Rocketman, a cinebiografia de Elton John, é um grande filme, um filmaço, daqueles de aplaudir de pé como na ópera. Daqueles que passam depressa demais, parecem ser muito curtos – embora tenha 2 horas de duração. E que dão vontade de ver de novo.
Tem algumas características impressionantes. A mais espantosa delas, pelo menos para mim: o roteiro é um absoluto brilho, a direção é talentosa, firme, madura, a interpretação do ator que faz Elton John e canta todas as canções com sua própria voz é extraordinária, fantástica – e eu não me lembrava de ter ouvido falar do roteirista, nem do diretor, nem do ator!
Pela ordem, Lee Hall, Dexter Fletcher e Taron Egerton.
Vamos lá.
O roteirista Lee Hall não é propriamente um garotinho – e é o autor de outros belos roteiros. Não me lembrava do nome dele, mas Lee Hall, nascido em 1966 no interior da Inglaterra, escreveu os roteiros de, entre outros, Billy Elliott (2000), Cavalo de Guerra (2011), juntamente com Richard Curtis, e Victoria & Abdul: O Confidente da Rainha.
Dexter Fletcher é, por coincidência, do mesmo ano de Lee Hall, 1966. É inglês de Londres, trabalhou como ator em mais de 100 títulos. Como diretor, é quase um iniciante. Este foi apenas seu quarto filme.
E Taron Egerton, este sim, é quase um garoto. Nascido em 1989, no interior da Inglaterra, estava com 30 anos quando Rocketman foi lançado. Sua filmografia tinha apenas 21 títulos em fevereiro de 2020, vários deles séries de TV; em 2015, havia sido dirigido por Dexter Fletcher no terceiro filme do realizador, Voando Alto/Eddie the Eagle, de 2015 – por coincidência, ou não, outra cinebiografia, que conta a história de Eddie Edwards, uma fera do ski que fascinou o mundo do esporte nos Jogos Olímpicos de 1988.
Lee Hall, Dexter Fletcher e Taron Egerton. Três nomes que ainda não tinham grande fama até se reunirem neste Rocketman.
Vai ser difícil esquecer os nomes deles daqui para a frente. Rocketman recebeu 21 prêmios, fora outras 59 indicações. Entre os prêmios, faturou o Oscar e o Globo de Ouro de melhor canção para “I’m gonna love me again”, especialmente composta para o filme por Elton John & Bernie Taupin, e o Globo de Ouro de melhor ator em musical ou comédia para Taron Egerton.
Uma prova de que biografia autorizada pode ser boa
Há uma outra característica do filme que é muito, mas muito impressionante. Rocketman comprova de forma incontestável que uma obra biográfica com o apoio do biografado pode ser franca, honesta, reveladora, confessional. Elton John é um dos produtores executivos do filme, e, como já foi dito, escreveu especialmente para ele, com seu parceiro de décadas, uma canção.
E o filme mostra que o jovem Reginald Kenneth Dwight teve uma infância infeliz, com um pai absolutamente frio e distante e uma mãe que dava a ele pouquíssima importância; que se enfiou de cabeça na cachaça e em tudo quanto é tipo de droga que passou na sua frente; que tentou se matar. Que cometeu muita besteira na vida.
– “Meu nome é Elton Hercules John”, ele diz, na primeira frase que se ouve no filme. “E eu sou um alcoólatra. E viciado em cocaína. E viciado em sexo. E bulímico. E também um comprador compulsivo, com problemas com maconha, drogas de farmácia e capacidade de lidar com a raiva.”
Bem mais adiante na narrativa, quando o filme já passou da metade, Elton John toma coragem e, de um telefone público de Londres, perto do Royal Albert Hall, onde iria se apresentar em seguida, fala com a mãe:
– “Sou… homossexual. Veado. Bicha.”
Há um longo silêncio. O cantor já famosérrimo, admirado mundo afora, pede para a mãe: – “Diga alguma coisa!”
E ela: – “Ah, pelo amor de Deus, eu sei disso. Sei disso faz anos.”
Ele: – “Você não se importa?”
A mãe: – “Francamente, não me importa, mas acho que você deveria guardar esse tipo de coisa para você. Espero que você compreenda que você está escolhendo uma vida solitária para sempre. Você jamais vai ser amado de forma apropriada.”
Não consegui deixar de pensar em Roberto Carlos e toda a sua luta – tão tola, tão boba, tão desgastante para sua imagem – para censurar a biografia honesta que Paulo César de Araújo escreveu. Meu Deus do céu e também da terra, o que o livro Roberto Carlos em Detalhes revelava de horroroso da vida do grande cantor e compositor que ele queria que permanecesse em segredo? Que sofreu um acidente quando jovem e teve parte da perna amputada? Ahhh…
Toda aquela discussão sobre biografia autorizada ou não, o que pode, o que não pode… Que perda de tempo, de energia…
Rocketman é uma maravilhosa prova de que biografia autorizada não precisa esconder segredos. De que pode, sim, perfeitamente, haver biografia autorizada que vai fundo nas partes mais duras, mais cruéis da vida do biografado.
Uma sequência mezzo Fellini, mezzo Bob Fosse
“O único jeito de contar sua história é viver sua fantasia.”
“Uma fantasia musical sobre a fantástica história humana dos anos fundamentais de Elton John.”
Essas são definições de Rocketman feitas pelo próprio estúdio que produziu e distribuiu o filme, a Paramount Pictures. A primeira frase é o que em inglês se diz tagline – a frase promocional, a frase escolhida pelo marketing da produtora para vender seu peixe. A segunda é como a Paramount sintetiza o filme, a sinopse que ela distribuiu para a imprensa.
A ênfase na idéia de fantasia tem todo sentido. O roteiro de Lee Hall trata os fatos reais da vida de Elton John de uma forma feérica, onírica. Toda a abertura do filme é assim. Vemos Taron Egerton-Elton John caminhando – quase dançando – num longo corredor, vestido como se estivesse desfilando na Marquês de Sapucaí, cheio de adereços – gigantescos óculos com as lentes em formato de coração, um chapéu com imensos chifres de boi. O Elton John típico de seus shows, vestido da forma mais espalhafatosa que um Clóvis Bornay conseguiria imaginar para um daqueles concursos de fantasia nos carnavais do Rio de Janeiro dos anos 60.
Ele entra numa ampla sala onde um grupo de pessoas sérias forma uma roda, como nas reuniões dos Alcoólicos Anônimos, dos Narcóticos Anônimos. Senta-se a uma cadeira. O contraste entre aquela figura toda fantasiada no meio de pessoas graves, sérias, é chocante.
Elton: – “Quanto tempo vai levar?”
Um terapeuta: – “Isso é por sua conta.”
E é aí que Elton John diz aquela frase que citei acima: – “Meu nome é Elton Hercules John. E eu sou um alcoólatra. E viciado em cocaína. E viciado em sexo. E bulímico. E também um comprador compulsivo, com problemas com maconha, drogas de farmácia e capacidade de lidar com a raiva.”
O terapeuta pergunta: – “Por que você está aqui agora?” E a resposta é cheia de ironia, de um jeito que parece que aquele ali não vai topar o programa de limpeza: – “Bom, meu fornecedor estava fora da cidade. Pensei que poderia ser uma boa alternativa.”
Ele faz uma pausa, e aí admite: – “Estou aqui porque quero melhorar.”
O terapeuta pergunta como ele era quando criança.
O espectador percebe, sabe, é claro, que vai haver então um flashback, que vamos voltar à época em que Reginald Dwight, Reggie, como era chamado na família, era criança. É um esquema bastante usado, que eu chamo de narrativa-laço: começa num ponto importante da história, aí volta no tempo, e vem vindo, vem vindo até os dias daquele momento chave.
E é isso mesmo que acontece – mas o roteirista Lee Hall faz a volta ao passado acontecer com um toque de fantasia, de fantástico, feérico, onírico: vemos Reggie garoto, sim, interpretado por Kit Connor (na primeira foto deste post), mas numa sequência que não tem absolutamente nada de realista. Vemos Reggie em uma rua de bairro classe média de cidade inglesa – como se estivesse no meio de um número musical, no meio de um show da Broadway, rodeado por todas as pessoas que seriam as mais importantes em sua vida.
Um pouco de Fellini com um pouco de Bob Fosse.
A sequência é brilhante.
Uma casa em que faltava o principal: afeto
O filme realça bem que o problema da família do garoto Reggie não era falta de dinheiro. A família era de classe média, morava em uma casa boa, confortável, que tinha até um bom piano, o instrumento que o menino dominaria desde cedo. A questão era falta de amor, de afeto. O pai, Stanley (Steven Mackintosh), é retratado como um sujeito até grosseiro na relação com o filho. Há um momento em que Reggie pede a ele um abraço – e leva de volta uma frase seca, muito mais violenta que um tapa na cara: – “Não seja molenga”.
A única pessoa da família que trata com afeto o pequeno Reggie é a avó materna, Ivy, interpretada ela simpática Gemma Jones.
A mãe, Sheila, é mostrada como uma pessoa que simplesmente não dá a mínima atenção ao filho que pariu. É uma daquelas pessoas que parecem que não estão aí, sempre alheias, com a cabeça muito longe, no mundo da lua.
Sheila é interpretada pela maravilhosa Bryce Dallas Howard, na foto acima – e, diabo, não a reconheci em momento algum ao longo de todo o filme. Talvez porque esteja com o cabelo negro, completamente diferente do seu cabelo natural.
Ótima atriz, ela interpreta Sheila de tal modo que o espectador não sinta qualquer simpatia pela personagem – e sinta, isso sim, pena daquele garoto não amado pelos pais.
Com aquele pai, aquela mãe, não daria para ninguém ter uma personalidade tranquila. Seria preciso muita terapia, cinco sessões por semana, durante muitos anos, para compensar tanta falta de afeto.
No caso de Reggie, havia o dom.
O filme mostra que, desde menino, Reggie Dwight tinha o dom da música. O ouvido perfeito – e uma capacidade incrível, absurda, maluca, fora de série, fora de jeito, de criar melodias.
Aí, além do dom da música, Reggie Dwight foi abençoado com um parceiro que o completou: Bernie Taupin, que ele conheceu um tanto por acaso, tinha para escrever poemas a mesma facilidade com que ele tinha para criar melodias.
Bernie Taupin é interpretado por Jamie Bell (na foto abaixo). O ator que, aos 14 anos de idade (ele é de 1986, do interior da Inglaterra), interpretou Billy Elliott, o garotinho working class que queria ser bailarino no maravilhoso filme de Stephen Daldry de 2000.
Um encontro feliz, uma parceria perfeita
Rocketman mostra as primeiras tentativas de Reggie Dwight de se tornar músico, seu encontro com Bernie Taupin, as primeiras composições, e depois o sucesso e a ascensão meteórica na cena musical dos anos 70, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Vai fundo no seu envolvimento com drogas, na paixão pelo americano John Reid (o papel de Richard Madden), que se tornaria seu empresário.
O relacionamento entre Reggie, rebatizado de Elton John, com Bernie Taupin é, naturalmente, um dos pontos mais importantes da narrativa. O filme sugere, suavemente – não de maneira muito óbvia, não de forma explícita –, que o jovem Elton John gostaria de ter tido um caso com Bernie Taupin. Não rolou – Bernie é hetero. A amizade e a parceria se desenrolaram por décadas sem brigas, discussões, desavenças. Houve apenas uma ocasião em que se distanciaram – mas depois voltaram às boas.
A parceria Elton John-Bernie Taupin sempre me impressionou, por ser tão duradoura e tão prolixa, e o filme nos faz ficar pensando nela. É uma parceria perfeita – é a coisa de um nasceu para o outro. Não tem absolutamente nada a ver com Lennon-McCartney – claro que a parceria Lennon-McCartney é mencionada no filme. John e Paul, pelo que se sabe, compuseram juntos bem lá no início – e fizeram o tal acordo de que tudo que compusessem seria assinado pela dupla. Na imensa maioria das vezes não há de fato parceria. Desde Rubber Soul (dezembro de 1965), pelo menos, fica muito claro que havia canções de Paul McCartney e canções de John Lennon – apenas a assinatura os unia.
A parceria Elton John-Bernie Taupin é de fato uma parceria, da forma tradicional: um faz a letra, o outro faz a música. Um não se mete no trabalho do outro. Sabe-se que muitas das canções (e isso é mostrado no filme) não foram feitas pelos dois em conjunto: Bernie mandava letras para Elton, e este então criava as músicas.
É impressionante. É algo assim George e Ira Gershwin: almas irmãs, uma parceria perfeita, que atravessa décadas e décadas.
Fantástico que eles tenham se reunido para criar uma canção para o filme. Uma delícia vê-los juntos, já velhos, na festa de entrega dos Globos de Ouro, em janeiro de 2020.
Que encontro feliz, meu Deus do céu e também da terra.
Ao longo dos 121 minutos de Rocketman, ouvimos uma seleção das melhores e mais marcantes canções de Elton John-Bernie Taupin, na voz competente de Taron Egerton. Das minhas preferidas, só faltou “Candle in the Wind”, a canção feita para Marilyn Monroe e que Bernie Taupin reescreveu para homenagear a princesa Diana, que era amiga de Elton John.
Livre do vício há quase três décadas, com casamento estável
Como o filme mostra de maneira fantasiosa, feérica, Elton John procurou de fato uma clínica de desintoxicação, rehab, como se usa em inglês, no início dos anos 90. Seguramente não entrou numa sala cheia de pessoas sérias, sisudas, como se estivesse acabando de sair do desfile das escolas de samba. Mas o fato – e isso é sabido por qualquer pessoa que goste de Elton John – é que ele conseguiu.
Os letreiros finais, que, como na imensa maioria dos filmes sobre histórias reais, relatam o que aconteceu com os personagens depois dos eventos mostrados na narrativa, contam que Elton John está limpo há quase 3 décadas. E os realizadores fizeram questão de colocar lá, com todas as letras, que, ao contrário do que a mãe incapaz de ter afeto vaticinou, ele encontrou um relacionamento direito, apropriado, duradouro, estável. Está casado, tem filhos – também há décadas.
Elton John é um exemplo de que dá para sair do vício.
E sua história foi contada num filme que tem a qualidade de suas grandes canções.
Anotação em fevereiro de 2020
Rocketman
De Dexter Fletcher, Inglaterra-EUA-Canadá, 2019
Com Taron Egerton (Elton John)
e Jamie Bell (Bernie Taupin), Richard Madden (John Reid), Bryce Dallas Howard (Sheila, a mãe), Gemma Jones (Ivy, a avó), Steven Mackintosh (Stanley, o pai), Tom Bennett (Fred, o novo marido da mãe), Matthew Illesley (Reggie Dwight garotinho novo), Kit Connor (Reggie Dwight garoto), Charlie Rowe (Ray Williams), Peter O’Hanlon (Bobby), Ross Farrelly (Cyril), Evan Walsh (Elton Dean), Tate Donovan (Doug Weston), Sharmina Harrower (Heather), Ophelia Lovibond (Arabella), Celinde Schoenmaker (Renate), Harriet Walter (Helen Piena), Stephen Graham (Dick James), Sharon D. Clarke (psicólogo)
Roteiro Lee Hall
Fotografia George Richmond
Música Matthew Margeson
Montagem Chris Dickens
Casting Piopa Ailion (dança), Jo Hawes (crianças) e Reg Poerscout-Edgerton
Produção Paramount Pictures, New Republic Pictures. Marv Films,
Rocket Pictures.
Cor, 121 min (2h01)
***1/2
Taron foi a ausência mais sentida no Oscar, nem indicado como Melhor Ator e nem se apresentando com Sir Elton.