A Noite de 23 de Maio / Mystery Street

3.5 out of 5.0 stars

Há mais tesouros pouco conhecidos entre os filmes de Hollywood dos anos 30 a 50 do que podem sonhar nossa vã filosofia ou nossa paixão pelo cinema. Este A Noite de 23 de Maio/Mystery Street é um deles.

Produção da Metro de 1950, é um autêntico filme noir – pela ambientação, pelo clima, e especialmente pelo uso espetacular do chiaroscuro, da fotografia que realça o contraste negro-branco, obra do diretor de fotografia John Alton.

Mas é um noir que foge de algumas convenções do gênero. Por exemplo: há uma femme fatale, uma loura bela, atraente, que faz o que quer de um sujeito inocente, um bobinho, exatamente como manda o figurino – mas ela morre antes que o filme chegue a 15 dos seus rápidos 93 minutos.

E aí vai um grande diferencial do filme em relação à imensa maioria dos policiais: o crime acontece logo no início da narrativa, e o espectador vê tudo. O corpo da vítima é abandonado, e só é encontrado, por acaso, meses depois, quando restam apenas os ossos, o esqueleto. Não há nada que possa servir para a identificação da vítima. E então os policiais têm que recorrer à ciência, à medicina forense, a especialistas da Universidade para ajudá-los na busca. Primeiro, é preciso tentar investigar, com os métodos científicos, para se chegar à identidade da vítima, ou ao menos perto dela.

O que é fascinante em todos os aspectos. Porque o espectador sabe de muitas informações que nem a polícia nem os cientistas da Universidade têm – o espectador sabe quem é a vítima, sabe como ela foi morta. E porque é um filme que antecipa o que viria muitas décadas depois nas séries C.S.I.: Crime Scene Investigation.

Como notou a editora executiva do American Film Institute, Patricia King Hanson, o protagonista “é um detetive que está tentando descobrir quem cometeu um crime e, na verdade, como se vê desde o começo, a polícia nem sabe quem é a vítima. Então você tem uma história ao estilo de C.S.I. de um detetive tentando descobrir quem foi que morreu, quem foi que matou, e se o suspeito é a pessoa certa”.

Isso de fato é sensacional: uma história de um detetive que primeiro tem que descobrir quem foi que morreu!

E uma história ao estilo de C.S.I., uma série que mostra o trabalho de uma polícia moderna, do século XXI, usando todo tipo de tecnologia mais moderna – num filme feito em 1950!

“Acho que você ficará bem surpreso ao ver o filme porque pensamos na ciência forense como algo dos anos 1980 ou 1990”, diz Patricia King Hanson. “Mas o filme mostra uma abordagem criminalística muito intrincada de como os peritos conseguem encontrar evidências, e se vê que o cientista está fazendo coisas que vemos hoje. Ele reúne as evidências e as analisa, de forma médica, forense, e também da forma um pouco mais antiga, como se costumava fazer com os conhecimentos de balística.

Um filme feito fora dos estúdios, nas ruas

Há um certo estranhamento já nos créditos iniciais. Antes mesmo que os letreiros mostrem o nome do produtor Frank E. Taylor e do diretor John Sturges, vemos a seguinte frase: “A Metro-Golwyn-Mayer deseja agradecer ao reitor e aos professores da Universidade de Harvard por sua generosa cooperação na produção deste filme”.

Harvard, uma das maiores, principais, mais excelsas universidades americanas (e, de resto, do mundo todo). Harvard, a universidade que é um dos grandes orgulhos de Massachusetts, um dos mais orgulhosos estados da federação, e de Boston, sua capital, a capital da Nova Inglaterra, o trecho mais tradicional, mais antigo e mais rico da Costa Leste.

Toda a ação do filme se passa em Boston e seus arredores – e ele foi inteiramente rodado lá mesmo, em Boston, na Universidade de Harvard, em Cape Cod, a praia que fica a uns 100 km, na pequena cidade quase vizinha de Hyannis. E isso – as filmagens em locação, nas ruas, ao ar livre, e não num estúdio, numa cidade cenográfica construída em estúdio – era uma grande novidade nos Estados Unidos em 1950.

Era uma grande novidade no mundo inteiro. O neo-realismo italiano, que se iniciou na segunda metade dos anos 1940, após o fim da Segunda Guerra, foi pioneiro em levar diretores, técnicos e atores para as ruas. A nouvelle vague francesa seguiria os passos dos italianos a partir de 1959, início dos anos 1960.

A editora Patricia King Hanson diz, num curto documentário sobre  Mystery Street que acompanha o filme na caixa Filme Noir Vol. 7, lançada pela Versátil Home Vídeo, que, após o final da Segunda Guerra Mundial, quando acabaram as restrições a viagens, alguns filmes passaram a ser rodados em locação, ou seja, nas ruas, a céu aberto. Houve filmes passados e rodados em Nova York, é claro, e também Nova Orleans, San Francisco. “Acho que este foi talvez o primeiro filme inteiramente feito em Boston”, ela diz.

E o crítico e historiador Richard Schickel acrescenta que isso – as filmagens nas ruas de Boston, no porto – é um aspecto único do filme.

“Talvez o elemento mais marcante deste filme seja a fotografia’, diz Richard Schickel. “O filme de fato tem um visual lindo. John Alton é considerado pelos especialistas como uma figura crucial na criação da aparência do filme noir.” E o próprio John Alton (1901-1996), numa entrevista dada quando já estava bem velhinho, sentenciou: “Acho que às vezes a escuridão é mais bonita que a luz. Todos passam pela escuridão na vida. O que é bom e o que é mau acontece à noite: os assassinatos, os casamentos, as cenas de amor.”

Uma loura bonita, atraente, de vida dura, difícil

A loura bonita, atraente da história, aparece logo após os créditos iniciais, num suave contreplongée: a câmara está na base de uma escada, e a loura vem descendo, de tal forma que é impossível para o espectador não reparar nas pernas dela. O vestido que usa permite até mesmo que o espectador veja, ainda que rapidissimamente, o início das coxas da loura.

Ela é bonita, atraente, sim, e vai fazer de pato, de bobo, um sujeito simples, inocente – mas sua vida não tem nada de atraente, elegante, poderoso, charmoso. Vivian Heldon (o papel de Jan Sterling, nas fotos acima) mora naquele lugar, uma pensão chinfrim para moças, trabalha como dançarina num bar-boate – mas não é apenas dançarina. Será depois definida nos jornais como uma “B-girl”, uma expressão que eu não conhecia. A primeira acepção, vejo agora, é mesmo garota de bar – “uma mulher empregada em um bar ou clube noturno para atuar como companhia para clientes masculinos e induzi-los a tomar mais bebidas”. Mas, naturalmente, por extensão, entende-se que uma B-girl oferece outros serviços.

Vivian sequer é loura de verdade.

E, desde a primeira sequência em que a vemos, descendo a escada da pensão para falar ao telefone no corredor, ficamos sabendo que ela está implorando para que um determinado homem aceite se encontrar com ela, conversar com ela. O homem está obviamente fugindo de Vivian – e ela está fazendo tudo o que pode para convencê-lo a vir vê-la.

Vivian até anotou o número de telefone na parede do corredor: “Hyannis, 3633”.

Quando o homem do outro lado atende – e é bastante óbvio que ele é amante dela -, Vivian pede desculpas por ter tido que ligar para a casa dele, mas diz, com firmeza, que eles precisam conversar. Que ela está com um problema. E exige que ele vá encontrá-la no trabalho dela às 10 da noite.

Às 10 da noite ele não chega. Mas aí acontece uma coisa – e Vivian, esperta, forte, e precisando demais ver o homem com quem andou saindo, agarra a ocasião, a chance.

No bar, naquela hora, há um sujeito com cara de gente boa, inocente como um anjo e já ficando bêbado como um gambá. O típico pato, o sucker sobre quem as femme fatales passam por cima, pisoteiam, depois que obtém o que querem. Veremos que ele se chama Henry Shanway (Marshall Thompson), e tinha ido para o bar se embebedar porque sua mulher estava no hospital para dar à luz.

Vivian se aproxima dele, diz que vai dirigir o carro dele e levá-lo onde ele quiser. Henry está de fato bem bêbado, e Vivian faz com que ele saia carregando uma garrafa para beber um pouco mais – e ela pega a estrada rumo a Hyannis. Quando Henry percebe, já estão longe de Boston, e ele não tem muito o que fazer.

Ela pára num bar à beira da estrada, dá mais um telefonema para o amante, marcam encontro. Quando Henry tenta protestar, ela diz que se ele quiser, pode assumir o volante. Assim que ele desce para dar a volta, ela arranca e deixa o pato, o bobo, o sucker sozinho no meio da estrada.

Pára o carro no lugar combinado, junto da praia, o mar iluminado pelo luar. O amante sai do carro dele, aproxima-se do de Henry. A câmara focaliza o rosto de Vivian e, à esquerda, as costas do amante dela. É só Vivian que fala – e ela fala com raiva: – “Não pense que vou deixar você me dispensar. Não agora. Não vai ser fácil.”

Ele fica em silêncio. Ela: – “Fale alguma coisa.”

Ele tira uma pistola 45 e atira.

O espectador aprende técnicas da medicina forense

Ele está segurando o corpo da amante morta quando surgem luzes de um carro. Ele a abraça como se os dois estivessem se beijando.

É um momento macabro. Uma sequência forte, marcante, apavorante.

Em seguida o homem leva o corpo da mulher para o meio de arbustos na praia deserta. Tira as roupas, as jóias, tudo que pudesse levar a uma identificação. Não vemos a ação, mas fica claro que ele a enterra na areia. E depois leva o carro que ela usava até um lago, onde é devidamente mergulhado.

O filme está com pouco menos de 12 segundos.

O esqueleto de Vivian Heldon será encontrado meses mais tarde por um ornitólogo.

E, quando o filme está com 15 minutos, ficamos conhecendo o tenente detetive Pete Morales – o papel de Ricardo Montalban (na foto acima, e à direita na abaixo).

Morales recebe instruções para levar os ossos encontrados na praia para os especialistas de medicina legal de Harvard. O dr. McAdoo (Bruce Bennett, de gravata borboleta na foto abaixo) passará a trabalhar com os ossos – e a ensinar a Morales e aos espectadores algumas das técnicas da medicina forense.

Um filme sem astros e estrelas

Mystery Street é um filme sem grandes astros, sem grandes nomes capazes de atrair filas nas bilheterias do cinema. O papel mais importante da história é esse tenente detetive Pete Morales, e o mexicano Ricardo Montalban (1920-2009), mais de 170 títulos no currículo, uma carreira que se estendeu de 1942 até o último ano de sua vida, é um bom ator – mas nunca chegou a ser um astro.

A nova-yorquina Jan Sterling (1921-2004), que faz Vivian Heldon, também é uma ótima atriz, e teve papéis marcantes, como a Lorraine de A Montanha de Sete Abutres/Ace in the Hole (1951), o maravilhoso filme de Billy Wilder sobre jornalismo sensacionalista. Mas estava em começo de carreira, sua personagem só fica na tela até o filme chegar a 12 minutos, e a rigor jamais chegou a ser uma estrela.

Bruce Bennett, que faz o dr. McAdoo de Harvard, Marshall Thompson, que faz Henry Shanway, o bobo que é praticamente raptado por Vivian, e Edmon Ryan, que faz James Harkley, o homem que logo o espectador vê que é o assassinato, são todos bons atores, mas nunca passaram de coadjuvantes.

Assim, o segundo nome que aparece com mais destaque nos créditos iniciais, logo abaixo do de Ricardo Montalban, é o de Sally Forrest, uma bela moça que faz o papel de Grace Shanway, a esposa toda correta, perfeita, de Henry – que, por ter sido visto saindo do bar com Vivian, acaba virando o principal suspeito do crime.

E quem acaba brilhando mais, no elenco, e a rigor roubando todas as cenas em que aparece, é Elsa Lanchester (1902-1986), 99 títulos no currículo, que ficou mais conhecida por seu papéis como Mary Shelley em A Noiva de Frankenstein (1935) e como a enfermeira do grande advogado de defesa de Testemunha de Acusação (1957) – e por ter sido casada com Charles Laughton de 1929 até a morte dele, em 1962.

Elsa Lanchester (na foto abaixo) faz o papel de Mrs. Smerrling, a dona da pensão em que moravam Vivian e sua amiga Jackie (Betsy Blair). Mrs. Smerrling é uma mulherzinha desagradável, hipócrita, repulsiva. É dinheirista até a raiz dos cabelos, imiscui-se na vida das pensionistas. Vai descobrir, muito, mas muito antes de a polícia sequer suspeitar dele, que James Harkley é o criminoso – e tentará chantageá-lo.

Grandes roteiristas, grande diretor

A bela história em que o filme se baseia é de autoria de Leonard Spigelgass – e o filme teve uma indicação ao Oscar na categoria então existente de Melhor História.

A trama criada por Leonard Spigelgass foi transformada em roteiro por Sydney Boehm e Richard Brooks – e aqui estão dois nomes de mestres. Sydney Boehm (1908-1990), como ressalta o crítico Richard Schickel, é um dos grandes nomes dos roteiristas dos filmes noir; é dele o roteiro de Os Corruptos/The Big Heat (1973), de Fritz Lang, tido como um dos melhores noir da História.

Richard Brooks (1912-1992) foi um excelente roteirista e um excelente diretor. Entre os 26 filmes que dirigiu há diversas preciosidades, de A Última Vez que Vi Paris (1954), baseado em F. Scott Fitzgerald, com Liz Taylor bela de morrer, até À Procura de Mr. Goodbar (1977), com Diane Keaton em um seus melhores e mais corajosos papéis, passando por Gata em Teto de Zinco Quente (1958), Entre Deus e o Pecado (1960), Doce Pássaro da Juventude (1962) e A Sangue Frio (1967).

John Sturges, o diretor (1910-1992), ainda estava em começo de carreira quando realizou este Mystery Street. Fez de tudo, absolutamente de tudo: de policial noir como este aqui e drama de pesado conteúdo social (Conspiração do Silêncio, 1955) até mistura de aventura e ação com guerra (Fugindo do Inferno, 1963), passando por grandes westerns (Sem Lei e Sem Alma, 1957, Duelo de Titãs, 1959, Sete Homens e um Destino, 1960) e uma corajosa transposição para o cinema de O Velho e o Mar de Ernest Hemingway (1958).

Este foi o primeiro filme de Sturgess para a MGM; ele ficaria vários anos trabalhando para o estúdio.

Leonard Maltin deu apenas 2.5 estrelas, mas elogiou o filme: “Bem acabada história de assassinato passada em Boston; muito bem feita, com ótimo elenco”.

No seu Guide des Films, o mestre Jean Tulard foi duro na opinião sobre Le Mystère da la Plage Perdue, como o filme se chamou na França: “Menos um thriller que um documentário sobre os métodos da polícia”.

Jean Tulard acerta quase sempre. Aqui, acho que pesou muito a mão. É muito mais que um documentário sobre os métodos da polícia. É um filme muito interessante de se ver, mesmo quase 70 anos após seu lançamento. Até especialmente interessante de se ver quase 70 anos após seu lançamento.

Anotação em abril de 2019 

A Noite de 23 de Maio/Mystery Street

De John Sturges, EUA, 1950

Com Ricardo Montalban (tenente detetive Peter Morales), Sally Forrest (Grace Shanway), Bruce Bennett (Dr. McAdoo), Elsa Lanchester (Mrs. Smerrling, a dona da pensão), Marshall Thompson (Henry Shanway), Jan Sterling (Vivian Heldon, a vítima), Edmon Ryan (James Joshua Harkley, o assassino), Betsy Blair (Jackie Elcott, a amiga de Vivian), Wally Maher (Tim Sharkey, o parceiro de Morales), Ralph Dumke (o homem da tatuagem), Willard Waterman (o agente funerário), Walter Burke (o ornitólogo), Don Shelton  (o assistente da promotoria)

Roteiro Sydney Boehm e Richard Brooks

Baseado em história de Leonard Spigelgass

Fotoghrafia John Alton

Música Rudolph G. Kopp

Montagem Ferris Webster

Produção Frank E. Taylor, MGM. DVD Versátil.

P&B, 93 min (1h33)

***1/2

Título na França: Le Mystère de la Plage Perdue. Em Portugal: A Noite de 23 de Maio.

5 Comentários para “A Noite de 23 de Maio / Mystery Street”

  1. Sensacional; mistério, suspense e aflição do jeito que eu gosto. Sem sombra de dúvida, meu filme favorito do Montalban, a mais bela contribuição do México para a humanidade.

  2. Senhorita, adoro seus comentários. Simplesmente adoro.
    Um grande abraço.
    Sérgio

  3. A Versátil tem nos presenteado com relíquias como esse filme B. Atores corretos, fotografia estupenda e roteiro intrigante. Para completar a critica sempre competente do Sérgio Vaz.
    Parabéns
    Mancini

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