Friedrich Wilhelm Murnau lançou O Castelo Vogelöd em 1921, apenas um ano antes de Nosferatu, a primeira de suas obras-primas, que garantiu a ele, com todos os direitos, o reconhecimento como um dos melhores cineastas da História.
Ao ver o filme agora, quase 100 anos depois do lançamento, a sensação é de que Nosferatu turvou a forma com que O Castelo Vogelöd foi percebido no seu tempo – e mesmo depois dele.
O clima do terror, do extraordinário, do não-humano, do sobrenatural de Nosferatu pregou em O Castelo Vogelöd.
O filme foi lançado nos Estados Unidos com o título de The Haunted Castle, o castelo assombrado. Os cartazes são típicos de um filme de horror.
No excelente site AllMovie, Hal Erickson escreveu: “O alemão The Haunted Castle (Schloss Vogeloed) tem sido descrito como o ‘aquecimento’ do diretor F.W. Murnau para seu subsequente Nosferatu. Nesse ponto de sua carreira, Murnau estava mais interessado nos efeitos do que na história ou nas caracterizações, mas aqueles efeitos estavam entre os melhores dentro das fronteiras da ‘Escola Caligari” da Alemanha.”
Na realidade, O Castelo Vogelöd não tem absolutamente nada a ver com terror, vampiro, assombração, não-humano, sobrenatural. Nada, nadica, nadinda. É um drama que não poderia ser mais humano, concreto, deste nosso mundo aqui; um drama que envolve um assassinato cuja autoria não se conseguiu estabelecer – até aqueles momentos mostrados na tela.
Ao final, os personagens da história – assim como os espectadores – ficarão sabendo quem foi que matou. Exatamente como acontece, por exemplo, nas dezenas e dezenas de livros de Agatha Christie.
Hum… Volto mais adiante ao “nada, nadica, nadinda”.
Um homem suspeito de ter matado o irmão
Pode ser que Murnau, nesse seu “aquecimento” para filmar – pela primeira vez – a história do conde Drácula, estivesse, como diz o crítico do AllMovie, mais interessado nos efeitos que na história, mas a verdade é que ele conta muito bem a história do Castelo Vogelöd. Nos primeiros oito minutos dos cerca de 80 do filme, ele expõe com clareza os elementos básicos da trama.
O aristocrata von Vogelschrey (o papel de Arnold Korff) reuniu no castelo um grupo de uns oito a dez convidados para caçadas em suas terras, em um mês de outubro. Chuvas fortes, no entanto, impediam que ele e seus convidados saíssem para caçar. Passavam assim o tempo ocioso reunidos num dos muitos salões do castelo, fumando, lendo jornais, jogando cartas, conversando.
O mordomo anuncia a chegada do conde Oetsch (Lothar Mehnert).
Espanto generalizado: o conde Johann Oetsch não havia sido convidado.
Um dos hóspedes, um juiz aposentado (o papel de Hermann Vallentin), conta para os outros – e também para o espectador, é claro – que três anos antes o irmão do conde Oetsch, o também conde Peter Paul Oetsch, havia sido assassinado. – “Dizem que ele matou o irmão, há três anos, de forma traiçoeira. Tornou-se o único herdeiro das propriedades da família.”
Há, entre os convivas, um homem medroso, que um letreiro nos aponta. À simples menção do assassinato, o homem medroso (interpretado por Julius Falkenstein) demonstra grande agitação.
– “Todos os que acompanharam o julgamento têm certeza de que ele é o assassino”, prossegue o juiz aposentado.
Ele não diz, mas vê-se que o conde Oetsch não foi condenado pela morte do irmão. Tanto que está solto – e, naquele exato instante, está numa sala ao lado, conversando com von Vogelschrey, o dono do castelo.
Assim que se viu diante de von Vogelschrey, o conde Oetsch lançou na cara do anfitrião: – “Esqueceu de me convidar?” Foi então levado pelo anfitrião para uma outra sala, enquanto, no grande salão, os convidados conversaram sobre o caso.
– “Volto a repetir – diz von Vogelschrey – que espero receber esta noite a viúva do seu irmão.”
O conde Oetsch – um homem grande, alto, espadaúdo, feio que nem o Quasímodo de Victor Hugo, feio como a fome, com uma danada de uma cara de um homem que poderia mesmo ter assassinado o irmão – dá de ombros. Literalmente dá de ombros. Dá uma mexida nos ombrões largos. “Tô nem aí”, dizem os ombrões largos.
Corta, e estamos de novo no salão grande. Um dos convidados diz para os outros – mas principalmente para o espectador: – “A viúva do assassinado? Casou-se de novo, faz um ano, com o barão Safferstätt.”
Corta, e estamos de novo na sala menor. O dono da casa tenta fazer o conde compreender que ele não é bem-vindo naquele momento. Na verdade, von Vogelschrey é absolutamente explícito:
– “Gostaria que nos evitasse a situação de sermos testemunhas de seu encontro com a baronesa, senhor conde.”
O conde abre os braços. Desta vez são os braços dele que dizem “Tô nem aí”.
A viúva resolve enfrentar a situação difícil
Estamos então com oito minutos de filme. A situação está posta. Os elementos do drama estão todos colocados para o espectador.
Na sequência seguinte, a mulher de von Vogelschrey (o papel de Lulu Kyser-Korff) conversa, nervosa, com o marido. Sua amiga, a baronesa, a viúva do conde assassinado, está para chegar com o marido – e o cunhado, o suspeito do crime, está no castelo! Como eles vão fazer?
Não há o que possa ser feito. A situação horrorosa está posta, e não há como impedir que o encontro terrível aconteça.
Ao chegar com o marido, a baronesa é carinhosamente recebida pela amiga. Vê-se que são de fato muito amigas. Mas, ao saber da presença do cunhado, a baronesa tem intenção de se retirar imediatamente. Só muda de idéia quando Frau von Vogelschrey conta para a amiga que o padre Faramund está para chegar ali ao castelo a qualquer momento. O padre Faramund era parente e amigo do falecido conde Peter Paul Oetsch e sua mulher, inspirava grande confiança nela. Estava havia anos em Roma.
Diante da possibilidade de rever o amigo e confessor, a baronesa decide ficar.
Teremos drama pela frente – e a revelação de segredos.
Aliás, o filme expressa isso no subtítulo original. O título completo é Schloß Vogeloed: Die Enthüllung Eines Geheimnisses, ou A Revelação de um Segredo.
O barão Safferstätt é interpretado por Paul Bildt. A baronesa, a viúva do assassinado, por Olga Chekova, Olga Tschechowa na grafia alemã. Essa atriz mereceria ter sua vida contada numa série de várias temporadas.
Elementos bem maduros na linguagem de Murnau
É mais do que claro, é óbvio ululante que, para as platéias de hoje em dia, há dificuldade em ver filmes de 100 anos atrás, os filmes da época do cinema mudo. O cinema tinha apenas 26 anos de idade quando F.W. Murnau fez este O Castelo Vogelöd, em 1921 (adotando 1895 como o ano do nascimento da nova arte). Seriam necessários mais seis anos para que o cinema aprendesse a falar, a partir de 1927.
É óbvio ululante que o espectador tem que colocar as coisas sob perspectiva, tem que contextualizar.
A forma de atuação dos atores era completamente diferente. A atuação era exagerada, o over do over do over – assim como a maquiagem de seus rostos. Um jovem desacostumado com o era muda que visse O Castelo Vogelöd poderia perfeitamente achar os atores mais próximos do teatro ou mesmo do circo do que do cinema.
Ao mesmo tempo, é fantástico como há elementos fascinantemente maduros na linguagem usada por F.W. Murnau. Há dois elementos, em especial, que são incríveis, de fazer babar: a simultaneidade de ações e o uso do flashback.
Nos primeiros anos, as platéias não estavam acostumadas a ver mais de uma ação sendo mostrada ao mesmo tempo. As ações paralelas, simultâneas, eram uma novidade absoluta, uma invenção do cinema. O americano D.W. Griffith foi um mestre, um gigante, em estabelecer essa coisa de ir mostrando fatos, eventos, ações diferentes simultaneamente.
Murnau usa isso maravilhosamente naqueles minutos iniciais que tentei descrever. Ora o espectador está acompanhando as conversas dos muitos convidados no grande salão de estar do castelo, ora está vendo a conversa íntima de von Vogelschrey com o recém chegado – e indesejado – conde Oetsch.
Ao longo de todo o filme haverá outros exemplos de ações paralelas, simultâneas. Uma maravilha.
E o flashback, meu!
Era 1921, o cinema tinha apenas 26 anos de idade, não sabia falar – e Murnau já usava com a mais absoluta tranquilidade o flashback.
Em muitos filmes de Hollywood dos anos 40, até mesmo dos 50, os diretores e montadores ainda usavam alguns recursos para deixar claro para os espectadores que – epa! atenção! aí vem um corte no tempo e vocês vão ver algo que ocorreu no passado! Na passagem da sequência dos dias de hoje para o flashback havia uma espécie de ondulação na imagem – que era para não deixar nem o menos atento espectador perceber que aí vinha o flashback.
Outro dia vimos uma série recentíssima, de 2019, Virgin River, produção bem cuidada, que tinha uma iluminação diferente nas tomadas de flashback, para não deixar dúvidas na cabeça do espectador – as lembranças da protagonista, a bela enfermeira Melinda Monroe, são mostradas com um certo excesso de luminosidade, para diferenciar das sequências passadas no presente.
F.W. Murnau não usa artifício nenhum para mostrar fatos do passado.
Vemos a então condessa conversando com seu marido, o conde Peter Paul Oetsch. Voltamos no tempo, para mais de 3 anos antes do tempo presente, para a época em que o conde ainda estava vivo. Assistimos às conversas deles.
Flashback. Na boa. Na maior. Sem artifício algum para identificar que aquilo é flashback. Uma maravilha.
O conde havia se desinteressado pelas coisas materiais
Nos flashbacks, há elementos intrigantes, estranhos – algo que a gente não imaginaria ver num filme feito há quase exatos 100 anos. E feito na Alemanha que pouco antes havia saído derrotada, humilhada de uma terrível guerra, A Grande Guerra, a Primeira Guerra Mundial.
O conde Oetsch, o que viria a ser assassinado, muita gente supôs que pelo seu próprio irmão, de repente começou a ler livros sobre temas espirituais. Um dia virou-se para a mulher e falou: – “Acredite em mim, minha criança, a verdadeira felicidade se encontra na renúncia do mundano”.
Passou então a não dar mais importância para as coisas materiais, as coisas mundanas. Planejava se livrar de todas as suas propriedades, fazer com ela caridade, ajudar os pobres…
Mais ainda – e de fato é fantástico ver isso colocado quase com todas as letras em um filme de 1921: o desinteresse do conde pelas coisas mundanas incluiu essa coisa tão mundana que é o sexo.
A condessa não gostou nada dessa história.
Em um sonho, aparece um fantasma
Lá acima, afirmei peremptoriamente que O Castelo Vogelöd não tem absolutamente nada a ver com terror, vampiro, assombração, não-humano, sobrenatural. Nada, nadica, nadinda.
Bem, talvez tenha sido peremptório demais. É preciso admitir que há, de fato, um momento, um breve momento em que surge algo parecido com terror. É um sonho que o cavaleiro medroso tem. Um letreiro, no entanto, nos avisa claramente: “Um sonho” – e vemos o cavaleiro que já sabíamos que era medroso deitado em um dos muitíssimos aposentos do castelo. E, da janela, vem uma criatura de outro mundo pegá-lo – um fantasma, um monstro, um ser não humano. O cavaleiro medroso acorda assustado, amedrontado – e no dia seguinte vai embora. Estar naquele castelo ao mesmo tempo em que está lá um homem suspeito de haver assassinado seu próprio irmão com um tiro é demais para ele.
Agora, convenhamos: esse único elemento aí, um sonho de um sujeito que nos é apontado de cara como medroso, não justificaria que o filme tivesse o título The Haunted Castle, o castelo assombrado, com aquele tipo de cartaz que os americanos fizeram, não é mesmo?
Uma atriz de vida fantástica, que daria uma série
Dá muita vontade de procurar mais e mais informações sobre Olga Tschechowa, a atriz que faz a viúva. Meu, que vida parece ter tido essa mulher!
Houve suspeitas de que foi bem próxima de Adolf Hitler e de Joseph Goebbels. Houve também suspeitas de que trabalhou como espiã soviética, que foi pressionada a se aproximar de líderes nazistas por Lavrentiy Beria e pelo próprio Josef Stálin.
Teve quatro maridos de papel passado – um deles sobrinho do escritor Anton Tchekhov, de quem herdou o nome –, e um número difícil de calcular de amantes, segundo consta. Fez um total de 138 filmes, a imensa maioria, claro, como atriz, mas alguns também como diretora e produtora. Entre os grandes realizadores que a dirigiram está, além de F.W. Murnau, Alfred Hitchcock. Ela foi a atriz principal de Mary, filme que o mestre dirigiu em 1931.
Nasceu Olga Knipper, em 1897, no Império Russo, em localidade que hoje pertence à Armênia. Em Moscou, em 1914, na flor dos 17 anos, conheceu o ator Mikhail Tchekhov, o sobrinho de Anton Tchekhov. Casaram-se, tiveram uma filha, também chamada Olga – que viria a ser atriz, com o nome de Ada Tschechowa – e se separaram em 1917, o ano da Revolução Comunista. Foi na então nascente União das Repúblicas Socialistas Soviéticas que fez seus primeiros três filmes.
Conseguiu uma autorização para viajar para o estrangeiro, e foi para Viena e em seguida Berlim, onde chegou em 1920 e no mesmo ano se casou com um Frederick Yaroshi. A união durou menos ainda que a primeira. Em 1921, o ano de O Castelo Vogelöd, já estava divorciada. Este foi seu primeiro filme na Alemanha. A mulher não era apenas rápida no gatilho em tudo que fazia: tinha também estrela.
Um dia ainda escrevo mais sobre essa fantástica Olga Tschechowa/Chekhova.
Restauração com a ajuda da Cinemateca Brasileira
Há um detalhinho sensacional, fantástico, na história do filme O Castelo Vogelöd – a história do filme, da produção, da existência do filme. Ele passou por um processo cuidadoso de restauração com apoio da Fundação Friedrich Wilhelm Murnau e hoje pode ser visto com excelente qualidade graças, em parte… à Cinemateca Brasileira, de São Paulo!
A cópia restaurada traz a seguinte explicação, antes do início do filme: “A restauração foi feita em 2002 por Luciano Berriatúa e Camille Blat-Wellens, com apoio da Friedrich Wilhelm Murnau Stiftung, em Wiesbaden. A base é um negativo da Bundesarchiv-Filmarchiv, em Berlim, e uma cópia em nitrato da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Os intertítulos que faltavam foram reconstituídos com a ajuda do roteiro e de uma lista de títulos da Decla-Bioscop que foi preservada. Utilizamos a apresentação original para os novos intertítulos.”
Ao final, há de novo a menção à Cinemateca Brasileira. Um letreiro reitera: “Material Bundesarchiv-Filmarchiv, Berlim, Cinemateca Brasileira, São Paulo”.
É sensacional!
Em 2005, o filme, restaurado, recebeu a trilha sonora composta por Neil Brant – um acompanhamento ao piano, um tanto como era feito ao vivo nos grandes cinemas na época do cinema mudo.
É essa cópia restaurada com o apoio da Fundação Friedrich Wilhelm Murnau – e utilizando uma versão existente na Cinemateca Brasileira – que está disponível na caixa de DVDs Expressionismo Alemão, lançada pela empresa M.D.V.R., com o título de Obras Primas. Essa empresa entrou ali por 2018 no nicho da edição de DVDs com filmes clássicos, importantes e/ou raros, que antes era exclusividade, no Brasil, da Versátil Home Video.
Anotação em dezembro de 2019
O Castelo Vogelöd/Schloß Vogeloed
De F. W. Murnau, Alemanha, 1921
Com Arnold Korff (von Vogelschrey, o senhor de Vogeloed), Lulu Kyser-Korff (Centa V. Vogelschrey, a mulher dele), Olga Tschechowa, ou Olga Chekova (baronesa Safferstätt), Lothar Mehnert (conde Johann Oetsch, o suspeito), Paul Hartmann (conde Peter Paul Oetsch, o primeiro marido da baronesa), Paul Bildt (barão Safferstätt), Victor Blütner (padre Faramund),
Hermann Vallentin (o juiz aposentado), Julius Falkenstein (o cavaleiro medroso), Robert Leffler (o mordomo), Walter Kurt Kuhle (um criado)
Baseado no romance de Rudolf Stratz
Adaptação Carl Mayer
Fotografia László Schäffer e Fritz Arno Wagner
Música (criada em 2005) Neil Brant
Produção Erich Pommer. DVD M.D.V.R., Obras-Primas.
P&B, cerca de 80 min (1h20)
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Título nos EUA: The Haunted Castle. Na França: La Découverte d’un Secret.
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