Mulheres e Luzes / Luci del Varietà

3.0 out of 5.0 stars

É muito impressionante como Luci del Varietà, no Brasil Mulheres e Luzes, comprova que tudo, tudo, tudo muda – e demonstra como, fora do âmbito específico da Matemática, a ordem dos fatores altera, sim, o produto.

Em poucos anos, a História alterou completamente o que está escrito nos créditos iniciais do filme lançado em 1951. Nos créditos, aparece Alberto Lattuada primeiro, Federico Fellini vem depois. Os nomes de Peppino De Filippo (ao centro na foto abaixo) e Carla Del Poggio aparecem grandes, antes do título. O de Giulietta Masina aparece menor, depois do título do filme, em terceiro lugar.

A capa do DVD lançado no Brasil pela excelente Versátil diz “Giulietta Masina e Peppino Di Fillipo” – e anuncia: “O primeiro filme de Fellini”. E não se pode acusar a Versátil de vender gato por lebre, de falsear, mentir. Qualquer empresa do mundo faria a mesma coisa. E não apenas hoje. Se Mulheres e Luzes fosse relançado nos anos 70, em qualquer lugar do mundo, os cartazes seguramente seriam parecidos com a capa do DVD da Versátil.

Peppino De Filippo e Carla Del Poggio se perderam ao longo dos anos, viraram pó. Giulietta Masima tornou-se uma das mais importantes e veneradas atrizes do cinema europeu.

Hoje em dia pouca gente conhece Alberto Lattuada, ou sabe que, em 1951, ele já era um diretor e roteirista de renome, com sete longa-metragens na filmografia. Federico Fellini é reconhecido unanimemente como um dos maiores cineastas da História.

As mulheres dos dois diretores são as principais atrizes do filme

Os créditos iniciais apresentam como produtores associados Lattuada-Fellini – só assim, sem os prenomes. Depois especifica que o argumento – o soggetto – é de Federico Fellini, e o roteiro – o sceneggiatura – é de Fellini-Lattuada-Pinelli.

Tullio Pinelli, sujeito longevo, nascido em 1908 e morto em 2009,

aos 100 anos de idade, deixou seu nome como co-autor dos roteiros de 89 filmes, inclusive vários de Fellini, como A Estrada da Vida, Noites de Cabíria, A Doce Vida e Oito e Meio.

O crédito de direção – de regia – é dado a Alberto Lattuada e Federico Fellini.

Há dois outros Lattuada nos créditos. Felice Lattuada, pai de Alberto, é o autor da trilha sonora, e Bianca Lattuada, irmã do diretor, assina como gerente de produção.

Parece ter sido uma produção quase familiar, uma ação entre amigos. Carla Del Poggio, a estrela, a principal protagonista feminina, era a mulher de Lattuada. E Giulietta Masina, como todo mundo sabe muito bem, era mulher de Fellini. Já haviam, todos os quatro, trabalhado juntos antes.

Giulietta e Federico tinham se casado em 1943, ainda durante a Segunda Guerra Mundial – ela tinha 22 anos, ele, 23. Viveram juntos exatamente meio século, até a morte dele, em 1993; sem ele, ela resistiu apenas um ano – morreu em 1994.

Em 1951, o ano de lançamento deste seu primeiro filme, Fellini estava com 31 anos, Giulietta com 30.

Volto a Giulietta e Federico, e também a Alberto e Carla, depois de falar sobre a trama de Mulheres e Luzes.

É um filme sobre uma trupe bem fuleira de teatro mambembe

O filme fala sobre artistas de teatro mambembe na Itália daqueles anos pós-guerra. Se fossem americanos, seriam artistas de vaudeville; na Itália, são chamados de artistas de variedades.

(Décadas mais tarde, Sergio Endrigo e seu parceiro Plumrose comporiam uma canção lindíssima, “Siamo Artisti Di Varietà”, que poderia perfeitamente ser cantada pelos personagens deste Luci del Varietà: “C’è l’attore e il mangiafuoco / Ballerine, nani, cantautori / Domatori, equilibristi e clown / Siamo guitti, siamo artisti / Siamo un po’ esibizionisti / Siamo in cerca di fortuna / Siamo tutti nella stessa barca / Siamo artisti di varietà”.)

Na trupe focalizada no filme, não há comedores de fogo, domadores e equilibristas – mas há bailarinas, um mágico, cantores, e um deles, Checco Dal Monte (o papel de Peppino De Filippo), o protagonista da história, é também um tanto palhaço. E, exatamente como diz a canção de Endrigo e Plumrose, são todos exibicionistas – não um pouco, mas bastante –, estão todos procurando a fortuna, e, embora haja muita rivalidade entre eles, estão todos na mesma barca.

Uma barca bastante humilde, na verdade. Pobre, muito pobre.

A trupe é apresentada ao espectador já na primeira sequência, logo após os créditos. Estão em um teatro bem fuleiro, mas bem fuleiro mesmo, numa pequena cidade do interior, não identificada. Vemos Checco dal Monte cantar uma canção jocosa, engraçada; em seguida, há um número com as seis bailarinas da trupe – nenhuma beldade, nenhuma propriamente bela, mas usam pouca roupa, as duas peças básicas, calcinha e sutiã, com bastante pano, é verdade, mas o suficiente para fazer a homarada urrar de felicidade.

Há diversas tomadas do público, muitas, muitas em close-up. É um público extremamente pobre, humilde – e são pessoas feias. Molto, molto brutti.

E aí, nessas muitas tomadas em close-up de rostos de pessoas do povo, gente humilde, gente feia, já está a marca de Federico Fellini. Era ainda seu primeiro filme como realizador, e ele dividia a direção com Alberto Lattuada, mas já está ali a marca do grande realizador.

Close-ups de rosto de pessoas do povo, pessoas feias, depois, com o passar do tempo, pessoas esquisitas, diferentes da maioria, assim por exemplo narigudas demais, gordas demais – isso seria uma das características dos filmes que viriam depois.

O tipo de personagens – artistas, gente ligada às artes, ao circo, ao entretenimento, ao show businesss – também já é o que Fellini mostraria em diversas outras de suas obras: Abismo de um Sonho, 1952 (um ator de fotonovela), A Estrada da Vida, 1954 (o homem de um mambembe show circense), Oito e Meio, 1963 (um diretor de cinema), Ensaio de Orquestra, 1978 (a orquestra do título), Ginger e Fred, 1986, um casal de dançarinos, Entrevista, 1987 (de novo um diretor de cinema).

Uma mulher de beleza tão grande quanto a ambição se junta à trupe mambembe

Logo depois do número de dança das seis bailarinas com os corpos nada perfeitos à mostra, entram no palco os “astros” da trupe – além de Checco Dal Monte, o cantor Remo (Dante Maggio), a dançarina Valeria del Sole (Gina Mascetti) e a multitalentosa Melina Amour (o papel de Giulietta Masina).

Todos esses quatro, embora estejam ali participando de uma trupe pobre pobre pobre de marré deci, se julgam de fato grandes astros – e Checco e Valeria mais que todos.

Checco e Melina Amour são namorados, estão juntos há muitos anos; não se casaram ainda não se sabe por quê. Ou melhor: dá perfeitamente para perceber que não foi por falta de vontade dela; logo, a questão ainda não foi resolvida porque ele ainda não se dispôs a formalizar a união.

Ele é perdulário, não consegue guardar dinheiro algum. Ela é organizada, paciente, passa a vida fazendo um pé de meia.

(O que é interessante: Cabíria, a prostituta de coração gigantesco de Noites de Cabíria, de 1957, tem muita coisa dessa simpática, doce Melina Amour. Além da simpatia, da doçura e do coração gigantesco, as duas personagens interpretadas pela mesma Giulietta Masina são também capazes de ir guardando um dinheirinho para o futuro.)

Na platéia dessa apresentação da trupe no teatro absolutamente fuleiro está uma mulher que destoa do resto da audiência – e até mesmo dos artistas que estão no palco. No meio daquela gente feia, ela é lindíssima. (É o papel de Carla Del Poggio, a senhora Alberto Lattuada,. Estava na época com 26 aninhos de idade – Lattuada tinha 37.)

Veremos que ela se chama Liliana, Liliana Antonelli, a mulher bela no meio de tanta gente feia.

Mostra-se absolutamente embevecida com o espetáculo. O espectador percebe, pelas expressões de absoluto fascínio, que aquela moça gostaria de estar no palco – e, ao final do espetáculo mambembe, enquanto as pessoas todas da platéia dão as costas para o palco e rumam para a saída, Liliana vai em frente, para tentar falar com os artistas nas coxias.

Liliana sonha em se tornar uma artista, uma grande artista. Sua ambição é imensa, tão fenomenal quanto sua beleza.

Ela tem muitas coisas em comum com outra jovem bela e de ambição imensa a quem os cinéfilos haviam sido apresentados um ano antes, em 1950 – Eve, a personagem de Anne Baxter em All About Eve, de Joseph L. Mankiewicz, no Brasil A Malvada.

Liliana vai provocar ondas de ciúme, inveja, tumulto, agitação, inquietação, naquela trupe mambembe. Para infinita tristeza da doce Melina Amour, Checco Dal Monte será enfeitiçado por ela – e Liliana fará o que tanta bela mulher faz com os homens enfeitiçados, na vida real e nas histórias que a imitam. Fará dele gato e sapato.

De maneira paradoxal, no entanto – o espectador seguramente sentirá isso –, Liliana não é o mal em si, não é uma pessoa de índole perversa, vil, do tipo da Eve de A Malvada, ou as femme fatales dos filmes noir dos anos imediatamente anteriores, a Phyllis Dietrichson de Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue (1944) ou a Cora Smith de Lana Turner em O Destino Bate à Porta (1946).

Ela é quase inocente, quase cândida. Quase como um paquiderme que não tem consciência de que está quebrando tudo na loja de louças.

Foi seguramente o papel mais marcante da carreira da atriz Carla Del Poggio

Essa Liliana Antonelli foi muito provavelmente o melhor papel que a bela Carla Del Poggio teve na vida, o mais marcante.

Foi descoberta jovem de tudo, quando tinha apenas 15 anos, em 1940 (nasceu em Nápoles, filha de um ator e uma atriz), e quem a descobriu, estudando no Centro Sperimentale di Cinematografia, foi Vittorio De Sica, que a escalou para o papel-título da comédia Madalena, Zero em Comportamento, que ele dirigiu e estrelou.

Quando tinha 19 anos, conheceu Alberto Lattuada, que a escolheu para um papel na adaptação cinematográfica do incensado romance Gli Indifferenti, de Alberto Moravia. O filme não foi realizado, mas ela e o diretor se casaram em 1945, o ano do fim da Grande Guerra.

Em 1948, Lattuada a dirigiu em Sem Piedade, um filme com roteiro de Lattuada, Fellini e Tullio Pinelli, baseado em história de Fellini e Pinelli. No elenco estavam também John Kitzmiller, o mesmo americano que interpretaria o trompetista libertário em Mulheres e Luzes, e é claro, Giulietta Masina.

Ao longo dos anos 50, Carla Del Poggio dedicou-se igualmente ao cinema e ao teatro, mas deixou o cinema de lado a partir de 1960. Viveu com Lattuada até a morte dele, em 2005; morreria em 2010, aos 84 anos.

Giulietta Masina “moldou uma persona comparada ao do vagabundo de Chaplin”

Diferentemente dela, Giulietta Masina teria, depois de Melina Amour, diversos belos papéis. Trabalhou ao lado de Ingrid Bergman em Europa ’51, de Roberto Rossellini. Em 1954, fez a Gelsomina em A Estrada da Vida/La Strada, uma moça que é vendida a um artista-atleta mambembe, interpretado por Anthony Quinn – o primeiro filme de Fellini a levar um Oscar, o de melhor filme estrangeiro.

Depois de A Trapaça/Il Bidone, de 1955, em que contracenou mais uma vez com um ator americano, Broderick Crawford, veio o extraordinário sucesso de público e crítica de Noites de Cabíria, de 1957.

O filme ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, o segundo de Fellini, e Giulietta levou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes.

“Ela moldou uma persona feminina na tela muitas vezes comparada ao pequeno vagabundo de Chaplin”, define o excelente livro Actors & Actresses, editado por James Vinson. “Alguns críticos reclamam que ela simplesmente expressava as sensações superficiais e a sentimentalidade em que as histórias escorregadias e mecânicas de Fellini se baseiam, mas qualquer pessoa que vir sua atuação em La Strada verá a sensibilidade e a sutileza de expressões que são tudo, menos mecânicas. Em Le Notti de Cabiria, ele nos dá uma interpretação contida mas dolorosa de uma prostituta ingênua.”

O texto do Actors & Actresses sobre Giulietta conclui dizendo que, como a imagem atriz ficou tão umbilicalmente ligada à obra de Fellini, ela acabou não tendo chance de ser chamada por outros diretores. O que, naturalmente, é uma grande pena.

Caminhadas sem rumo de “seres dominados pelo poder de seus sonhos”

“As peripécias de uma trupe de atores e humoristas que se apresentam em teatros de província, carregando suas vãs esperanças, suas ilusões perdidas, seus ideais abandonados”, diz o Guide des Films de Jean Tulard. “Atrás dessa sátira, percebem-se a emoção e a ternura. Este filme anuncia um tema recorrente na obra de Fellini: as caminhadas sem rumo ‘de seres dominados pelo poder de seus sonhos’, como diz Pierre Leprohon.”

Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4: “Primeiro filme de Fellini (embora co-dirigido) é uma história bastante comum da bela Del Poggio lutando nos music halls de pequenas cidades para se transformar em uma estrela. Algumas cenas engraçadas e tocantes, apresentando as excentricidades usuais de Fellini.”

Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, que acompanhava atentamente o cinema europeu, escreveu (na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira de 1001 Noites no Cinema):

“O primeiro filme dirigido por Federico Fellini (trabalhando com Alberto Lattuada como co-diretor) tem uma história de bastidores do teatro que ele retomou mais tarde na grande e kitsch fantasmagoria Julieta dos Espíritos. Giulietta Masina faz a amante madura do presidente de uma empresa de turismo; ele foge com uma moça mais jovem, depois volta para ela.”

Dame Kael endoidou. Não tem nada de presidente de uma empresa de turismo; a personagem de Giulietta, Melina Amour, era a namorada de um dos “astros” da trupe mambembe, o mais veterano, que se considerava um grande artista, Checco Dal Monte (Peppino De Filippo).

Ela prossegue:

“Um filme muito simples e, em alguns aspectos, espalhafatoso, mas Fellini exibe seu talento extraordinário para o cenário triste, o artista miserável, a corista velha e gorda, o cantor que nunca alcança a nota mais alta. Embora trate de ‘artistas’, não trata de talento ou vocação artística; sua especialidade é revelar a pobreza da vida artística e as esperanças desalentadas dos artistas. Para Fellini, a magia do show business está na auto-ilusão. Ele consegue algumas de suas imagens mais memoráveis na sequência com um trupe numa estrada secundária, à noite, e no espetáculo no palco representando as glorificação de uma deusa sexual.”

 A única brasileira a aparecer em um dos filmes do gênio de Rimini

Falta falar de Vanja Orico.

Quando o filme já vai se aproximando do fim, Checco Dal Monte está se iludindo de que poderá formar a sua própria companhia artística, para dar a Liliana o status de estrela que ela persegue. Está sem uma lira sequer, e foi despejado da pensão em que ocupava um quarto humilde. Acabou de ficar conhecendo Johnny, um trompetista americano (o papel do já citado John Kitzmiller), uma espécie de hippie avant la lettre que vive pelas ruas a exaltar a liberdade. “Eu gostaria de encontrar mais pessoas livres como você, loucas como eu”, diz ele, num italiano arranhadíssimo para Checco.

E estão os dois, Checco e Johnny, perambulando pelas ruas de Roma na alta madrugada quando, na base da escadaria que leva a uma pequena igreja, se deparam com umas três ou quatro pessoas em torno de uma mulher sentada no chão. A mulher não é bela, não; na verdade, é bem feia – é um tipo bastante esquisito. O adjetivo felliniano ainda não existia, mas a mulher é bem felliniana – nada comum, esquisitíssima.

Alguém diz que é uma cantora brasiliana, chamada Moema. E então Vanja Orico põe-se a cantar, acompanhada de seu violão, uma versão bastante sofrível de “Meu limão, meu limoeiro”.

A câmara do diretor de fotografia Otello Martelli, que já havia se deliciado com caras esquisitas, estranhas, feias, nas platéias da trupe mambembe, se toma de amores pelo rosto de Vanja Orico.

Foi a primeira vez que Evangelina Leiva de Carvalho Orico, nascida em 1930 no Rio de Janeiro, apareceu numa tela de cinema – e num filme do futuro Maestro, o genial Federico Fellini.

Conta assim esse fascinante miracolo de San Gennaro a preciosa Enciclopédia do Cinema Brasileiro, editada por Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda:

“Vanja é filha do escritor e diplomata paraense Oswaldo Orico e de Clara Orico. Após concluir o curso secundário, Vanja cursou o Conservatório de Música Santa Cecília, recebendo uma bolsa de estudo com duração de três anos. Morou na Itália no final dos anos 40. Estudou no Colégio das Irmãs Ursulinas, em Roma, de disciplina rígida. De espírito rebelde, Vanja conseguia escapar do controle das freiras para fazer passeios por Roma. Num desses passeios, cruzou com a equipe de Mulheres e Luzes (1949), dirigido por Alberto Lattuada e Federico Fellini, que estava sendo filmado na Piazza Navona. Ao percebê-la, a produtora Bianca Lattuada foi abordá-la dizendo que precisavam de um tipo brejeiro como o dela, com aparência de cigana, para completar o elenco.”

A grande enciclopédia erra o ano de lançamento de Mulheres e Luzes, mas a descrição que faz é preciosa.

Um ano depois de Mulheres e Luzes, em 1952, Vanja Orico voltou a ser vista em telas européias, no papel de Maria Clódia, em O Cangaceiro, de Lima Barreto – e aquele filme soou tão excêntrico, tão Tiers Monde, no festival que tanto adora o Terceiro Mundo, que saiu de lá com um prêmio especial. A atuação dela em O Cangaceiro foi elogiadíssima. No filme, ela canta duas músicas, “Muié Rendeira” e Sodade meu bem sodade”.

Como diz outro dos maiores realizadores de toda a História do Cinema, Woody Allen, ele mesmo um declarado fã de Federico Fellini, e que também abriu espaço em um de seus filmes para uma atriz brasileira, a maravilhosa Denise Dumont, não basta ter talento – é preciso ter sorte. Denise Dumont teve a sorte de ser escolhida pelo gênio do Brooklyn para cantar uma canção em A Era do Rádio. Vanja Orico é a única brasileira a aparecer em um dos filmes do gênio de Rimini.

Anotação em setembro de 2017

Mulheres e Luzes/Luci del Varietà

De Alberto Lattuada e Federico Fellini, Itália, 1951

Com Peppino De Filippo (Checco Dal Monte), Carla Del Poggio (Liliana Antonelli), Giulietta Masina (Melina Amour), John Kitzmiller (Johnny, o trompetista americano), Dante Maggio (Remo), Checco Durante (dono de teatro), Gina Mascetti (Valeria del Sole), Giulio Calì (Edison Will, o mágico), Silvio Bagolini (Bruno Antonini), Giacomo Furia (Duke), Mario De Angelis (Maestro), Vanja Orico (Moema, a cantora brasileira), Enrico Piergentili (o pai de Melina), Renato Malavasi (o homem do hotel), Joe Falletta (Bill,o pistoleiro), Folco Lulli         (Adelmo Conti, o auxiliar do comendador), Carlo Romano (Enzo La Rosa, o ricaço da cidadezinha)

Roteiro Federico Fellini, Alberto Lattuada & Tullio Pinelli

Fotografia Otello Martelli

Música Felice Lattuada

Montagem Mario Bonotti

Gerente de produção Bianca Lattuada

Produção Alberto Lattuada, Federico Fellini, Capitolium . DVD Versátil.

P&B, 93 min (1h33).

***

Título no Reino Unido: Lights of Variety. Nos EUA: Variety Lights. Na França: Les Feux du Music-hall.

8 Comentários para “Mulheres e Luzes / Luci del Varietà”

  1. Na rica entrevista que concordou em dar para o jornalista Giovanni Grazzini, em 1983, (na íntegra em “Entrevista Sobre o Cinema”, Editora Civilização Brasileira, 1986,tradução de José Alberto de Lima Campos). Fellini falava de tudo menos de seus filmes. Para conseguir que o diretor fale dos filmes, o jornalista faz uma proposta:

    Grazzini: Você tem fortes resistências para falar de seus filmes. Eu lhe proponho, então, uma espécie de jogo; eu digo um nome, e você, como num teste de associações livres, diz aquilo de que se lembra, o que lhe vem na mente. Comecemos, então: Luci del varietà (Mulheres e Luzes)?

    Fellini responde: A aurola lívida. À espera da “aurora lívida”, e Peppino De Filippo que na estrebaria da grande aldeia onde nos encontrávamos nos contava sobre a Nápoles de sua infância, o teatro San Carlino, Antonio Petito, o mítico Polichinelo chamado Totonno, o louco, Scarpetta, De Marco, chamado Mfrù, e outro De Marco, Gustavo, o mestre de Totó; um mundo picaresco de glórias e farrapos, de aventuras a Thyl Eulenspiegel, Pinóquio, Dom Quixote. Contos fabulosos de autores geniais que não existem hoje, encarnações que jamais se repetirão. Escutávamos, encantados, e o estupendo fanfarrão se divertia também com seus próprios contos, com a forma maligna de escarnecimento de seus personagens, preguiçosos e arrogantes: até que alguém da produção de precipitava gritando: “A aurora lívida! Todos para fora, é a aurora lívida!”

    Assim estava definida no roteiro: “aurora lívida”, e todos, mesmo o mais rude chefe de grupo, tinham adotado essa expressão um pouco literária. Por dias e dias, sacudindo a cabeça, com exagerada preocupação, diziam a Lattuada e a mim: “Vêem que falta nos fez esta manhã a aurora lívida? Nos meses passados estivemos cheios de auroras lívidas!” A aurora lívida tinha se tornado uma “coisa”, como um lanche, algo fácil de se achar, de se consumar. No fundo, são essas histórias que quem faz cinema recorda com mais vontade, talvez mesmo as únicas de que se recordam: o aguaceiro inesperado, a atmosfera do passeio ao campo que fracassa, e que se ajeita da melhor maneira, ou sob uma árvore ou dentro do caminhão dos eletricistas, e os mais espertos num curral, numa invasão quase militar, benevolamente arrogante, convidando os cidadãos a prepararem imediatamente uma omelete.

    Essa desenvoltura, esse interesse distraído, ou, de forma mais simpática, aquele ar de jogo no qual nós do cinema tratamos as coisas e as pessoas, como se o mundo inteiro fosse um set à nossa disposição, um imenso local onde podemos meter as mãos sem pedir licença, faz parte da alienação, do preço do ofício, mais ou menos como o pintor, para o qual os objetos, os rostos, as casas, o céu, são apenas formas das quais pode dispor. Para o cinema, tudo se transforma em uma natureza morta sem limites, e mesmo os sentimentos das outras pessoas são uma coisa da qual se pode dispor. É um delírio, uma embriaguez semidivina de poder supremo, e é esse sentimento que liga poderosamente aventureiros, invasores, predadores, devastadores, que cria as associações de maior compromisso, amizades definitivas, pelo menos até que o laço mágico que é a elaboração do filme junte tudo. No mesmo instante em que o último refletor se apaga e a viagem termina, até mesmo a temperatura da amizade, do namoro, se esfria rapidamente retornando a distância, a indiferença. Não se reconhece mais nada, até o próximo filme quando todos se reencontram, se abraçam, com gritos de entusiasmo e dilúvios de recordações.”

    Em “Fellini, uma biografia” (editora L&PM, 1992, tradução de Ana Maria Capovilla), o escritor, jornalista e crítico italiano Tullio Kezich, dedica um capítulo inteiro a essa passagem, do Fellini roteirista ao Fellini também diretor. E explica, em detalhes, a sociedade de famílias, Lattuadas e Fellinis, para a produção do filme “Mulheres e Luzes”.

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