Obsessão / The Paperboy

2.5 out of 5.0 stars

O diretor Lee Daniels usou sexo, violência, neuroses, psicoses, repressão e racismo, tudo em doses paquidérmicas, amazônicas, num coquetel explosivo – e muito frequentemente doentio, nojento, abjeto – como a base do roteiro de The Paperboy, no Brasil Obsessão.

Dividiu a tarefa com Peter Dexter, o autor do romance em que o filme se baseia. Os dois tiveram a participação, nesse trabalho, de atores de renome: Matthew McConaughey, Nicole Kidman, John Cusack, Scott Glenn, o jovem galã Zac Efron.

A sensação que se tem é de que o time reunido por Lee Daniels se inspirou em Tennessee Williams, o dramaturgo das paixões tórridas, pecaminosas, cheias de culpa e de esqueletos no armário passadas no Sul quente, suarento, preguiçoso, reprimido e repressor – só que exagerando na explicitude que era absolutamente impensável nos anos 50, época de lançamento de diversos filmes baseados nas peças do escritor. Explicitude que, em especial depois dos anos 1980 e 1990, agora são permitidas como coisa mais normal do mundo.

Assim, temos mil referências a masturbação, boquete. Um sujeito, Tyree Van Wetter (Ned Bellamy), corta o peito de um imenso jacaré pendurado num varal, e vemos o intestino do bicho em close-up. Vemos – entre muitas outras cenas de grande violência – o resultado sangrento de uma orgia de sadismo entre homens, o homem branco que a propôs e procurou brutalmente espancado por dois homens negros, com a vida por um fio.

Vemos uma mulher urinando em cima de um sujeito para salvar sua pele de um ataque violento de água-viva.

E, numa sequência para deixar a famosa cruzada de pernas de Sharon Stone em Instinto Selvagem (1992) parecendo aula de catecismo, Charlotte, a personagem de Nicole Kidman, vestida com uma microssaia, abre as pernas diante de Hillary Van Wetter, o papel de um John Cusak com cara de sociopata furioso.

Estão sentados frente a frente, a loura de microssaia e pernas abertas e o sociopata furioso, numa sala de penitenciária rural da Flórida. Estão a menos de 1 metro e meio um do outro. Junto da loura Charlotte entraram na sala três homens; dois são jornalistas do Miami Times, jornal importante da cidade mais importante do Estado, que haviam conseguido obter a permissão para aquela visita ao prisioneiro. O terceiro homem é irmão de um dos jornalistas e estava a trabalho como o motorista do grupo.

Hillary, o sociopata, está no corredor da morte, condenado pelo assassinato do xerife do lugar.

Condenado injustamente, segundo ele garantia – motivo pelo qual os repórteres do grande jornal do Estado haviam pedido para falar com ele, levando Charlotte, que havia meses se correspondia com o preso.

O encontro acontecia para que os repórteres fizessem suas primeiras perguntas a Hillary, à procura de argumentos para pedir novo julgamento. O guarda que levou o preso – com as duas mãos acorrentadas, em correntes que as ligavam aos pés – avisou que o encontro seria de apenas 15 minutos, e nenhum contato físico seria permitido.

O preso manda a loura abrir as pernas – e Charlotte-Nicole Kidman obedece

Hillary (e a cara de John Cusak é mesmo de um louco absoluto) não quer saber de conversar com os repórteres. Só tem olhos para a loura que, em meses e meses de cartas, havia descrito para ele detalhadamente o que faria com o pau dele assim que se encontrassem.

Manda ela abrir as pernas – e Charlotte-Nicole Kidman escancara as pernas. A câmara mostra em close-up as pernas escancaradas.

Ele manda ela rasgar as meias de nylon, para ver melhor a pele das coxas dela. Ela rasga.

Pede que ela mostre com a boca aquilo que tinha prometido que iria fazer. Ela mostra.

As mãos do sociopata furioso estão acorrentadas, e ele não pode usá-las – mas ele demonstra que nem mesmo precisa delas.

A sequência não é rápida, não. Vemos o rosto de Charlotte-Nicole Kidman encenando o boquete, vemos a expressão cada vez mais ensandecida de Hillary, vemos os rostos surpresos dos dois jornalistas e do rapaz bem jovem que presenciam a cena.

Um dos jornalistas, Ward Jansen (o papel de Matthew McConaughey), é dali mesmo, daquela pequenina cidade da Flórida, mas havia se radicado na metrópole, virara repórter do jornalão, era meio um mito no lugar. Raramente visitava a cidadezinha – voltara daquela vez com um colega disposto a descobrir tudo sobre aquilo que considerava um erro da Justiça, e expor a história em belas reportagens.

O garoto jovem, Jack Jansen (o papel de Zac Efron), é irmão mais novo de Ward – e, como muitos irmãos mais jovens, um fã absoluto do mais velho. Era um extraordinário nadador, e graças a isso havia estudado na Universidade da Flórida, mas, por problemas de comportamento, tinha perdido a vaga e voltado para a casa do pai.

O pai dos dois, W.W. Jansen (o papel de Scott Glenn), era um dos cidadãos mais conhecidos e respeitados da cidadezinha. Muitos anos atrás havia fundado o jornal do local, que ainda mantinha.

Vamos ver que a mulher de W.W., a mãe de Ward e Jack, havia abandonado a família quando Jack ainda era bem pequeno, e sumido no mundo. Nunca mais havia sido vista nem pelo ex-marido, nem pelos filhos. O garoto Jack acabou de ser criado pela empregada da casa, Anita Chester (Macy Gray).

Uma quantidade muito grande de informações é apresentada como cartas embaralhadas

O outro jornalista, o colega de Ward, chama-se Yardley Acheman (o papel de David Oyelowo). Yardley explica para W.W., durante jantar de toda a família Jansen na casa paterna, que é de Londres, e que é responsável pelo texto final das reportagens que faz juntamente com Ward.

Yardley não chega a ser muito bem recebido e bem tratado por W.W., e muito menos por Ellen (Nealla Gordon), a atual namorada do velho dono do jornal local. Na verdade, a presença de Yardley ali incomoda praticamente todos os brancos com quem ele se encontra, porque sua pele é negra.

A ação se passa em 1969, e o racismo era fortíssimo, violentíssimo, no Sul dos Estados Unidos. Apenas em 1965, durante a presidência de Lyndon B. Johnson – é sempre bom lembrar isso –, foi aprovada legislação federal banindo de vez todas as leis estaduais que garantiam a segregação racial, o apartheid oficial que estivera em vigor até então em diversos Estados sulistas, só que sem o nome do regime da África do Sul.

Todas essas informações sobre a história – a condenação de Hillary pelo assassinato do xerife, a chegada dos dois jornalistas do Miami Times à cidadezinha para tentar levantar provas da inocência dele, o relacionamento através de cartas entre Charlotte e o preso, o quem é quem na família Ward -, toda essa grande quantidade de dados vai sendo apresentada ao espectador não de uma forma linear, clara, mas em flashbacks.

A sensação que se tem é de que, na hora de escreverem o roteiro, de passaram para a linguagem cinematográfica a história do romance, o autor Peter Dexter e o diretor Lee Daniels tentaram embaralhar um pouco mais as cartas – e a quantidade de cartas já era grande. Aquela regra cada vez mais comum segundo a qual Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar?

O jovem Jack apaixona-se perdidamente por aquela mulher vulgar

Assim, o filme começa com um jornalista – cujo rosto não é mostrado, de quem apenas ouvimos a voz em off – entrevistando Anita Chester, a mulher que havia trabalhado anos e anos na casa de W.W. Jansen, e havia acabado de criar o garoto Jack.

Um livro havia acabado de ser lançado, contando, em forma de romance, a história envolvendo Hillary Van Wetter, Charlotte Bless, os irmãos Ward e Jack Jansen, e Yardley Acheman. E então o jornalista foi ouvir Anita, já que ela havia sido testemunha de boa parte dos acontecimentos do agora distante verão de 1969.

Anita agora é uma senhora idosa. Antes de começar a falar, quer saber exatamente quanto é que vai ganhar para dar seu depoimento.

Não é uma pessoa simpática. Aliás, o que não faltará no filme são pessoas antipáticas.

Mas ela começa a contar a história – e então vem o flashback, voltamos ao verão de 1969, em que, como diz Anita, até Deus morria de calor.

De vez em quando, ao longo do filme, a voz em off de Anita entra, dando um ou outro detalhe da história.

O ponto que ela mais acentua é que o garoto Jack apaixonou-se por Charlotte desde o primeiro momento em que a viu – ela chegando com duas caixas de cartas trocadas entre ela e o preso Hillary, para mostrar para os repórteres do jornal de Miami.

Em alguns momentos, vemos na tela o que o jovem Jack vê em alucinações, em sonhos – em especial tomadas em que aparece Charlotte-Nicole Kidman não com aquele jeito vulgar da personagem, mas numa imagem onírica, idealizada, angelical.

Como é bela essa moça Nicole Kidman. Já não estava mais tão moça assim, em 2012, quando este The Paperboy foi lançado – ela nasceu (no Havai) em 1967, e estava portanto com 45 anos. Bela, belíssima – e corajosa. É preciso coragem para fazer uma sequência como aquela da sala do presídio.

O filme quer demonstrar que há doido para tudo neste mundo cão

Nicole Kidman parece ter se empenhado muito, ter feito grande esforço para viver essa mulher quarentona que é tomada de paixão por um presidiário que nunca havia encontrado pessoalmente, até a chegada dos jornalistas da cidade grande. É um daqueles papéis que exigem um tour-de-force do ator, como, só para dar um exemplo de mulher belíssima em papel forte, o papel da assassina feito por Charlize Theron em Monster (2003).

Por sua interpretação como Charlotte, a mulher que leva seu amor-bandido às últimas consequências, Nicole Kidman foi indicada ao Globo de Ouro, ao prêmio do Sindicato de Atores e a oito outros prêmios.

Consta que, por causa do orçamento relativamente baixo do filme – uma produção independente, não bancada por um dos grandes estúdios de Hollywood, que custou cerca de US$ 12,5 milhões –, Nicole Kidman, pela primeira vez nos últimos anos, não pôde contar com uma assistente de maquilagem só para ela. A própria atriz teria então criado aquela maquiagem um tanto vulgar, um tanto “trashy” de Charlotte. Combina à perfeição: Charlotte é mesmo uma personalidade um tanto “trashy” – o adjetivo para o substantivo trash, lixo.

Aliás, é interessante notar que o filme não parece nem por um momento preocupado a aventar quais poderiam ser os motivos que levam uma mulher bela, atraente, a se dedicar a uma correspondência frenética com um sujeito acusado de um crime de morte, e que tem todo o jeito de um sociopata. A impressão que se tem é que o roteiro dá de barato de que é assim mesmo: tem doido e doida para tudo neste mundo cão.

Segundo o IMDb, o filme foi muito aplaudido em Cannes

Na página de Trivia do IMDb sobre o filme – detalhes, informações sobre a produção, os bastidores – se diz que Nicole Kidman entrou no projeto em substituição a Sofia Vergara. É mais um dos exemplos de que Deus existe e adora o cinema. Sofia Vergara é uma mulher linda, mas não tem nem um milésimo do talento de Nicole Kidman. A substituição fez muito bem ao filme.

O IMDb informa também que Tobey Maguire chegou a ser escalado para o papel de Ward, o irmão mais velho, mas depois teve que desistir por causa de outros compromissos. Teria feito um bom Ward – é um ótimo ator. Mas Matthew McConaughey se deu muito bem no papel.

Ainda sobre esses bastidores de atores escolhidos, o IMDb informa que Lee Daniels queria que o papel de Anita, a empregada na casa dos Jansen, fosse de ninguém menos que Oprah Winfrey, a mulher que foi um dos maiores salários da história do show business como apresentadora de seu próprio show na TV.

Bem, a perseverança é de fato uma grande virtude. Lee Daniels teria a honra de contar com Oprah em seu filme de 2013, O Mordomo da Casa Branca.

Mais uma informação da página de Trivia, boa para encerrar este texto: apresentado no Festival de Cannes de 2012, na mostra competitiva – o que já é um baita reconhecimento –, o filme foi aplaudido de pé. O IMDb fala em 15 minutos de standing ovation, mas aí acho que já é exagero.

Anotação em agosto de 2017

Obsessão/The Paperboy

De Lee Daniels, EUA, 2012

Com Zac Efron (Jack Jansen), Matthew McConaughey (Ward Jansen), Nicole Kidman (Charlotte Bless), John Cusack (Hillary Van Wetter), David Oyelowo (Yardley Acheman), Scott Glenn (W.W. Jansen), Ned Bellamy (Tyree Van Wetter), Nealla Gordon (Ellen Guthrie), Macy Gray (Anita Chester), Danny Hanemann (xerife Thurmond Call)

Roteiro Lee Daniels e Peter Dexter

Baseado no livro homônimo de Peter Dexter

Fotografia Roberto Schaefer

Música Mario Grigorov

Montagem Joe Klotz

Casting Leah Daniels Butler e Billy Hopkins

Produção Millennium Films, Nu Image, Lee Daniels Entertainment.

Cor, 107 min (1h47)

**1/2

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