Lost Girls, produção do cinema independente americano de 2020, deixa um travo duro, amargo, ruim, na garganta do espectador. Conta uma recente e triste, tristíssima história real, escancarando que, em pleno século XXI , em região privilegiada do país mais rico do mundo, a polícia falha – e falha brutalmente, pavorosamente.
E falha quando as vítimas são pessoas enjeitadas pelo Sonho Americano
O filme começa com uma sequência que choca pelo paradoxo: enquanto ouvimos uma voz suave, cantando “Beautiful dreamer”, uma belíssima canção – um som doce, gostoso –, o que vemos é brutal: uma jovem fugindo, apavorada, de noite, pedindo socorro, enquanto as luzes de um carro a iluminam. Surge na tela o título do filme, Lost Girls, garotas perdidas, e, em seguida, a frase pesada: “Un unsolved American mystery”, um mistério americano não solucionado, não desvendado.
Na sequência seguinte, vemos uma mulher com um daqueles capacetes usados por trabalhadores em obras. Ela entra no que deve ser o escritório da empresa, vê uma folha pregada na parede, com a escala de trabalho, e reclama para o superior que precisa trabalhar mais horas, e havia sido escalada para apenas três dias naquela semana.
A mulher – veremos logo – se chama Mari Gilbert. É a protagonista da história, o papel de Amy Ryan, 38 prêmios e outras 25 indicações, inclusive ao Oscar e ao Globo de Ouro na categoria de melhor atriz coadjuvante por Medo da Verdade/Gone Baby Gone (2007).
Um letreiro informa que estamos em Ellenville, Estado de Nova York, em 2010.
Nessa pequena cidade, Mari cria sozinha suas duas filhas mais novas, Shere, uma adolescente aí de uns 15, 16 anos anos, e Sarra, que deve ter aí uns 12, 13. Veremos que Shere (o papel de Thomasin McKenzie, na segunda foto abaixo, jovem atriz que demonstra incrível talento) é uma garota inteligente, sensível, ponderada, de bom senso. Uma exceção naquela família.
Sarra (Oona Laurence) é bastante problemática. Logo no início da narrativa, Mari é chamada à escola da caçula, que é suspensa por ter botado fogo no papel higiênico do banheiro. Ao longo do filme, veremos que Sarra tem graves problemas psiquiátricos.
Mari recebe um telefonema de Shannan, a filha mais velha, que está com 20, 21 anos, e mora um pouco distante da mãe e das irmãs menores, em Jersey City. Shannan diz que irá jantar no dia seguinte na casa da mãe, e Mari fica encantada com a possibilidade. À noite, em casa, põe para tocar uma fita cassete de 1999, 11 anos antes, portanto – é um show de talentos em que Shannan, então garotinha de uns 10 anos, canta aquela mesma canção suave que abre a narrativa, “Beautiful dreamer”, composta por volta de 1860 por Stephen Foster e gravada por dezenas de artistas, inclusive Bing Crosby.
No dia seguinte, Shannan não aparece para jantar.
Shere liga para ela, deixa mensagem no celular; diz que a mãe ficou chateada por ela não ter vindo nem avisado nada, pede que ela ligue para a mãe e peça desculpas.
Ninguém mais verá Shannan em vida. Depois do telefonema para a mãe marcando o jantar para a noite seguinte, a jovem desaparece.
É o começo do filme – o começo de uma história que vai ficando cada vez mais trágica.
Um jornalista, uma premiada diretora de documentários
A história não caiu no esquecimento graças ao trabalho investigativo de um jornalista chamado Robert Kolker. Ele teve reportagens publicadas por grandes órgãos de imprensa – The New York Times Magazine, New York Magazine, Wired, GQ. Em 2013, três anos após o desaparecimento de Shannan Gilbert, ele lançou o livro Lost Girls: An Unsolved American Mystery.
O livro é a base deste filme; o roteiro foi escrito por Michael Werwie, e a direção é de Liz Garbus, uma mulher que, ao que tudo indica, é uma daquelas pessoas especiais, a quem se deve prestar atenção.
Nascida em 1970 e criada em Nova York, é filha de um advogado especializado na área de direitos civis, Martin Garbus, e uma escritora, terapeuta e assistente social, Ruth Meitin Garbus. Começou a carreira de documentarista aos 28 anos de idade, em 1998, dividindo a direção com dois colegas, Wilbert Rideau e Jonathan Stack. O filme, The Farm: Angola, USA, sobre o dia a dia de presidiários, teve uma indicação ao Oscar de melhor documentário de longa-metragem.
Liz Garbus voltou a ter um filme seu indicado ao Oscar na mesma categoria – What Happened, Miss Simone?, de 2015, sobre a vida da cantora Nina Simone.
Este Lost Girls é o 31º filme que ela dirige – e o primeiro com atores, não documentário.
Como sua formação toda é de documentarista, seu primeiro filme não documentário é a encenação de uma história real.
E ela o encenou de forma límpida, escorreita, madura, correta. Não há frescuras, invencionices, fogos de artifício. É uma narrativa simples, direta.
A única exceção, creio, é aquele efeito chocante da primeira sequência, da mistura paradoxal de uma canção suave com imagens dramáticas.
“Uma puta que sumiu – quem se importa?”
Nada, absolutamente nada parece ter sido róseo na vida dessa Mari Gilbert, que Liz Garbus resolveu contar em seu primeiro filme com atores. Muito antes ao contrário. Mari Gilbert é daqueles exemplos absolutamente trágicos de pessoas que não foram abençoadas pelo Sonho Americano.
Mari – é o que o filme vai mostrando – escondia das filhas mais novas que a primogênita Shannan era uma prostituta.
Shannan trabalhava com um grupo de amigas, atendendo através de uma página na internet. Pelo que o filme mostra, não era uma puta pobre, de rua – nem também uma prostituta de luxo. Era uma “sex worker” – a expressão politicamente correta usada algumas vezes no filme – de classe média. Usava os serviços de um motorista, e atendia a chamadas de clientes bem de vida.
A última chamada que ela atendeu antes de desaparecer foi em um condomínio fechado de Long Island, a Leste do Brooklyn, New York City, a capital do mundo.
Antes de desaparecer na região do condomínio fechado, enquanto fugia apavorada – seguramente de algum agressor –, Shannan havia ligado para a emergência e pedido socorro. Mari conseguiu levantar junto da operadora que a chamada havia sido feita, e, com isso, passou a pressionar a polícia do município em que fica o condomínio.
Vai ficar absolutamente claro que a polícia fez um péssimo trabalho, o tempo todo. Demorou demais a atender ao chamado de socorro feito pela moça. E, no local, tratou o caso com absoluta displicência.
Alguém da polícia uma hora lá fala uma frase do tipo “Ah, uma puta que sumiu – quem se importa?”
O comissário de polícia do lugar, Richard Dormer (o papel do bom veterano Gabriel Byrne) é mostrado no filme não propriamente como um mau policial, incompetente, preguiçoso ou corrupto, mas como um homem cansado, desmotivado. Que até tenta fazer uma investigação séria, de tanto que Mari Gilbert o pressiona, enche o saco. Mas os esforços vêm tarde demais. No passado, os policiais do lugar haviam sido displicentes, preguiçosos, omissos.
Descobre-se que já tinha havido outros desaparecimentos de prostitutas ali na região do condomínio. Pelo menos quatro corpos foram encontrados depois que, por causa da gritaria de Mari Gilbert, e da atenção da imprensa, a polícia foi obrigada a mostrar serviço.
Parentes delas – mães, irmãs – se reúnem para vigílias. Mari não tinha interesse algum em participar daquilo, mas Sherre insiste, faz questão, e Mari acaba conhecendo as parentes de colegas de sua filha prostituída.
A mãe havia dado a filha para adoção
Não era apenas o fato de que Shannan ganhava a vida vendendo o copo que Mari escondia das filhas mais novas.
O outro segredo que ela guardava era muitíssimo, muitíssimo mais trágico: quando Shannan estava com cerca de 11 anos, Mari a havia dado para adoção.
Tinha tido a primeira filha muito jovem. Não teve estrutura para aguentar a barra: Shannan – assim como a irmã mais nova, Sarra, tinha problemas psiquiátricos, era bipolar, tinha crises terríveis. E Mari havia desistido de continuar criando a menina que era linda e, num show de crianças calouras, demonstrava que tinha talento.
Shannan havia passado por diversas famílias adotivas, mas não guardara mágoa da mãe. Visitava a casa da família de tempos e tempos – e até ajudava a mãe com algum dinheiro aqui e ali.
Em momento nenhum do filme há qualquer tipo de menção ao pai ou aos pais das filhas de Mari. Fica óbvio que ela as criou sozinha o tempo todo, e as meninas nunca tiveram um pai presente.
Quando o filme está com 70 dos seus 95 minutos, há um corte no tempo. Um letreiro diz que estamos agora um depois do desaparecimento de Shannan.
Sarra, a filha mais nova, está em tratamento psiquiátrico.
O corpo de Shanann é finalmente encontrado.
Atenção: spoiler. Quem não viu o filme deve parar por aqui
Como em tantos outros filmes baseados em histórias reais, letreiros ao final dão informações sobre acontecimentos posteriores aos mostrados na narrativa. Vemos imagens da Mari Gilbert da vida real.
Que vida trágica a dessa mulher, meu Deus do céu! Que tristeza! Quanta dor!
Repito o aviso do intertítulo: se o eventual leitor ainda não viu o filme, não deveria ler o que dizem os letreiros ao final, e que transcrevo aqui:
“Uma autópsia independente dos restos mortais de Shannan contradisse a teoria da polícia de que ela morreu por exposição aos elementos, indicando que as lesões eram consistentes com estrangulamento. Não havia vestígio de drogas em seu corpo. De 10 a 16 vítimas foram atribuídas ao serial killer de Long Island. Nenhum suspeito foi indiciado.”
Vemos Mari Gilbert numa entrevista à imprensa, em fevereiro de 2016, mostrando uma foto da filha: – “Esta é a minha filha Shannan. Ela não será esquecida. E vamos continuar lutando até que seja feita justiça.”
Nunca foi feita justiça.
E o pior – se é que é possível haver algo ainda pior – vem em seguida:
“Em julho de 2016, Sarra, a filha de Mari, sofreu um episódio psicótico depois de ter suspendido a medicação para esquizofrenia. Mari tentou intervir e teve ferimentos fatais.”
Essa, parece, é uma forma muito suave de relatar a tragédia. Em março de 2020, pouco depois do lançamento do filme – que teve estréia mundial no Sundance Film Festival em janeiro e ficou disponível na Netflix a partir de 13 de março –, reportagem assinada por Hedy Phillips no site Popsugar Celebrity tem este doloroso título: “Lost Girls: a história de Mari Gilbert tem um final ainda mais trágico do que mostra o filme”.
A matéria diz que Sarra fez um aborto aos 14 anos, saiu da escola as 16 e teve um bebê com um namorado mais velho. Relacionou-se com um homem que batia nela. Passou a ter delírios, imaginava que os parentes tinham sido possuídos por demônios. Em julho de 2016, ela esfaqueou a mãe. No julgamento do assassinato, a defesa alegou insanidade, mas ela foi condenada a 25 anos de prisão.
Anotação em março de 2020
Lost Girls – Os Crimes de Long Island/Lost Girls
De Liz Garbus, EUA, 2020
Com Amy Ryan (Mari Gilbert)
e Thomasin McKenzie (Sherre Gilbert, a filha do meio), Gabriel Byrne (Richard Dormer, o comissário de polícia), Lola Kirke (Kim, colega de Shannan), Oona Laurence (Sarra Gilbert, a filha mais nova), Sarah Wisser (Shannan Gilbert, a filha mais velha de Mari, que desaparece), Dean Winters (Dean Bostick), Molly Brown (Missy), Miriam Shor (Lorraine), Ana Reeder (Lynn), Grace Capeless (Amanda), Reed Birney (Peter Hackett, o médico), Kevin Corrigan (Joe Scalise, o inimigo do médico), Jimi Stanton (Church), Matthew F. O’Connor (Joe Brewer), Rosal Colon (Selena Garcia)
Roteiro Michael Werwie
Baseado no livro Lost Girls: An Unsolved American Mystery, de Robert Kolker
Fotografia Igor Martinovic
Música Anne Nikitin
Montagem Camilla Toniolo
Produção Archer Gray, Langley Park Pictures. Distribuição Netflix.
Cor, 95 min (1h35)
**1/2