Quando, em 1952, começaram as filmagens de A Canção da Estrada – o filme que conta os primeiros anos da vida do garotinho Apu, no interiorzão da Bengala Ocidental, nos anos 1920, quando todo o Subcontinente Indiano era possessão britânica –, Satyajit Ray nunca havia realizado qualquer coisa relacionada a cinema. Em 1959, quando lançou este O Mundo do Apu, o terceiro tomo da Trilogia de Apu, seu nome já era respeitadíssimo nos festivais e entre os cinéfilos antenados como o de um dos grandes cineastas de todo o mundo.
Só no Festival de Cannes, um dos três mais importantes que há, ao lado dos de Berlim e Veneza, haviam sido exibidos dois de seus filmes: o próprio A Canção da Estrada/Pather Panchali, que havia levado três anos para completar e foi lançado apenas em 1955, e Parash Patar, de 1958. Mais tarde, dois outros filmes de Ray concorreriam à Palma de Ouro de Cannes, Devi, de 1960, e Ghare-Baire, de 1984. Nada menos que sete filmes dele seriam admitidos para concorrer ao Urso de Ouro de Berlim.
Para realizar A Canção da Estrada, Ray havia tido sérios problemas de dinheiro, quer dizer, com a falta de dinheiro. Com metade do filme rodado, os recursos que o jovem realizador tinha simplesmente acabaram. Classe média para alta, filho de poeta e historiador, formado em Ciências e Economia pela Universidade de Calcutá, Ray vendeu sua coleção de LPs e pediu à esposa, Bijoya, que penhorasse suas jóias. Mas a ajuda que de fato permitiu que o filme fosse completado veio do governo de Bengala Ocidental – tanto que, na abertura do filme, no início dos créditos iniciais, aparece: “O governo de Bengala Ocidental apresenta”.
Muita coisa tinha mudado entre o primeiro e o terceiro filme da trilogia. Este O Mundo de Apu traz nos créditos iniciais o nome Satyajit Ray Productions. Ele mesmo já era o dono da empresa que produzia seus filmes.
E é absolutamente fascinante: nada mudou no estilo do cinema de Satyajit Ray entre o primeiro e este último volume de sua trilogia.
A Canção da Estrada, O Invencível, de 1956, e este O Mundo de Apu têm o mesmo estilo, as mesmas fantásticas qualidades todas.
Ray faz um cinema despojado, sem requintes, sem frescuras de espécie alguma. Usava, é claro, naqueles anos 50 (e continuou usando em várias das obras posteriores), a fotografia em preto-e-branco – e filmava fora de estúdio. Nas ruas das cidades, no meio do campo – em paisagens pobres, quase miseráveis. Quando recebeu um Oscar honorário por sua carreira esplendorosa, em 1992, disse que viu muito o cinema americano, aprendeu muito com o cinema americano – mas deve seguramente ter visto muito também o neo-realismo italiano da segunda metade dos anos 40, início dos 50, porque o visual de seus filmes, e até mesmo o tom, a atmosfera, têm bastante a ver com aqueles filmes de Vittorio De Sica, Roberto Rossellini, feitos na Itália dilacerada, empobrecida pela Segunda Guerra Mundial.
O tom, a atmosfera, o mood, assim como a moral, a forma de ver o mundo, a vida o amor a morte, tudo tem a ver, sim, com o melhor do neo-realismo. E também, ouso dizer, com Charles Chaplin, com Frank Capra: é humanismo direto na veia.
Não sei se já usaram este termo, este rótulo, mas creio que ele cabe muito bem para o cinema de Satyajit Ray: ele faz um realismo poético. Do mais belo que essa arte extraordinária já produziu.
Um rapaz “sensível, consciente e aplicado”
O Mundo de Apu abre com um intróito apresentado antes mesmo dos créditos iniciais. Sem logotipos de companhias produtoras, como se usa nas últimas décadas, o filme abre direto com o close-up de uma carta-atestado, em inglês:
“Certifico que o senhor Apurba Kumar Roy foi meu estudante nas aulas de Ciências do Intermediário no The City College, Calcutá. Ele é sensível, consciente e aplicado, merecedor de simpatia e ânimo.”
A segunda tomada do filme mostra Apu lendo a carta que o professor acaba de entregar a ele. É um plano americano, e o que vemos é um rapaz muito bonito, aí de uns… Sei lá, é difícil calcular: 19, 20, 21 anos.
Apu havia sido interpretado por Subir Banerjee em A Canção da Estrada, que o mostra ali por volta dos seis, sete anos de idade, e por Pinaki Sengupta e em seguida por Smaran Ghosal em O Invencível, em que o vemos como criança já grandinha e depois como jovem adolescente. Aqui, como um jovem adulto recém-saído da adolescência, e depois homem feito, aí de uns 30 e poucos anos, ele é feito por Soumitra Chatterjee, que no ano de lançamento do filme estava com 24 anos de idade. E era de fato um rapaz muito bonito, simpático, cara boa.
Nessa primeira sequência do filme, em que Apu recebe a carta-atestado do seu professor, o mestre diz que ele deveria continuar os estudos, fazer universidade – mas Apu responde que não tem dinheiro para isso. O professor então diz que ele não deveria deixar de escrever: já demonstrou que tem talento, precisava continuar escrevendo. Não que você vá ser um dos melhores escritores da Índia, brinca o bom professor, mas prossiga, prossiga!
Termina a rápida sequência-intróito, vêm os créditos iniciais.
E aqui digo que essa é uma pequena sacada narrativa de Ray, que tem um estilo, repito, despojado, sem requintes, sem frescuras formais. No entanto, essa coisa de dar um pequeno intróito antes dos créditos iniciais – que viria a ser praticamente um padrão algumas décadas mais tarde – ainda era algo muito raro, em 1959.
Depois dos créditos iniciais – escritos em bengali, com tradução para o Português em legendas, no DVD lançado no Brasil pela M.D.V.R., Obras Primas –, vemos um pouco do dia-a-dia do jovem Apu. Ele vive no último andar de um prédio de uns cinco andares, bem pobre, num bairro pobre de Calcutá, a metrópole de Bengala Ocidental, a região da Índia que, apesar do nome, fica no Oriente do país-continente, perto de onde o Rio Ganges deságua no mar.
Tendo concluído o Curso Intermediário, logo antes do terceiro grau, e, pelo que diz a carta-certificado do professor, concluído muito bem, Apu teoricamente está em condições de achar um emprego razoável. Mas não consegue. Nós o vemos tentando conseguir vaga em lugares que haviam anunciado que precisavam de gente – em um deles, é recusado porque tem formação além do necessário!
Um jovem que não encontra emprego
Apu está devendo umas duas ou três semanas de aluguel daquele pequeno, muito pobre apartamento em que vive. Dá aulas particulares, vive delas, enquanto procura emprego. Empenha livros para complementar o que ganha e pagar as despesas.
É um jovem que chega à idade madura com uma boa educação, mas encontra muita dificuldade para entrar no mercado de trabalho.
O fato de ele ter tido boa educação, a rigor, já é quase um milagre – e os dois primeiros filmes da trilogia mostram isso perfeitamente. Os pais de Apu eram muito, muito pobres, da área rural de um país de população gigantesca e imensa concentração de riqueza – um país do Terceiro Mundo, colônia do Império Britânico. (O primeiro filme da trilogia mostra que a ação se passa ainda nos anos 20 do século passado, ou seja, um século atrás). Apu a rigor era afortunado por ter tido professores bons, que perceberam que o garoto era inteligente, tinha potencial, e trabalharam para que ele tivesse bolsas de estudo.
Certo, mas isso é passado, isso é mostrado em detalhes em O Invencível, o segundo filme dos três.
O que vemos no início deste terceiro da trilogia é um rapaz com boa educação que não consegue emprego.
Não poderia haver situação mais universal – e até mesmo atemporal – do que esta. Aquele jovem Apu procurando trabalho na Calcutá ali dos anos 40, ou 50, depois de terminar o Intermediário, é igualzinho a milhões, milhões de jovens no mundo inteiro. Igualinho que nem o Sérgio Vaz que chegou a São Paulo com 18 anos de idade, uma boa formação nos melhores colégios públicos de Belo Horizonte e Curitiba (e o ensino público na época era muitíssimo melhor que hoje), sonhos de estudar cinema, e teve que agradecer aos céus o fato de o irmão mais velho ter conseguido para ele um emprego como datilógrafo-secretário-office-boy da diretora do Jurídico de uma empresa de média para grande, com sede na Rua da Consolação, diante da Biblioteca Mário de Andrade e bem pertinho – as coincidências! – do prédio do Estadão, no centrinho da maior cidade da América do Sul.
Não tinha pensado nisso antes, só me ocorreu neste momento, escrevendo esta anotação: Apu e eu tínhamos em comum o fato de saber escrever. A diferença é que Apu tinha imaginação para escrever ficção – já bem nesse início de narrativa, um conto dele havia sido aceito para publicação.
Um futuro oposto ao que o jovem planejava
Quando o filme está ali com uns 15, 20 minutos, Apu está conversando com seu melhor amigo, Pulu (Swapan Mukherji). Fica absolutamente claro que Pulu tem admiração pelo amigo, é um grande incentivador dele, assim como aquele simpático, competente professor.
Pulu pergunta se o amigo tem escrito alguma coisa. Eis o que Apu responde:
– “Ouça isto. Um garoto. Uma criança. Uma criança do interior. Pobre, mas sensível. O pai dele é um sacerdote. O pai morre. O garoto vai para a cidade. Ele não quer ser um sacerdote. Ele vai estudar. Ele é ambicioso. Ele estuda. Através da sua educação e das suas lutas, nós observamos ele se livrar de suas velhas superstições e preconceitos. Ele questiona tudo e não confia cegamente em nada. Mas tem imaginação e sensibilidade. Pequenas coisas o emocionam e dão alegria. Talvez ele tenha uma grandeza dentro dele, a habilidade para criar, mas…
Pulu o interrompe: – “Mas ele não consegue.”
Apu: – “É isso. Mas não termina aqui. Não é uma tragédia. Ele não faz nada grandioso. Permanece pobre. Mas nunca se vira de costas para a vida. Não foge. Ele quer viver. Ele diz que o simples ato de viver traz satisfação e alegria. Ele quer viver!”
Aí Pulu ri dele, diz que aquilo é sua autobiografia, apenas, e Apu diz que não, que vai ter muita ficção.
Mas o fato é que essas duas falas de Apu ainda no início do filme são impressionantes.
Aquele primeiro parágrafo é o mais puro resumo do que havia sido sua vida até então. É uma perfeita sinopse dos dois primeiros filmes da trilogia. Demonstra que o rapaz tinha de fato uma imensa sensibilidade, uma capacidade incrível de se conhecer, de se analisar.
Já aquele segundo parágrafo – “Não é uma tragédia” –, aquilo que o jovem Apu imaginava que seria a sua vida no futuro, o que contaria seu romance sem dúvida alguma autobiográfico… Aquilo é o oposto do que acabaria acontecendo em sua vida – pelo menos durante um bom número de anos.
Veremos que quando Apu está ali por volta de seus 25 anos ou pouco mais acontece uma tragédia. E durante muitos dos anos que se seguirão ele vai fazer tudo ao contrário do que imaginava para seu personagem, seu alter ego: vai se virar de costas para a vida, vai fugir, vai perder a vontade de viver.
Um dos personagens mais tristes do cinema
Acho que tem sentido transcrever aqui parte do que anotei quando vi A Canção da Estrada, o primeiro filme da trilogia.
A saga da família do interiorzão de Bengala Ocidental, que, no segundo e no terceiro filmes da trilogia, prossegue na cidade sagrada de Benares (hoje conhecida como Varanasi), à beira do Rio Ganges, e na gigantesca metrópole que é Calcutá, foi uma criação – em boa parte autobiográfica – do escritor Bibhutibhushan Bandyopadhyay.
Bibhutibhushan Bandyopadhyay é tido como um dos mais importantes autores da literatura em língua bengali. Seu romance autobiográfico Pather Panchali foi lançado em 1945, quando o escritor, nascido em 1894, estava portanto na maturidade, com 51 anos. Morreria apenas cinco anos depois, em 1950 – Satyajit Ray trataria dos direitos de filmagem da história com a viúva dele.
É interessante verificar as datas. Entre o lançamento do romance e a morte do escritor, houve a independência da Índia do Império Britânico, em 1947, com a criação, ao mesmo tempo, do Paquistão.
Satyajit Ray fez, ele próprio, a adaptação do romance para o cinema – e não foi uma adaptação fiel. Bem ao contrário. Manteve alguns acontecimentos básicos, mas desprezou muitos outros eventos e também um número altíssimo de personagens. “O livro tem mais de 300 personagens”, explica Mamoun Hassan, um estudioso da obra do realizador. “É um livro sobre a vila em que esses personagens vivem. Ray o tornou a história de uma família da vila.”
Tá. Escrevi os quatro parágrafos acima depois de ver A Canção da Estrada Digo agora que não tenho a menor idéia se o casamento de Apu com Aparna (Sharmila Tagore) é uma criação de Bibhutibhushan Bandyopadhyay, ou se Ray fez alguma adaptação no que conta o romancista.
O fato é que aquela história, aquela situação, a forma com que vem a acontecer o casamento dos dois jovens, aquilo é uma grande invenção, uma grande sacada literária.
Creio que contar as circunstâncias em que Apu vem a se casar com Aparna seria um spoiler para o eventual leitor que ainda não teve o prazer de ver o filme – ainda que o casamento aconteça bem antes da metade dos 105 minutos do filme.
Por isso, passo adiante, para o momento que me parece extremamente importante, em que, uns três dias depois do casamento, Apu faz um esforço para que sua jovem esposa e ele conversem, dialoguem, comecem a se conhecer. Ele pergunta o que ela sabia a respeito dele, o que seu amigo Pulu, primo dela, havia contado para ela.
– “Ele contou que você não tem ninguém”, diz a garota.
– “Está certo”, responde Apu. “Meu pai morreu quando eu tinha dez anos. Minha mãe morreu sete anos depois. Eu tinha também uma irmã mais velha.”
Sim, nós tínhamos visto tudo isso nos dois primeiros filmes da trilogia: Apu havia perdido a única irmã, o pai, a mãe. Não tinha ninguém no mundo.
Em um país-continente de milhões e milhões e milhões de pessoas, Apu não tinha absolutamente ninguém.
Apu é um dos personagens mais tristes que o cinema já nos mostrou.
E, quando o terceiro filme sobre ele já passa da metade, há uma nova tragédia.
É tristeza demais.
Uma sequência de rara beleza, impressionante
Há um monte de sequências de rara beleza neste O Mundo de Apu, assim como nos dois filmes anteriores da trilogia. Porém há uma sequência, em especial, que me impressionou demais. Nela há uma tomada de uma força, uma beleza, que dificilmente sairá da cabeça do espectador.
Apu chega com sua jovem esposa – filha de uma família bem de vida do interior – ao seu muito humilde apartamentozinho em um prédio vagabundo num bairro pobre de Calcutá.
(A pensão em que dividi um quarto com um outro rapaz, quando cheguei a São Paulo aos 18 anos só com sonhos e sem um tostão furado, era muitíssimo melhor do que o apartamento de Apu…)
Depois de mostrar aquela pobreza para Aparna, Apu a deixa sozinha e desce as escadas para pegar as malas dela.
Aparna se aproxima da janela, em que há um pano esburacado fazendo as vezes de cortina.
A câmara do diretor de fotografia Subrata Mitra, colocada do lado de fora do apartamento, focaliza então, em close-up, através do buraco do plano-cortina, o olho da moça bem de vida que acabava de chegar ao lar muito pobre do marido.
Uma lágrima rola do olho da moça.
É triste – e é cinema grande, maravilhoso. Impressionante.
Foi a estréia dos dois jovens atores
Sharmila Tagore tinha 14 anos quando O Mundo de Apu foi lançado, em 1959. Nasceu em 1946, quando a Índia ainda pertencia ao Império Britânico. Incrível: apenas 14 anos! Enquanto via o filme, achei, é claro, que ela era bastante nova – mas imaginei uns 18 anos…
Foi seu primeiro filme – o primeiro dos mais de cem títulos de sua filmografia. Segundo o IMDb, ela fez diversos filmes no seu estado natal, a Bengala Ocidental, a terra de Ray e onde se passa a ação de O Mundo de Apu – filmes falados em bengalês, ou bengali. Só mais tarde passou a fazer filmes em hindi, a língua mais falada naquele país-continente que tem o absurdo de 453 línguas, das quais 22 são consideradas oficiais nos diversos Estados.
A atriz teve um sucesso espetacular, em especial nos diversos filmes em que fez par com o super-astro Rajesh Khanna. Como se não bastasse ser um atriz de imensa popularidade, a moça se casou, em 1969, quando estava portanto com 24 aninhos, com Mansur Ali Khan Pataudi, um famosérrimo marajá e jogador de críquete. Viveram juntos até a morte dele, em 2011; dos três filhos do casal, dois – Saif Ali Khan e Soha Ali Khan – viraram atores.
Consta que a estreante Sharmila Tagore não havia entrado nunca no local em que foi filmada a cena em que sua personagem, Aparna, recém-casada, chega pela primeira vez ao apartamento muito pobre de Apu, onde passaria a viver. Ray fez questão de filmar o rosto da garotinha expressando sua real surpresa diante do lugar acanhado, pobre demais.
Conseguiu um resultado fantástico.
– “Trabalhar em filmes não era considerado algo bom – era tido como uma influência corrompedora para uma jovem de boa família da classe média”, conta uma Sharmila Tagore já idosa, bela, elegante, em um pequeno documentário que acompanha O Mundo de Apu na preciosa caixa de três DVDs lançada no Brasil pela M.D.V.R. Obras Primas Trilogia de Apu. “Mas Ray era uma exceção. Ele já havia ganhado muitos prêmios internacionais, e era bem respeitado.” Sharmila conta que foi abordada à saída de seu colégio por um homem que trabalhava na equipe de casting de Ray. Ela foi convidada para conhecer o diretor: – “Ele me fez usar um sari e arrumou meu cabelo de outra forma – e então eu passei no teste”.
No documentário, o ator Soumitra Chatterjee, que interpreta Apu neste terceiro filme da trilogia, conta que recebeu cuidadosas instruções de Ray sobre como interpretar o protagonista da história – mas ele também fez um trabalho preparatório. – “Seguindo o método de Stanislavski (Constantin Stanislavski, 1863-1938, o ator, diretor e escritor russo, criador do método de atuação que seria adotado pelo Actors Studio), eu criei uma biografia de Apu em forma de um diário. Nas horas em quem Apu não aparece, quando há elipses, o que Apu estava fazendo? Onde ele estava? Como ele estava? Eu escrevi um diário sobre todas essas coisas.”
Assim como Sharmila Tagore, Soumitra Chatterjee (1935-2020) estreou no cinema em O Mundo de Apu – com a diferença de que a garota era uma estudante que não pensava em virar atriz, e ele já era um ator em busca de trabalho. Encontrou: sua filmografia tem mais de 300 títulos.
“Rico e contemplativo, uma afirmação fantástica”
O DVD do filme lançado no Brasil traz ainda um pequeno documento fantástico: o momento em que uma Audrey Hepburn já mostrando as marcas da idade anuncia que o Conselho de Diretores da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas havia decidido dar um Oscar honorário a Satyajit Ray. “Mr. Ray tem feito filmes por quase quatro décadas”, diz a maravilhosa Audrey para a platéia e para os telespectadores do mundo todo que acompanhavam a cerimônia de entrega dos Oscars no Dorothy Chandler Pavilion na noite de 31 de março de 1992. “A Academia reconhece a rara maestria da arte de realizar filmes de Mr. Ray e seu profundo humanismo, que teve uma influência permanente sobre cineastas e audiências ao redor do mundo. Ele uma vez disse que procura captar tanto o que é único à experiência indiana quanto o que é universal.”.
Depois dos aplausos da platéia de atores, diretores, roteiristas, gente de todas as áreas do cinema, Audrey Hepburn informa que infelizmente Mr. Ray não está bem de saúde, e não pôde participar da cerimônia – e então vemos uma declaração de Ray, com o Oscar na mão, deitado em uma cama de hospital em Calcutá. Em seu discurso de agradecimento, o grande cineasta faz entusiásticos elogios ao cinema americano, que o ensinou muito, segundo garante.
Estava com 70 anos, e morreria menos de um mês depois da cerimônia do Oscar, em 23 de abril daquele ano de 1992. Uma coincidência: Audrey Hepburn também morreria alguns meses depois, no inicinho de 1993, com apenas 63 anos.
Leonard Maltin deu a The World of Apu 3.5 estrelas em 4: “Relato tristemente poético sobre o tímido Apu (Chatterjee) casando-se e sendo pai de uma criança. Atuações magníficas; último filme da trilogia Apu do diretor.”
Pauline Kael escreveu: “O protagonista de Satyajit Ray, Apu, cuja consciência se desenvolveu desde a vida na aldeia em Canção da Estrada e na escola em O Invencível, casa-se com a exótica Sharmila Tagore e supera a timidez. Rico e contemplativo, e uma afirmação fantástica e convincente. O Apu maduro é interpretado pelo notável Soumitra Chatterji, que estrelou vários outros filmes de Ray. Adaptado de um romance de B.B. Bandapaddhay, por Ray; música de Ravi Shankar. Em bengalês.”
O livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, de Steven Jay Schneider, dedica duas páginas ao filme que “completa a trilogia que deu fama a Satyajit Ray e apresentou o cinema indiano ao mundo”. Afirma que o casamento de Apu e Aparna é o coração do filme, e “carrega um poderoso impacto emocional e erótico”:
“Não que Ray leve ao espectador qualquer contato sexual explícito; mesmo que quisesse, as convenções morais da Índia o teriam impedido.”
(De fato, o cinema indiano era proibido de mostrar até mesmo cenas de beijos – ainda que fossem beijos de casais casados. Não há uma única tomada de contato físico entre Apu e Aparna.)
“Contudo, ele transmite uma saudável revelação erótica em momentos como o que Apu, acordando na sua cama anteriormente de solteiro e escutando Aparna preparando alegremente o café da manhã, descobre, espantando, um grampo de cabelo no travesseiro ao seu lado. Ray extrai de Chatterji e Tagore, em suas estréias no cinema, atuações de impressionante profundidade e convicção; não é surpreendente que ambos tenham se tornado grandes estrelas do cinema indiano, assim como atores recorrentes nos filmes do diretor. Tagore, encantadora como Aparna, tinha apenas 14 anos na época. Graças a suas interpretações e à ternura e sutileza abrangentes da direção de Ray, o filme é um dos retratos mais comoventes e intimistas da vida matrimonial da história do cinema. O Mundo de Apu não só completa a trilogia magistral de Ray como também compreende uma dilacerante história de amor e perda.”
É isso aí. Grande, imenso Satyajit Ray.
Anotação em junho de 2021
O Mundo de Apu/Apur Sansar
De Satyajit Ray, Índia, 1959
Com Soumitra Chatterjee (Apurba Kumar Roy, o Apu),
e Sharmila Tagore (Aparna), Swapan Mukherji (Pulu, o grande amigo de Apu), S. Alke Chakravarty(Kajal, o filho de Apu), Shanti Bhattacherjee (o colega no escritório), Abhijit Chatterjee (o irmão de Aparna), Dhiren Ghosh (o senhorio), Belarani Devi (vizinho de Apu), Sefalika Devi (a mulher de Shashinarayan), Dhiresh Majumdar (Shashinarayan)
Roteiro Satyajit Ray
Baseado no romance “Aparajito”, de Bibhutibhusan Bandopadhaya
Fotografia Subrata Mitra
Música Ravi Shankar
Montagem Dulal Dutta
Direção de arte Banshi Chandra Gupta
Produção Satyajit Ray Productions.
P&B, 105 min (1h45)
****
Disponível em DVD.
3 Comentários para “O Mundo de Apu / Apur Sansar”