Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre / Never Rarely Sometimes Always

3.5 out of 5.0 stars

É excelente, excepcional este filme de título tão estranho e interessante, uma típica produção do cinema independente americano, obra que parece bem pessoal de uma jovem diretora e roteirista, Eliza Hittman. Excelente, excepcional, feito com imenso talento. E é também desagradabilíssimo de se ver.

Você fica aflito, preocupado, chateado, angustiado, durante praticamente todos os 101 minutos que dura o filme. Você sofre, você morre de pena da protagonista da história.

Ver Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre é uma experiência extremamente aflitiva, angustiante.

De repente me lembrei, ao escrever este começo de texto aqui, dos versos com que Bob Dylan encerrava uma canção extremamente angustiada e angustiante, que ele escreveu jovem, mais jovem ainda que a diretora Eliza Hittman: “It’s all right, Ma, it’s life, and life only”.

É a vida, só a vida – sem qualquer tipo de adereço, de enfeite, de suavidade.

É a vida no pior que ela pode ter.

Eu seria capaz de jurar que Eliza Hittman, nascida no Brooklyn, Nova York, em 1979, quatro anos depois que minha filha, viu todos os filmes de John Cassavetes, o grande autor, o inventor do cinema independente American Way.

Certamente estudou cinema, viu muito John Cassavetes. Deve ter visto muito cinema europeu também, é claro. Deve ter visto Michelangelo Antonioni com grande atenção.

O tema central do filme é aborto – e é uma forma muitíssimo interessante, importante, de se abordar o aborto no cinema.

O aborto é uma questão que está presente na vida de um número gigantesco de pessoas. A imensa maior parte das pessoas já passou por uma experiência próxima ao aborto – seja delas mesmas, seja de amigas ou parentes. No entanto, há poucos filmes que tratam desse tema – e dá para contar nos dedos das mãos os que falam dele de uma forma adulta, séria, racional, não preconceituosa.

A cada ano se fazem mais de mil filmes sobre bandidos dos mais variados tipos – embora mais de 90% da humanidade não seja de bandidos. E creio que não chegaria a 20 o número de filmes que tratam de forma adulta, séria, racional, não preconceituosa a questão do aborto, que tem a ver com uma boa parte da humanidade.

O filme da jovem Eliza Hittman é desse tipo raríssimo. Trata o aborto – repito – de maneira que merece todo aplauso.

Só que não é agradável de se ver.

É um grande filme – mas é também de uma angústia atroz.

Never Rarely Sometimes Always fala sobre aborto de forma aberta, franca, honesta, sincera, crua. Fala também de abuso – só que, ao tratar do abuso, o faz de forma muito suave, sutil. Extremamente sutil.

Não é por falar de aborto, e sequer de abuso, que é um filme de uma angústia atroz, difícil de se ver, que deixa o espectador aflito, preocupado, chateado, angustiado.

É porque é um filme sobre incomunicabilidade. Sobre a incapacidade de as pessoas se falarem, se comunicarem. De aceitarem ajuda.

O horror, o terror, o pavor em que a protagonista da história, Autumn, está mergulhada não é por causa do aborto. É porque ela não consegue falar com ninguém. E por isso sofre, e faz o espectador sofrer com ela.

Aos 17 anos, a protagonista está grávida

Autumn – o papel de Sidney Flanigan, em sua estréia como atriz – tem 17 anos, mora numa pequena cidade do interior da Pensilvânia, estuda e já trabalha; é caixa em um supermercado.

Nós a vemos pela primeira vez num show, um concurso de talentos. Apresenta-se um imitador de Elvis Presley, depois um grupo vocal de três garotos cantando um rockzinho tipo anos 50, à la Buddy Holly, e chega a vez de Autumn. Ela canta acompanhando-se ao violão, no estilo de música folk; é uma canção de amor, doída, amargurada.

(Chama-se “He’s Got the Power’, é de Ellie Greenwich-Anthony Powers, gravada pela primeira vez em 1963. No filme a voz é da própria Sidney Flanigan.)

É uma moça bonita – não um daqueles rostos de beleza absurda, mas de uma beleza mais simples, mais comum, tipo a moça da casa ao lado, como os americanos gostam de falar.

Corta, e Autumn está com a família em um restaurante, logo depois daquela apresentação. Ela não sorri, não come.

A mãe (o papel de Sharon Van Etten) nota que ela não está comendo, comenta isso. A moça responde dizendo que não se sente muito bem.

A mãe vira-se para o marido, Ted (Ryan Eggold): – “Fale o quanto ela cantou bem”.

Ted responde: – “É difícil agradar alguém que está sempre de mau humor”.

À mesa estão também duas garotinhas bem mais novas que Autumn, ainda crianças – obviamente suas irmãzinhas –, e uma outra adolescente de sua idade. Veremos que ela se chama Skylar (o papel de Talia Ryder), é prima e amiga de Autumn; trabalha junto com ela no supermercado – e será a personagem mais importante da história, além da própria moça.

Skylar diz que ela cantou muito bem.

Ted diz: – “Sua mãe quer que eu fale que você cantou muito bem.”

Autumn diz baixo um “Vá à merda”, levanta-se da mesa e vai embora para casa. Em casa, tira os agasalhos; está com uma blusinha curta, que deixa à mostra a barriga – e a câmara da diretora de fotografia Hélène Louvart focaliza a barriga, um pouco saliente, um pouco maior do que seria o normal.

Na manhã seguinte, na hora do café, na cozinha, a mãe pergunta se ela está melhor, e Autumn responde que na verdade, não está melhor. A mãe pergunta se ela quer que ligue para o doutor fulano.

Da sala, onde está sentado, Ted entra na conversa: – “É a cabeça. Tem que examinar a cabeça.”

O que angustia é que a moça não tem onde ficar

Aperto a tecla de fast forward:

Autumn vai a uma clínica, pede que seja feito um teste de gravidez. Dá positivo. Ultrassom indica gravidez de 10 semanas. A legislação da Pensilvânia permite a realização de aborto – mas menores de idade, como é o caso dela, têm que apresentar assinatura dos pais. Ela pesquisa sobre as leis no vizinho Estado de Nova York, procura no Google por clínicas, resolve viajar até Nova York para se submeter a um aborto. Skylar, amiga, companheira, solidária, se oferece para ir com ela.

Viajam as duas de ônibus, carregando uma grande mala (felizmente com rodinhas). Autumn não fala absolutamente nada em casa.

Fica bastante claro que não há comunicação qualquer entre Autumn e os adultos em sua casa. Fica nítido que Autumn não fala quase nada com ninguém – nem mesmo com Skylar, sua prima, sua amiga, possivelmente a pessoa mais próxima a ela.

As duas moças embarcam no ônibus para Nova York quando o filme está aí com uns 20, no máximo 30 dos seus 101 minutos – e ficam juntas praticamente todo o resto do tempo. Mas não conversam.

É impressionante: as duas não conversam. Não é que não troquem confidências, intimidades. Não. Elas não falam sobre coisa alguma, na imensa maior parte do tempo em que estão juntas. Não falam de música, de joguinhos do celular, da paisagem. Não falam de nada.

É impressionante.

E o que deixa o espectador nervoso, inquieto, aflito não é propriamente a questão do aborto em si, mas o fato de que as moças não têm onde ficar em Nova York.

Não é que o atendimento nas clínicas seja ruim. Não, de forma alguma. Ao contrário. O atendimento é sempre muitíssimo respeitoso, correto. As pessoas são atenciosas, prestativas, dão todas as informações necessárias.

O que deixa o espectador aflito, morrendo de pena daquela moça, é que, por não ter muito dinheiro, por não conhecer nada na grande metrópole, Autumn e Skylar não têm onde descansar, parar – a não ser ficar andando de metrô ou perambulando nas estações, sem lugar sequer para tirar um cochilo num banco confortável.

Na clínica em que vai realizar o aborto, a terapeuta que a atende, uma moça extremamente simpática, educada (o papel de Kelly Chapman, ela mesma na vida real conselheira e terapeuta numa clínica de Nova York), tem o cuidado de perguntar se Autumn tem onde ficar. Sabe, pelas informações na ficha, que a moça não é da cidade, e diz que há voluntários que poderiam ajudá-la a encontrar um lugar para passar a noite.

Como a gravidez já é de 18 meses, diferentemente dos 10 meses mencionados na clínica na cidadezinha dela, o procedimento tem que ser feito em dois dias – explica Kelly, com voz calma, suave. Serão colocados dilatadores no cérvix, para fazer efeito ao longo da noite, de maneira a facilitar o procedimento no dia seguinte.

Você tem onde ficar? Quer ajuda? Temos voluntários que podem ajudar…

Autumn diz que não precisa, que ela se vira, dá um jeito.

Não é fazer o aborto – repito – que é angustiante. O que apavora é a situação da moça que não tem onde passar a noite, onde descansar.

E a diretora e roteirista Eliza Hittman sabe muitíssimo bem criar o clima angustiante.

Ora, diabo, mas por que a moça se recusa a ser ajudada?

Autumn não sabe se comunicar com o mundo. Esse é o drama maior.

Longa sequência, Autumn-Sidney Flanigan em close-up

É na longa conversa da terapeuta Kelly com essa adolescente que não sabe se comunicar que o espectador compreende o título deste belo e triste filme.

Não é bem uma conversa – mas interrogatório também não seria um bom termo, porque a terapeuta, como já foi dito, é suave, gentil, educada.

Primeiro vem uma série de perguntas sobre a saúde geral da moça – se já havia sido hospitalizada alguma vez, operada, se havia doenças graves na família.

Depois vêm perguntas sobre os relacionamentos sexuais de Autumn. Ela responde com firmeza, sem titubear: teve sua primeira relação aos 14 anos – três anos antes, portanto. Teve no total seis parceiros. Sim, teve relações orais, vaginais e anais. Ao longo do último ano, foram dois parceiros.

Aí Kelly diz: – “Vou fazer algumas perguntas sobre os seus relacionamentos, OK? Porque eles podem afetar a sua saúde. Sabia disso?

– “Não.”

A sequência é bem longa. A câmara ora focaliza o rosto de Kelly-Kelly Chapman, ora o rosto de Autumn-Sidney Flanigan, em close-up.

Depois de algum tempo, a câmara fica parada no rosto de Autumn, por um longo, longo tempo. Ouvimos as perguntas de Kelly, ouvimos as respostas de Autumn, mas a câmara fica o tempo todo focalizando só o rosto da moça.

E essa Sidney Flanigan, estreante, em seu primeiro filme, dá um show de interpretação.

É impressionante.

Toda essa sequência acontece quando o filme já passou bastante da metade de seus 101 minutos, e portanto é preciso realçar o aviso: o que vem a seguir pode ser visto como spoiler. Quem não viu o filme deveria parar de ler por aqui.

Aqui, um diálogo que a rigor é um spoiler

– “Está bom, então. Eu vou fazer algumas perguntas que podem ser muito íntimas, e tudo o que você tem que fazer é responder “nunca”, “raramente”, “às vezes” ou “sempre”. É tipo um teste de múltipla escolha, mas não tem certo e errado.”

– “OK.”

– “No último ano o seu parceiro se recusou a usar camisinha? Nunca raramente às vezes sempre.”

– “Às vezes.

– “OK. E o seu parceiro mexe nos seus métodos contraceptivos ou tenta engravidar contra a sua vontade? Nunca raramente às vezes sempre.”

– “Nunca.”

– “OK. Seu parceiro já te ameaçou ou te assustou? Nunca raramente às vezes sempre.”

– “`Por que está me perguntando isso?” (E Autumn começa a chorar, bem devagar, em silêncio.)

– “Eu preciso confirmar que está segura. O seu parceiro te ameaça ou te assusta? Nunca raramente às vezes sempre.”

– “Raramente.”

– “OK. O seu parceiro já te bateu, estapeou, te machucou fisicamente? Nunca raramente às vezes sempre.

Autumn chora de mansinho e não responde.

– “Seu parceiro já te bateu, te estapeou, machucou fisicamente?

(Choro.)

– ”Tem alguém te machucando?”

(Choro.)

– “Está tudo bem. Só mais algumas perguntas, tá bom? Seu parceiro já te forçou a fazer sexo quando você não queria? Nunca raramente às vezes sempre.”

(Choro.)

– “Tudo bem. Eu só quero saber se está segura. Eu quero te ajudar se eu puder. E só tenho mais uma pergunta para você, OK? Alguém já te forçou a algum ato sexual na sua vida?”

– “Já.”

– “Tudo bem. Você quer falar sobre isso?”

– “Não quero.”

– “Não? Tudo bem. Eu vou te dar o meu número. Você pode me ligar. Você pode me ligar se quiser conversar, se você precisar de ajuda.”

Kelly ainda pergunta se durante o procedimento Autumn quer que ela esteja presente, esteja junto. A garota diz que sim.

A mãe de Autumn não fazia sua obrigação

Fica bastante claro, portanto, que a garota Autumn sofreu abuso. No entanto, o filme – que mostra todo o resto da forma mais clara, mais crua possível – faz questão de não se aprofundar na questão do abuso. Não deixa claro, em momento algum, de forma nenhuma, quem seria o abusador.

Há alguns poucos, levíssimos indícios – mas nem acho que seja o caso falar deles. O interessante é notar isso: para a autora e diretora Eliza Hittman, essa não é a principal questão. Sequer chega a ser uma questão importante.

Importante, para ela, para o filme – me parece –, é mostrar que a adolescente Autumn, 17 anos de idade, teve uma gravidez indesejada, e teve a certeza plena, firme, definitiva, de que não queria ter o filho. E felizmente encontrou meios de interromper a gravidez – embora com grande sofrimento por se recusar a receber uma ajuda extra que foi oferecida a ela.

Esse é o centro, o cerne, o fulcro do filme, me parece. Mas me parece também que a Eliza Hittman quis mostrar a importância imensa que é, dentro de todo esse drama vivido pela moça Autumn, a necessidade de haver comunicação entre as pessoas. De se conversar.

Mãe e pai têm a absoluta obrigação de conversar com os filhos. De se mostrarem amigos, aliados, cúmplices.

A adolescência é uma fase infernal, e muitas vezes os filhos escapam para as zonas mais absurdas da vida – drogas, radicalismo político, ou simplesmente absoluto mutismo, como é o caso de Autumn. Por mais que os pais sejam esforçados, muitas vezes os filhos escapam, e fazem asneiras.

Mas mãe e pai têm a absoluta obrigação de conversar com os filhos. De estar sempre alerta, vigilante, de fazer o possível e o impossível para que eles não se percam.

A mãe de Autumn – creio que o filme deixa também isso muito claro – não fazia a obrigação.

Uma jovem realizadora de talento

Este Never Rarely Sometimes Always é o terceiro longa-metragem de Eliza Hittman. Depois de quatro curtas, ela lançou em 2013 Parece Amor/It Felt Like Love – também um drama sobre uma adolescente e sua vida sexual. Em 2017 veio Ratos de Praia/Beach Rats, outro drama, desta vez sobre um adolescente homem e suas experiências com drogas e outros homens.

Assim como neste Never Rarely Sometimes Always, nos dois primeiros filmes os atores eram pouco conhecidos, sem grande fama.

Essa Sidney Flanigan que a diretora descobriu é muito impressionante. É uma estréia soberba, magnífica.

Como sua personagem Autumn, nasceu em Estado do Nordeste dos Estados Unidos: é de Buffalo, Nova York. Foi cantora em uma banda de sua cidade natal chamada Starjuice.

Segundo o IMDb, uns 100 de jovens foram testadas para a escolha da que faria o papel principal do filme.

Povo bom esse da equipe de casting.

O filme foi admitido para a mostra competitiva do Festival de Berlim, e Eliza Hittman levou o Grande Prêmio do Júri. Foi exibido em diversos, diversos festivais ao redor do mundo – inclusive o Sundance, o Festival de Cannes do cinema independente -, e reuniu 28 prêmios.

No site que mantém o legado do grande crítico Roger Ebert, o filme recebeu cotação de 3.5 estrelas e um texto apaixonado, assinado por Brian Telerico. Começa assim:

“Uma adolescente quieta chamada Autumn (a estreante Sidney Flanigan) parece carregar o peso do mundo em suas costas. Ela é introduzida cantando seu coração para fora num show de talentos. Há algo melancólico em Autumn que não existe na maioria dos seus pares, e sua única amiga parece ser sua prima e companheira de trabalho Skylar (Talia Ryder). Não demora para que fiquemos sabendo o que está pesando na mente de Autumn – ela tem 17 anos e está grávida. Eliza Hittman, a autora-diretor de Beach Rats, volta a Sundance com seu melhor trabalho até aqui, um drama poderoso que é principalmente um estudo de personalidades sobre duas jovens mulheres mas também um comentário sobre como é perigoso ser uma adolescente na América. Com fantásticas atuações das duas genuínas jovens estreantes, este é um filme sobre o qual as pessoas vão falar durante o ano inteiro.”

É um belo filme, que deve ser visto. Apesar de a experiência não ser nada agradável.

Anotação em abril de 2021

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre/Never Rarely Sometimes Always

De Eliza Hittman, EUA, 2020

Com Sidney Flanigan (Autumn),

Talia Ryder (Skylar)

e Théodore Pellerin (Jasper), Kelly Chapman (conselheira na clínica de Manhattan), Mia Dillon (diretora da clínica na Pensilvânia), Sipiwe Moyo (funcionária de clínica), Sharon Van Etten (a mãe de Autumn), Ryan Eggold (Ted, o pai – ou padrasto), Aurora Richards (irmãzinha), Rose Elizabeth Richards (irmãzinha)

Argumento e roteiro Eliza Hittman

Fotografia Hélène Louvart

Música Julia Holter

Montagem Scott Cummings

Casting Geraldine Barón,Salome Oggenfuss

Direção de arte Tommy Love

Produção PASTEL, BBC Films, Focus Features, Tango Entertainment, Mutressa Movies, Cinereach, Rooftop Films

Cor, 101 min (1h41)

Disponível no Now em abril de 2021

***1/2

 

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