Não tem para ninguém. Nem para a Phyllis Dietrichson de Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue (1944), nem para a Cora Smith de O Destino Bate à Porta (1946) – nem para nenhuma outra. Embora essas personagens e atrizes citadas sejam muito mais famosas, a Jane Palmer de Lizabeth Scott em Lágrimas Tardias (1949) é a pior femme fatale dos filmes noir.
É impressionante.
Na minha opinião, talvez haja apenas uma outra femme fatale tão má quanto essa Jane Palmer de Lizabeth Scott: a Matty Walker de Kathleen Turner em Corpos Ardentes (1981). Tão má quanto, porque pior não pode haver.
Ainda na primeira metade dos 101 minutos de duração do filme, Jane leva vários tapas na cara do vilão da história, Danny Fuller, interpretado por Dan Duryea, o ator que ficou famoso nos anos 40 e início dos 50 por interpretar vilões que estapeavam mulheres. Mas Jane é muito, muitíssimo pior que o vilão Danny – e ele sabe disso, e demonstra isso. – “Sabe de uma coisa, tigresa? Eu não sabia que existiam donas tão bonitas, inteligentes e duronas como você”, ele diz. E mais tarde vai mais longe: – “Não mude nunca. Acho que não gostaria de você se você tivesse coração”.
A Jane Palmer de Lizabeth Scott é uma femme fatale que não tem coração. No lugar do coração, há um cofre para guardar notas de dólar.
Há um elemento extremamente inquietante no personagem interpretado pela bela Lizabeth Scott, essa atriz que – como escrevi outro dia, sobre outro noir em que ela trabalha – parece ter vindo ao mundo para trabalhar em dramas com clima denso, tenso, pesado: ela é uma dona de casa. Aparentemente, uma dona de casa americana típica: naqueles anos de crescimento econômico logo após o fim da Segunda Guerra, Jane ficava em casa, cuidando do sacrossanto lar, enquanto o marido, Alan (o papel de Arthur Kennedy), ia para o trabalho.
O filme noir, essa invenção do cinema americano sob a influência direta de um grande número de diretores e roteiristas europeus que fugiram do nazismo e se instalaram em Hollywood, tinha essa característica fundamental: ele infiltrava o vírus da inquietação, da dúvida, da insatisfação, das sombras, naquele ambiente colorido e festivo que eram os Estados Unidos da segunda metade dos anos 40, dos baby boomers, da elegia ao American way of life.
– “Ela é uma dona de casa! Ela é a dona de casa americana!”, diz, com ênfase, num curta-metragem sobre Lágrimas Tardias/Too Late for Tears, Eddie Muller, o presidente da Film Noir Foundation. E complementa: – “A dona de casa mais voraz do mundo!”
De repente, uma mala de dinheiro na vida do casal
A mais voraz do mundo. Está certíssimo o presidente da Film Noir Foundation. (Foi essa fundação que patrocinou a recuperação e a restauração de Lágrimas Tardias; falo disso mais adiante.) No curta-metragem sobre o filme – Chance of a Lifetime: The Making of Too Late for Tears – não só Eddie Muller, mas outros três entrevistados – todos eles escritores e historiadores de cinema – realçam essa coisa da maldade extrema da personagem central da história.
A história é de autoria de Roy Huggins; foi publicada em capítulos na revista Saturday Evening Post e depois em forma de livro, e roteirizada para o cinema pelo próprio autor.
Basicamente, esta é a trama:
Por um absoluto acaso, por uma série de circunstâncias, uma maleta com dinheiro é lançada dentro do carro conversível em que viajava o casal Alan e Jane Palmer, numa pequena estrada, à noite. Os dois estavam indo visitar um casal de amigos numa cidade vizinha quando aquele fato inesperado, louco, maluco, acontece. Eles vão examinar a maleta – e ela está cheia de pacotes de notas, notas de US$ 20 e de US$ 50.
Um carro vem se aproximando do deles na estrada pouco movimentada – e então Jane assume o volante, mete o pé no acelerador, corre de volta para a cidade deles. Por sorte, consegue despistar o motorista do carro que os persegue.
Em seu apartamento, o casal examina melhor a bufunfa. Alan calcula que ali pode haver uns US$ 100 mil. Uma fortuna, uma bela fortuna naquela época.
(Mais tarde, bem mais tarde, o sujeito que deveria ter recebido a maleta cheia de dinheiro, o já citado Danny Fuller-Dan Duryea, diz que eram uns US$ 60 mil. O IMDb fez os cálculos: os US$ 60 mil da maleta em 1949 equivaleriam a mais de US$ 610 mil em 2018. Uma fortuna.)
O sentido da vida de Jane é o dinheiro
Dinheiro na mão é vendaval, disse mestre Paulinho da Viola no samba famoso.
Se a Terra fosse feita de ouro, os homens lutariam por um punhado de barro, disse um personagem de um filme de Hollywood ali mais ou menos na época deste Too Late for Tears, creio até que interpretado por Gary Cooper.
O dinheiro não é nosso, temos que entregar para a Polícia, argumenta Alan para a mulher. Alan, segundo diz o presidente da Film Noir Foundation, é o único personagem bom caráter deste filme. (Aí vai um exagero dele. Há pelo menos dois outros bons caracteres no filme – a irmã de Alan, vizinha do casal, Kathy Parker, o papel de Kristine Miller, e um tal Don Blake, interpretado por Don DeFore, que o espectador só fica sabendo quem é na sequência final do filme.)
Mas Alan é de fato um bom caráter, uma boa pessoa, uma boa alma. Diante daquela loucura que acontece na vida deles, de repente aparecer no carro uma maleta cheia de dinheiro, ele de fato quer resistir à tentação de ficar com a fortuna. Sabe que seria errado, sabe que o dinheiro não é dele, sabe que o verdadeiro dono viria atrás deles. Sobretudo, Alan tem a certeza de que para se viver bem não é necessário possuir uma fortuna.
Acontece que Jane é o exato oposto de Alan.
Jane é a voracidade em pessoa. A ganância.
Greed – o título do filme de 1924 de Erich Von Stroheim, no Brasil Ouro e Maldição. Se a Terra fosse feita de ouro, os homens lutariam por um punhado de barro.
Jane é greed em forma de gente, em forma de mulher bonita, femme fatale.
Alguns dias depois que eles receberam aquele ouro e maldição no carro deles, e o dinheiro está guardado, enquanto eles, a pedido dela, dão um tempo para pensar no que fazer, antes que ele faça o que pretende – entregar a maleta à polícia –, há um diálogo impressionante entre marido e mulher, o bom caráter e a ganância em pessoa.
É antológico. Vale por uma imensa coleção de teses de mestrado de sociólogos, antropólogos, o escambau.
Alan: – “Jane, Jane, o que está acontecendo conosco? O dinheiro está lá parado numa maleta velha, e já está nos separando. É um veneno, Jane. Está mudando você. Está mudando a nós dois.”
Jane: – “Gostaria que fosse simples assim, Alan, mas eu não mudei. É o jeito que eu sou. Você tem que me deixar ter aquele dinheiro.”
Alan: – “Não diga isso, Jane.”
Jane: – “Não, Alan, não vou deixar que você simplesmente entregue o dinheiro. Oportunidades destas não acontecem duas vezes. É agora. Eu estava esperando por isso, sonhando com isso a minha vida inteira – desde que eu era criança. E não porque éramos pobres, não pobres de passar fome, pelo menos. Acho que, de uma certa maneira, era muito pior. Éramos pobres de classe média. O tipo de gente que não pode ser igual aos vizinhos bem de vida e morre um pouco a cada dia por causa disso.”
No original, as últimas frases contêm duas expressões idiomáticas do inglês que se perdem na tradução que fiz aí. É assim: “We were white collar poor, middle-class poor. The kind of people who can’t quite keep up with the Joneses and die a little every day because they can’t.”
“White collar” designa gente que trabalha em escritório – classe média média, portanto, diferente de “blue colar”, que é operário, gente de trabalho manual, classe média baixa. E “keep up with the Joneses” tem a seguinte definição no Cambridge Dictionary: “querer sempre possuir os mesmos objetos caros e fazer as mesmas coisas que seus amigos ou vizinhos, porque você está preocupado em não parecer menos importante socialmente do que eles são’.
Meu Deus do céu e também da Terra!
Que espantosa síntese de uma das mais horrorosas chagas da nossa sociedade, da sociedade capitalista, da sociedade de consumo!
“Éramos pobres de classe média. O tipo de gente que não pode ser igual aos vizinhos bem de vida e morre um pouco a cada dia por causa disso.”
A sequência final que o diretor Byron Haskin e o autor e roteirista Roy Huggins criaram para essa mulher horrorosa – ela no meio das notas de dólar que eram o sentido de sua vida – é um absoluto brilho.
O filme não foi sucesso nas bilheterias
Embora tenha recebido elogiosa crítica no New York Times, no seu lançamento, o filme foi um fracasso nas bilheterias, informam os experts entrevistados no documentário sobre o filme. Eddie Muller, da Film Noir Foundation, conta que diretor e roteirista se acusaram mutuamente pelo fracasso comercial do filme. Huggins classificou a direção de “letárgica”, e Haskin replicou dizendo: “Peguei essa história pobre e fiz o melhor que pude com um ótimo elenco”.
Sim, o elenco é mesmo muito bom. Lizabeth Scott tem – segundo a opinião de muita gente – o melhor desempenho de sua carreira. Dan Duryea nada de braçada como o vilão que estapeia a bela loura. E Arthur Kennedy deixa o espectador simpatizando com a figura desse pobre Alan Palmer, um homem bom que se casou com a mulher errada.
– “É impossível imaginar este filme sem Liz Scott e Dan Duryea”, diz Eddie Muller no making of feito uns 60 anos depois da própria fita. “Estes foram os melhores 90 minutos de Liz Scott no cinema, e talvez uma das atuações mais especiais de Dan Duryea, pois, embora interprete o mesmo tipo de personagem de muitos de seus filmes, é diferente. É mais profundo e tem uma abordagem única do personagem.”
A intenção inicial dos produtores, no entanto, era mais ambiciosa: queriam Joan Crawford, então uma das maiores estrelas de Hollywood, no papel de Jane Palmer, e Kirk Douglas, um jovem e belo astro em ascensão meteórica, como o vilão Danny Fuller. O problema é que o filme acabou sendo produzido de maneira independente, sem os recursos financeiros de um grande estúdio – não haveria como bancar o salário de uma Joan Crawford, ou mesmo de um jovem Kirk Douglas.
Hal B. Wallis, então um produtor independente (ele seria depois um dos grandes produtores da Paramount) tinha sob contrato Lizabeth Scott, Kristine Miller, Don DeFore e o diretor Byron Haskin; o produtor Hunt Stromberg pagou a ele um aluguel para usá-los no filme. Too Late for Tears foi distribuído pela United Artists, mas certamente com pouca divulgação, o que ajudaria a explicar o fracasso comercial.
Seis anos depois do lançamento, em 1955, ele foi relançado com outro título, Killer Bait, isca de assassino. Não teve melhor sorte do que na época da estréia.
Por não pertencer a um dos grandes estúdios, e como o produtor acabou não renovando os direitos autorais, o filme caiu em domínio público, sendo lançado em VHS e depois em DVD por empresas pequenas, em cópias horrorosas, cópias de cópias de cópias.
Por volta de 2010, a Film Noir Foundation custeou o processo de restauração do filme original, a partir de uma cópia completa encontrada na França, um país de cinéfilos que adoram o cinema americano clássico. A restauração foi feita pelo Film and Television Archive da Universidade da Califórnia. O processo todo levou cerca de quatro anos.
Lizabeth Scott fez 22 filmes – mais da metade, filmes noir
“Uma atriz que parece ter vindo ao mundo para trabalhar em dramas com clima denso, tenso, pesado.” Escrevi essa frase sobre Lizabeth Scott no meu texto sobre o filme que ela fez um ano antes deste Lágrimas Tardias – Pitfall, armadilha, no Brasil O Caminho da Tentação. Nesse filme de 1948, a personagem dela é a tentação de que fala o título brasileiro – a mulher que surge na vida de um funcionário graduado de companhia de seguros, bem casado. De maneira fascinante, a personagem que ela interpreta, Mona Stevens, não é uma femme fatale, sequer uma destruidora de casamentos. Muito ao contrário: é uma moça que trabalha – como modelo da área de roupas femininas de uma grande loja de departamentos –, ganha a vida honestamente, e, ao perceber que o homem com que se envolveu é casado, pai de um garoto, tenta se afastar dele.
Na vida real, Lizabeth Scott – nascida Emma Matzo, na Pensilvânia, em 1922 – trabalhou como modelo para fotógrafos de moda, no início da carreira como atriz de teatro. O produtor Hal B. Wallis a viu, ofereceu-lhe um teste e a contratou. Na segunda metade dos anos 40, começou no cinema, promovida como uma atriz similar a Lauren Baccall e Veronica Lake.
Fez, a rigor, poucos filmes – apenas 22 no total, 21 deles entre 1945 e 1957. Depois disso, dedicou-se a séries de TV; faria mais um último filme em 1972, antes de se aposentar. Morreu aos 92 anos, em 2015.
Mais da metade de seus 22 filmes são do gênero noir.
Um ótimo filme menos reconhecido do que deveria
O livro The United Artists Story desanca furiosamente com o filme. Diz que muita coisa acontece na história, mas a maior parte é “tolo e inconvincente”; em seguida, conta os principais fatos – todos os spoilers possíveis estão ali. E termina dizendo que o filme deu prejuízo, assim como alguns outros produzidos por Hunt Stromberg.
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4: “Drama cheio de atmosfera mas embaralhado, detalhando o que acontece quando uma maleta cheia de dinheiro é jogada para dentro do carro da gananciosa garota má Scott e marido bom sujeito Kennedy. DeFore é um homem misterioso; Duryea está no seu melhor como um patife. Também conhecido como Killer Bait.”
Os distribuidores franceses usaram o fato de que o vilão interpretado por Dan Duryea chama a garota má o tempo todo de “tiger” e puseram no filme o título La Tigresse. Eis o que o Guide des Films de Jean Tulard fala sobre La Tigresse: “Um retrato puxado para o negro (talvez demais para a verossimilhança) de uma mulher que vive por amor ao dinheiro e pela ascensão social. Uma obra menor mas fascinante.”
Eu diria que é um ótimo filme que tem menos fama do que mereceria. Um filme fascinante.
Anotação em dezembro de 2020
Lágrimas Tardias/Too Late for Tears
De Byron Haskin, EUA, 1949.
Com Lizabeth Scott (Jane Palmer)
e Don DeFore (Don Blake), Dan Duryea (Danny Fuller), Arthur Kennedy (Alan Palmer, o marido de Jane), Kristine Miller (Kathy Palmer, a irmã de Alan), Barry Kelley (tenente Breach)
Roteiro Roy Huggins
Baseado em sua própria história publicada originalmente em capítulos na revista Saturday Evening Post.
Fotografia William C. Mellor
Música R. Dale Butts
Montagem Harry Keller
Produção Hunt Stromberg, Republic Pictures, distribuição United Artists. DVD Versátil.
P&B, 101 min (1h41)
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Relançado nos EUA com o título Killer Bait. Na França: La Tigresse.
Olá Sérgio.
Tudo bem com você?
Não faz nenhuma postagem há 6 meses.
Tudo de bom na medida do possível nesse 2020 maluco.
Abraço