A História Verdadeira/True Story, de 2015, tem uma trama fascinante, daquelas que parecem ter sido escritas por um roteirista especialmente criativo, talvez com a ajuda de um bom alucinógeno – mas que aconteceram de fato.
É uma true story, uma história verdadeira, exatamente como dizem os títulos, o original e o brasileiro. Os dois roteiristas – Rupert Goold e David Kajganich, o primeiro deles também diretor do filme – se basearam no livro escrito pelo jornalista Michael Finkel, um dos dois protagonistas da história.
É uma interessante, fascinante história sobre verdade e mentira – no jornalismo, especificamente, e na vida, de forma ampla, geral e irrestrita. Sobre a capacidade de manipulação dos outros que algumas pessoas têm. Sobre segunda chance.
O diretor e co-roteirista Rupert Goold é jovem. É talentoso, sem dúvida, mas é jovem: nasceu – em Londres – em 1972, apenas três anos antes da minha filha. Este aqui foi seu primeiro longa-metragem; antes dele, havia dirigido apenas dois episódios de séries de TV. Como é jovem, e estava estreando, cometeu alguns maneirismos formais, algumas bossas visuais – aquela vontade de berrar para o espectador “Vejam como eu sou bom pra cacete!”
Quando o filme estava ali com uns dez minutos, até comentei com Mary que tinha muito maneirismo. Mas a verdade é que ele não exagera nesses fogos de artifício, não. E a história é tão impactante, e os atores são bons, e estão bem dirigidos, que eu simplesmente deixei de reparar nas piruetas.
Dois homens diferentes que dizem ser Mike Finkel
True Story apresenta para o espectador, desde bem no início, duas histórias, simultaneamente.
As primeiras imagens, uma sequência que dura cerca de dois minutos, são extraordinariamente belas. Parecem coisa da melhor escola de filme comercial que possa haver no mundo – caprichadíssimas, cuidadosamente estudadas, feitas para impressionar muito.
A primeira tomada é um plongée total, a câmara colocada no alto, virada para baixo: um ursinho de pelúcia vai caindo lentamente, vai se distanciando pouco a pouco da câmara, vai caindo lentamente, suavemente, até encaixar-se em uma mala, na qual há uma garotinha lourinha de pijama, em posição fetal. A segunda tomada é um close-up do zíper da mala sendo fechado. A terceira começa um tanto indistinta – mas logo vemos uma mala afundando na água. Na quarta tomada, a mala está sendo levada num carrinho ao longo de corredores. Na quinta tomada, a mala é jogada em cima de uma mesa de metal – e o impacto faz com que de dentro dela saia água. A sexta tomada mostra um homem com um avental de médico visto por trás. A sexta mostra o homem em perfil. Na sétima, a mão enluvada daquele médico – um legista, percebe o espectador – abre aquele mesmo zíper que seis tomadas antes havíamos visto sendo fechada. Oitava tomada: o rosto do médico. Nona: close-up da mala sendo aberta, a câmara colocada atrás da aba da mala que é levantada. Décima tomada: o rosto do médico em close-up, olhando para baixo, para o conteúdo da mala. Décima-primeira: close-up da mala, a câmara mostrando apenas o lado dela e, no alto, os pelinhos do ursinho de pelúcia.
Corta, e vemos uma rua de terra de uma aldeia de um lugar muito pobre, miserável. Não há aqueles letreiros com o onde e o quando – veremos que é África, mas em momento algum do filme se faz referência ao ano em que a ação se passa.
Ali naquele lugar miserável da África, Michael Finkel, repórter do New York Times (o papel de Jonah Hill, na foto acima), está entrevistando um rapaz, com a ajuda de um intérprete.
O entrevistado aparentemente não está se abrindo tanto quanto o repórter gostaria, e então ele mostra uma nota de não sei quanto dólares, para incentivá-lo a falar.
Não sei se os seres humanos (a gente costumava brincar nas redações que há os seres humanos e há os jornalistas – são coisas distintas) percebem isso de imediato, mas, para os jornalistas, aquilo ali é um gesto que já indica claramente que Michael Finkel não segue as boas regras. Oferecer dinheiro para obter um bom depoimento definitivamente não é algo ético – muito ao contrário, é um crime contra a ética jornalística.
O repórter que atenta contra a ética mostra uma carteirinha e afirma: – “Este sou eu. Mike Finkel, do New York Times”.
Mike Finkel-Johah Hill é um pouco gorducho, usa grandes óculos. Não é propriamente assim um homem bonito.
Corta, e temos uma tomada de uma cidade da América Latina. Logo depois, uma sequência dentro de uma igreja católica maravilhosa, imponente, cheia de dourado. Um rapaz moreno, magro, de boa estampa, está dentro da igreja – e veremos que aquilo ali é México. O rapaz é interpretado por James Franco, e James Franco é completamente diferente de Mike Finkel-Jonah Hill.
Surge dentro da majestosa igreja uma moça loura, uma turista alemã; começam a conversar. Logo ela diz seu nome, Lena (Auden Thornton). Ele diz o dele: Mike Finkel, do New York Times.
Mike Finkel adulterou a verdade. Em suma, mentiu
Eu me lembrava vagamente – ou então acreditava que lembrava – do nome Mike Finkel. Houve, nas últimas décadas, dois ou três, talvez quatro casos de jornalistas americanos que obtiveram grande sucesso na carreira – para se descobrir depois que não seguiam rigorosamente os mais básicos preceitos éticos. Para dizer a verdade nua e crua, eram jornalistas que mentiam, que inventavam. Todos os jornais do mundo noticiaram os casos, e creio que o de Mike Finkel foi um deles.
Se me lembro ou acredito que me lembro, se o Estadão e o Globo noticiaram a história de Mike Finkel, isso não importa. O fato é que, ao voltar da África – na verdade verdadeira dos fatos, e também no filme –, Mike Finkel escreveu uma bela reportagem sobre trabalho escravo na Costa do Marfim. A reportagem incluía declarações fortes de Youssouf Malé, um jovem que relatava as terríveis condições de trabalho numa plantação de cacau.
Segundo o filme, a reportagem foi capa da New York Times Magazine, a revista que acompanha a edição dominical do jornal. E foi nada menos que a nona capa da revista com reportagens de Mike Finkel.
Só que a verdade dos fatos tem uma ardilosa, safada, insistente mania de aparecer no meio dos cipoais de mentiras, e logo ficou claro para a editora de Finkel (interpretada pela belíssima Gretchen Mol em um papel importante mas minúsculo) e para seus superiores que as fotos apresentadas pelo repórter não eram de Youssouf Malé. E que Youssouf Malé não tinha falado tudo aquilo que o repórter disse que ele havia falado.
Mike Finkel tinha reunido em uma única pessoa os depoimentos que colhera de uns cinco trabalhadores da Costa do Marfim. Tinha transformado Youssouf Malé em um compósito. Foi demitido do New York Times, sem dó nem piedade – não dá para ter dó ou piedade de jornalista que cria, inventa, aumenta, distorce. Que mente, em suma. Que não conta a história verdadeira – the true story.
Finkel é convidado a entrevistar o homem que usou seu nome
Mais tarde, ao longo do filme, Finkel dirá que fez aquilo pensando em fazer o bem. Queria, ao denunciar o trabalho escravo, ajudar os jovens da Costa do Marfim; queria que o crime de submeter empregados a condições análogas à escravidão, uma vez exposto ao mundo, fosse combatido, extinto.
Demitido, Finkel volta para sua bela casa – isolada, no meio da natureza, no Estado de Montana, no Noroeste dos Estados Unidos. Tem uma bela casa e uma mulher maravilhosa, inteligente, uma ativa acadêmica, e linda – Jill vem na pele de Felicity Jones.
Nome badalado do maior jornal do país, um dos maiores do mundo, de sua casa em Montana Finkel passa a disparar telefonemas para diversos jornais, propondo pautas, oferecendo-se para fazer matérias. Só ouve negativas.
Até que um dia recebe uma ligação do editor de um jornal de cidade do vizinho Estado de Oregon. Mike Finkel não estaria interessado em entrevistar Christian Longo, o sujeito que havia sido preso acusado de matar a esposa e os três filhinhos?
Finkel não entende por que o jornal de Oregon estaria oferecendo o trabalho a ele. Mas o editor logo explica: é que Christian Longo, o assassino, havia usado no México o nome de Mike Finkel.
Isso acontece quando o filme está ali com uns 15, no máximo 20 dos seus 99 minutos de duração.
O jornalista luta pelo direito a uma segunda chance
Sou fã dessa garota Felicity Jones, nascida em Birmingham, Inglaterra, em 1983, quando minha filha, então com oito anos, já via filmes comigo, no cinema ou no videocassete. (Meu Deus, videocassete! Que coisa…) Ela me impressionou pela primeira vez quando interpretou uma adolescente fanática pela glam rock inglês em Reflexos da Inocência/Flashbacks of a Fool, de 2008 – e não parou mais de me impressionar em Caindo no Mundo / Cemetery Junction (2010), Paixão Inocente / Breathe In (2013), O Nosso Segredo / The Invisible Woman (2013), A Teoria de Tudo / The Theory of Everything (2014).
Felicity Jones cresceu, assumiu proporção de jovem estrela.
Fiquei com a sensação de que a produção, os realizadores, o diretor-co-roteirista Rupert Goold ficaram tentados a dar maior importância à personagem de Jill, a mulher de Mike Finkel, para aproveitar a presença de Felicity Jones no filme.
Há longas sequências centradas em Jill – a rigor desnecessárias, que parecem um tanto forçadas, artificiais. Mas tudo bem: admito que pode ter sido apenas uma sensação errada que tive.
True Story é um bom filme.
É fascinante ver como Mike Finkel, sinceramente arrependido de seu crime – a mentira –, se aproxima de Christian Longo, o sujeito acusado do crime absolutamente pavoroso, o assassinato de toda a família, mulher e três crianças. É fascinante ver como o jornalista que mentiu, foi julgado culpado, perdeu o emprego, a respeitabilidade, se identifica com o sujeito que talvez – quem sabe? – não seja o assassino, que talvez esteja assumindo a culpa que na verdade é de outra pessoa.
É fascinante ver como Mike Finkel, que luta para ter uma segunda chance, passa a torcer para que aquele suspeito de assassinatos terríveis tenha, ele também, o direito a uma segunda chance.
Não aparece isso no filme, mas, segundo informa a Wikipedia, Mike Finkel soube aproveitar a segunda chance: seu livro relatando o relacionamento com Christian Longo, True Story: Murder, Memoir, Mea Culpa foi indicado para o prêmio Edgar de melhor crime factual, em 2006. Em 2008, Finkel e o fotógrafo John Stanmeyer venceram o National Magazine Award, por uma matéria sobre malária publicada na National Geographic.
Ou seja: depois de amargar um período de ostracismo, depois de pagar pelo seu crime, voltou a exercer a profissão de jornalista – e com sucesso.
Dois detalhinhos que faço questão de registrar: o astro Brad Pitt é um dos dois produtores executivos do filme. E os créditos finais se encerram com uma informação que eu jamais havia visto em filme algum: “A feitura e distribuição autorizada deste filme patrocinaram mais de 13 mil empregos e envolveram centenas de milhares de horas de trabalho.”
Em um mundo que perde milhares de postos de emprego a cada dia, com a automação e a inteligência artificial, achei fantástica a idéia dos realizadores de fazerem essa afirmação.
Um relato fascinante sobre crime e ética jornalística
Naqueles letreiros ao final do filme – que sempre estão presentes em obras baseado em histórias reais, para contar o que aconteceu com os personagens após os fatos mostrados ali –, é dito que Mike Finkel jamais voltou a escrever no New York Times. Já o próprio acusado de bárbaros assassinatos, Christian Longo, escreveu artigos para diversos jornais – inclusive o próprio Times.
Não pode haver ironia maior.
O mais incensado jornal do mundo, o jornal que todo jornalista do mundo admira (eu inclusive, é claro), publicou texto do sujeito acusado de assassinar a família inteira – mas não voltou a publicar nada do jornalista que cometeu o crime de mentir.
Como Mike Finkel esteve ligado ao New York Times, acho interessante ver o que o próprio jornalão falou do filme. Aqui vão trechos da crítica assinada A.O. Scott no Times de 16 de abril de 2015:
“The Journalist and the Murderer (o jornalista e o assassino) é o título de um livro de Janet Malcolm, mas poderia ser o nome de um gênero. Uma pequena biblioteca de histórias sensacionais de pesquisa atesta a forte e muitas vezes desconfortável afinidade entre repórteres e assassinos. A Sangue Frio, de Trumam Capote, é talvez o exemplo supremo, que tem inspirado diversos filmes ao longo dos anos. Nem o livro True Story de Michael Finkel nem a adaptação cinematográfica de Rupert Goold chega perto do livro de Capote ou do filme Capote de Bennett Miller. O novo filme é interessante principalmente porque demonstra como pode ser difícil mapear o embaralhado território em que o crime e o jornalismo se aproximam.
“Finkel, interpretado no filme por Jonah Hill, era um jovem repórter de grande ambição e realizações impressionantes quando foi pego fabricando parte de um artigo na New York Times Magazine. Diferentemente de outros patifes da escrita como Jayson Blair, Jonah Lehrer e Stephen Glass, cujas carreiras mostram um padrão de fraude, Finkel não parece ter sido um transgressor serial. Mas seu único lapso foi o suficiente para garantir uma nota dos editores neste jornal e seu banimento das páginas.
“O filme trata desse episódio, que ocorreu em 2001-2002, em algumas cenas rápidas, e deixa a impressão de que o que aconteceu não foi inteiramente por culpa do autor. Gretchen Mol aparece como uma editora fictícia que parece ser ao mesmo tempo cúmplice e carrasco. Assim como o livro (quem tem o subtítulo Murder, Memoir, Mea Culpa), o filme tem uma tendência de misturar vergonha e auto-elogio. Os pecados de arrogância e desleixo de Finkel que Finkel admite acabam virando virtudes, efeitos colaterais de um temperamento profissional definido pela paixão, coragem e uma feroz ética de trabalho. Quanto mais ele se pune, mais simpático ele fica.”
E o texto do New York Times sobre o filme conclui:
“Goold, o diretor de fotografia Masanobu Takayanagi e especialmente Marco Beltrami, que compôs a trilha sonora em tom menor, trabalham para criar um clima de ameaça e mistério. Longo poderia talvez ser inocente? Se não, por que ele matou sua família? O que está em jogo na intimidade entre ele e Finkel? Os dois homens são parecidos, como eles às vezes parecem pensar? Um deles está usando o outro? Qual deles?
“O problema de True Story não é que ele falha ao responder a
essas questões, e sim que ele nunca as coloca com gravidade moral suficiente ou força dramática. A história real de Christian Longo e Michael Finkel poderia ser um relato fascinante e perturbador sobre crime, curiosidade e ética jornalística, mas o filme não é isso.”
Acho o julgamento que o texto do New York Times faz do filme é severo demais. Em vários pontos. Por exemplo: bem ao contrário do que o texto afirma, o filme demonstra claramente que o que aconteceu – o erro de criar um compósito, de juntar vários depoimentos de várias pessoas na boca de um único trabalhador da Costa do Marfim – foi de inteira responsabilidade de Mike Finkel.
E, bem ao contrário do que diz o texto, o filme, é, sim, um relato fascinante e perturbador sobre crime, curiosidade e ética jornalística.
Anotação em outubro de 2019
A História Verdadeira/True Story
De Rupert Goold, EUA, 2015
Com Jonah Hill (Michael Finkel), James Franco (Christian Longo),
e Felicity Jones (Jill Barker, a mulher de Michael), Maria Dizzia (MaryJane Longo, a mulher de Christian), Ethan Suplee (Pat Frato), Conor Kikot (Zach Longo, filho de Christian), Charlotte Driscoll (Sadie Longo, filha de Christian), Stella Rae Payne (Madison Longo, filha de Christian), Robert John Burke (Greg Ganley), Byron Jennings (juiz Odenkirk), Gretchen Mol (Karen Hannen), Betty Gilpin (Cheryl Frank), Seth Barrish (Blaise), Robert Stanton (Jeffrey Gregg), Michael Countryman (o legista), Auden Thornton (Lena, a turista alemã)
Roteiro Rupert Goold e David Kajganich
Baseado no livro True Story: Murder, Memoir, Mea Culpa, de Michael Finkel
Fotografia Masanobu Takayanagi
Música Marco Beltrami
Montagem Nicolas De Toth e Christopher Tellefsen
Casting Douglas Aibel
Produção Regency Enterprises, New Regency Pictures,
Plan B Entertainment, StudioCanal, Sin Sentido Films. Distribuiçãpo Netflix.
Cor, 99 min (1h39)
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