diga isso para as vítimas do seu filho! Explique para elas! Duvido que tenha coragem de olhar na cara delas!”

A mãe: – “Veja: esses… esses são os amigos do seu marido. Ele (faz um gesto como se para indicar o político amigo de Guillermo que foi assassinado) não fará falta.

A filha: – “Por que você nunca fala o nome do meu marido? Claro. Suponho que pense que ele também é um opressor.”

A mãe: – “Muito basco ele não é.”

A filha: – “Ele nasceu aqui! Que nem você e eu!”

A mãe: – “Hernández Carrizo! E não aprendeu nem uma palavra de basco!”

Arantxa, chorando já há algum tempo, chama os filhos para irem embora. Joxian – que acompanhou a briga o tempo todo bem de perto – tenta convencê-la a ficar. A moça é firme: – “Me deixe, pai. Não sei como você a aguentou por tantos anos.” E vai embora com os filhos.

Nunca se pode dizer desta água não beberei. Alguns anos depois dessa briga com a mãe, Arantxa perde quase todos os movimentos, perde a fala e em seguida perde também o marido, que ao menos fica cuidando dos dois filhos. E passa a viver na casa da mãe, sob os cuidados dela, do pai e de uma cuidadora, Celeste (María Isabel Díaz Lago), que, felizmente, a trata com imenso carinho,

Elenco homogeneamente bem, boa direção

Todo o elenco está muitíssimo bem. É impressionante como tem tanto ator bom no País Basco – a imensa maioria dos atores, assim como das equipes técnicas, é de bascos. Não há exceções, todos, de fato, estão muito bem. Mas me impressionaram de maneira especial as quatro mulheres – as que fazem as senhoras, Bittori e Miren, e as que fazem as filhas delas, Nerea e Arantxa.

Elena Irureta, que faz Bittori, nasceu em San Sebastián em 1955, e tem mais de 60 títulos na filmografia. Ane Gabarain também é de San Sebastián, de 1953, e tem 37 títulos.

Impressionante: têm 8 anos de diferença, e no entanto as duas nos convencem perfeitamente de que estão, em 1990, com uns 45 anos, e com uns 65 ou pouco mais quando o ETA depõe as armas.

E as jovens Susana Abaitua, que faz Nerea, a filha de Txato e Bittori, e Loreto Mauleón, que faz Arantxa, têm incrível capacidade de parecerem ter uns 17, 19, ali por 1990, e 37, 39, nos últimos anos da ação. Impressionante.

Essa moça Loreto Mauleón, em especial, exibe um talento incrível ao fazer a adolescente Arantxa linda, leve e solta e depois a Arantxa madura cujo único contato com o mundo externo se dá com o digitar palavras num iPad com a mão direita. Que atriz! (Ela está nas fotos acima e abaixo.)

Susana Abaitua nasceu na cidade basca de Vitoria, em 1990, e tem já 34 títulos na filmografia. Loreto Mauleón é pouco mais velha do que ela – nasceu em 1988, em San Sebastián, tem 14 títulos no currículo.

Elenco homogeneamente bem indica a existência de uma boa escola de artes dramáticas, mas também bons diretores. Os quatro primeiros episódios de Pátria foram dirigidos por Félix Viscarret, um realizador que não é basco, e sim de Navarra: nasceu em Pamplona, em 1975.

Viscarret é o único nome que aparece nos créditos iniciais de cada episódio de Pátria que eu já conhecia: ele foi um dos autores dos roteiros dos quatro filmes baseados na tetralogia Quatro Estações em Havana, juntamente com o autor dos romances, o cubano Leonardo Padura, e sua mulher, Lucia Lopez Coll. Além de co-roteirista, FélixViscarret foi também o diretor dos quatro filmes, Paisaje de Otoño, Máscaras, Pasado Perfecto e Vientos de la Habana.

Em 2017, Vicarret fez um documentário, Saura(s), uma homenagem ao grande Carlos Saura, esse que foi o primeiro grande realizador do cinema espanhol do período da redemocratização do país, a partir de 1975.

Os quatro últimos episódios foram dirigidos por Óscar Pedraza, Sobre ele há poucas informações disponíveis; Pátria foi o oitavo título em sua filmografia como diretor; os sete anteriores também foram séries para a TV.

Falaram do que entendem – sua aldeia

Tanto o autor do livro, Fernando Aramburu, quanto o criador da série, que escreveu o roteiro dos oito episódios, Aitor Gabilondo, são também do País Basco. Escritor, poeta, ensaísta, Aramburu nasceu em San Sebastian, em 1959. Pátria, publicado em 2016, foi seu nono romance.

Aitor Gabilondo – também de San Sebastián, de 1972 –, comprou os direitos de filmagem do livro antes mesmo que ele fosse lançado, após ter lido uma sinopse da história. Em uma entrevista, admitiu que talvez não tivesse tido coragem de adaptar o livro se soubesse o sucesso que ele faria; até parou de olhar o número de exemplares vendidos enquanto escrevia o roteiro, porque isso o intimidava.

O sucesso foi de fato extraordinário: traduzido e lançado em 30 países, Pátria já vendeu mais de 1 milhão de exemplares.

A série foi produzida pela HBO Europa, com apoio da HBO Latino-America, e se tornou a primeira série do conglomerado americano a estrear simultaneamente – em 27 de setembro de 2020, quatro anos depois do lançamento do livro – nos Estados Unidos e em mais de 60 países da Europa e da América Latina, incluindo o Brasil, segundo informa Elisa Menezes no blog do Editora Intrínseca.

Fernando Aramburu, Aitor Gabilondo, toda a equipe, os atores seguiram a lição de Liev Tolstói: se você quiser ser universal, fale de sua aldeia, de seu vilarejo, de seu pueblo.

Pátria é uma maravilhosa obra-prima.

Anotação em dezembro de 2020

Pátria/Patria

De Aitor Gabilondo, criador, roteirista, Espanha, 2020

Diretores Félix Viscarret, Óscar Pedraza    

Com (da família de Txato Lertxundi), Elena Irureta (Bittori), José Ramón Soroiz (Txato), Iñigo Aranbarri (Xabier), Susana Abaitua (Nerea)

(da família de Joxian) Ane Gabarain (Miren), Mikel Laskurain (Joxian), Loreto Mauleón (Arantxa), Jon Olivares (Joxe Mari), Eneko Sagardoy (Gorka)

e Patxi Santamaría (Don Serapio, o padre do vilarejo), Chechu Salgado (Patxo, o colega de célula de Joxe Mari), Nagore Aranburu (Txopo), María Isabel Díaz Lago (Celeste , a cuidadora de Arantxa), Belén Cruz (Juani), Lander Otaola (Jokin, do ETA, filho dos donos do armazém), Manuel Morón (Herminio), Mikele Urroz ( (Josune, a namorada de Joxe Mari), Begoña Maestre (Aránzazu), Unai López (Andoni), Miko Jarry (Belarri), Mikel Mikeo (Ramón Lasa), Gabriel Ignacio (Bernard), Javier Beltrán (Guillermo, o marido de Nerea), Iñigo de la Iglesia (Patxi, do ETA, dono do bar), Daniel Helguera (Endika, o filho de Arantxa), Askoa Uriarte (Ainhoa, a filha de Arantxa), Leire Zuazua (fisioterapeuta de Arantxa),

Roteiro Aitor Gabilondo

Baseado no romance de Fernando Aramburu

Fotografia Álvaro Gutiérrez, Diego Dussuel

Música Fernando Velázquez

Montagem Alberto del Campo, Victoria Lammers         

Casting Eva Leira, Yaël Moreno, Yolanda Serrano        

Direção de arte Juan Pedro De Gaspar

Figurinos Clsra Bilbao

Produção Alea Media, HBO Europe, HBO Latin America.

Cor, cerca de 480 min (6h)

Disponível no Now

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4 Comentários para “Pátria / Patria”

  1. A minissérie é mesmo muito boa e bastante fiel ao livro (inclusive nas idas e vindas no tempo), mas o livro é ainda melhor.

  2. Amigo Sérgio

    Comecei a ver a série por tua sugestão e, como não poderia deixar de ser (sempre tivémos gostos muito parecidos), estou a adorar. Vi os 3 primeiros episódios na noite deste sábado e como já passa da uma da madrugada, vou concluir amanhã, domingo.

    Forte abraço e obrigado por esta belissima sugestão.

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