Everything We Loved, que no Brasil ganhou no título um advérbio e virou Tudo o Que Amamos Profundamente, de 2014, é o filme de estréia do realizador neo-zelandês Max Currie, também autor do roteiro original.
É um drama familiar duríssimo, tristíssimo, dos mais apavorantemente tristes que vi nos últimos muitos tempos.
O rapaz tem talento, e o filme consegue envolver o espectador, levar o espectador para dentro do drama. Ajudam muito nesse processo os três atores principais, que estão na tela praticamente todos os 101 minutos de duração – Brett Stewart, Sia Trokenheim e Ben Clarkson. Um casal aí pelos 30 e muitos, quase 40 anos, e um garoto de uns cinco anos. Os demais personagens aparecem muito pouco.
Tudo o que Amamos Profundamente foi exibido em diversos festivais de cinema ao redor do mundo. Passou, entre outros, nos festivais de Chicago, Munique e Palm Springs, e foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2014, o mesmo ano de seu lançamento. Ele está também disponível no Now.
A trama é apresentada de forma a surpreender o espectador com um fato de imenso impacto logo no princípio da narrativa. Assim, a rigor, qualquer relato sobre a história, a partir daqui, é spoiler.
Atenção: spoiler. Quem tiver interesse em ver o filme não deve ler a partir de agora
Todas as sinopses do filme adiantam de que se trata, mas eu ando cada vez mais cuidadoso com essa coisa de spoiler. Repito e insisto, então: caso o eventual leitor não tenha ainda visto o filme, é melhor não ler a partir daqui, ou perderá a surpresa que vem quando o filme ainda está bem no início.
O filme começa com cenas de filmes domésticos. Uma mulher grávida anda pela casa, com o marido – filmadora em punho – atrás. Em outro filminho caseiro, a mesma mulher – veremos depois que se chama Angela, Angie, o papel de Sia Trokenheim – diz que o bebê está chutando muito, e chama o marido para vir sentir.
Numa terceiro filmete, vemos o marido – Charlie, o papel de Brett Stewart – em uma piscininha de plástico, e um garoto lourinho de uns dois, talvez três anos, entrando na piscininha. Dessa vez, é claro, é a mãe que está filmando.
Entre um filmete e outro, há cortes para que apareçam, em letras brancas sobre fundo preto, os nomes das companhias produtoras. Uma delas é New Zealand Film Commission, que é para espectador algum poder dizer que não sabia que o filme é da Nova Zelândia, a terra de Peter Jackson.
O nome do filme aparece então, em letras brancas sobre fundo totalmente preto.
A tela permanece preta por uns dois segundos a mais do que seria de ser esperar.
Vemos então um garotinho lourinho, aí de uns 5 anos, num quarto de criança. Charlie está tentando brincar com ele, mas o garoto tem o semblante fechado, e não responde ao adulto.
Nova sequência: o garoto está dentro da banheira, Charlie está conversando com ele enquanto dá banho nele. Diz para o garoto que ele deve colocar a toalha sobre os olhos, para evitar que entre sabão porque aí os olhos ardem. Pergunta se pode tentar outra vez, e entrega a toalha para o garoto – que joga a toalha longe.
Nova sequência: o menino está de pijama, num corredor, sentado no chão. Charlie tenta convencê-lo a ir se deitar. Faz até uma mágica com um caixa de fósforos, mas o garoto não se move dali. Charlie tenta pegá-lo no colo, o garoto se esquiva, e diz: – “A mamãe vem me pegar”.
Charlie, com muita suavidade, diz que isso não vai acontecer, porque a mãe dele morreu. “Lembra?”, pergunta.
As sequências iniciais vão deixando dúvidas na cabeça do espectador
Essas primeiras sequências do filme, apresentadas exatamente como relatei, são feitas com o claro propósito de confundir o espectador, de conduzi-lo a um erro.
É absolutamente natural que, a esta altura – o filme está apenas chegando aos 5 minutos, quando Charlie diz para o garotinho que a mãe dele morreu -, o espectador pense que o garotinho é o filho do casal que havíamos visto nos filmetes caseiros.
E que Charlie, agora viúvo, esteja enfrentando o dificílimo recomeço da vida sem sua mulher, com o filho sem sua mãe.
Surgirão indícios de que não é bem assim – e o espectador terá todos os motivos para ficar um tanto confuso.
Noticiário da televisão fala de buscas por um garoto desaparecido, Tommy – o mesmo nome do garotinho que julgamos ser o filho de Charlie.
Charlie fala para Tommy que ele não é o pai que o fez, mas é o pai que vai amá-lo e cuidar dele sempre.
É só quando o filme está com uns 40 minutos, e surge na casa em que estão Charlie e Tommy a mulher que aparecia nos filmetes caseiros, que as coisas são explicitadas, ditas claramente. As suspeitas que o espectador foi acumulando se confirmam. E o que se confirmam são as piores suspeitas que poderia haver.
O filhinho de Charlie e Angie havia morrido.
Angie tinha tentado se matar, tivera depressão profunda, ficara um tempo em hospital, depois sob os cuidados de uma amiga, Jane (Jodie Rimmer).
Enquanto Angie estivera fora, Charlie havia visto por acaso, na rua de uma cidade próxima – a casa deles fica meio distante da cidade, é uma espécie de chácara –, um menino extraordinariamente parecido com o filhinho morto.
E tinha sequestrado o garoto, Tommy.
A polícia da Nova Zelândia está procurando o garoto Tommy – que está sendo muitíssimo bem tratado por um homem que surgiu em sua vida.
Tommy foi se afeiçoando a Charlie. Já havia até começado a chamá-lo de papai quando Angie voltou para casa.
Para convencer Angie a aceitar aquela arrematada loucura – passar a admitir como filho o filho de uma outra mãe, e conviver com um marido que havia sequestrado uma criança -, Charlie diz para a mulher que havia observado a família, que a mãe e o padrasto de Tommy eram drogados, que tratavam mal o garoto.
Eles estavam, na verdade – argumenta o marido para a mulher -, resgatando Tommy de uma situação horrível. Salvando sua vida.
O espectador vai se afeiçoando àquele homem que perdeu o filho e a cabeça
É uma situação absurda, grotesca, tristíssima, apavorante – mas o autor e diretor Max Currie de fato tem talento, e, com a ajuda das interpretações sensíveis, fascinantes do trio central, o filme consegue de fato envolver o espectador. Eu fui ficando triste, acabrunhado, cada vez com mais simpatia daquele homem bom que, depois de ter perdido o filho, perdeu também a cabeça e fez uma idiotice da qual não poderia haver saída possível. E daquela pobre mulher. E daquele pobre garoto.
Não é uma trama urdida com absoluta perfeição, me parece. Há alguns furos. Não se explica por que Charlie deixou de trabalhar como mágico, já que tem evidente talento. Parece bastante estranho que, de repente, ele e Angie consigam voltar a atuar como mágico e sua assistente durante um fim de semana – se eram capazes de fazer isso de novo num fim de semana, por que tinham parado? Sim, o trauma da perda do filho pode ter interrompido a carreira dela – mas por que também a dele?
Também parece bastante sem sentido que ninguém da platéia de uma das apresentações do retorno seja capaz de reconhecer o garoto cuja foto estava o tempo todo na TV.
Mas isso são minudências. É um bom filme – bom, mas terrivelmente apavorante, triste a não mais poder.
O autor e diretor se diz fascinado por pessoas boas fazendo coisas más
Vários neo-zelandeses filmaram também nos Estados Unidos e na Inglaterra. É o caso, além de Peter Jackson, que é o mais famoso e bem sucedido de todos, também da diretora Christine Jeffs, do diretor e roteirista Vincent Ward e da atriz Alice Englert.
É interessante notar que, até 2015, pelo menos, nem o diretor Max Currie nem os atores principais deste Everything We Loved havia feito filmes fora da Nova Zelândia.
A atriz Sia Trokenheim nasceu na Suécia e começou lá sua carreira na TV e no teatro. Mudou-se para a Nova Zelândia em 2001 para cursar a Unitec School of Performing and Screen Arts, e radicou-se lá, onde tem trabalhado no cinema, na TV e no teatro. Um detalhinho: Sia Trokenheim tem uma semelhança física impressionante com a cantautora canadense Joni Mitchell.
Os produtores criaram uma bela frase para servir como sinopse e ao mesmo tempo chamada marqueteira:
“Um mágico tímido convence sua antes feliz esposa a voltar à vida com sua maior ilusão – um garoto.”
São bons de marketing. Divulgaram que o diretor e autor Max Currie “descobre uma improvável compaixão por personagens que a maioria de nós chamaria de monstros”. E que o próprio Max Currie disse a seguinte frase: “Sou fascinado por pessoas boas fazendo coisas más”.
Pessoas boas fazendo coisas más. É exatamente isso que o espectador sente.
Não dá para ver aquele pobre casal como monstros. Sim, Charlie fez uma coisa monstruosa – mas ele é bom. É uma boa pessoa.
Pobre Charlie, pobre Angie. E pobre Tommy.
Credo, quanta tristeza.
Anotação em setembro de 2016
Tudo o Que Amamos Profundamente/Everything We Loved
De Max Currie, Nova Zelândia, 2014
Com Brett Stewart (Charlie Shepherd), Sia Trokenheim (Angela Shepherd), Ben Clarkson (Tommy Burroughs)
e Patrick Garbett (Hugo), Suzy Clarkson (repórter), Jodie Rimmer (Jane), Paul Harrop (Ben), Sophie Hambleton (Fiona), Oscar Seel (Matthew), Jason Hodzelmans (Rick), Katherine Kennard (Vanessa)
Argumento e roteiro Max Currie
Fotografia Dave Garbett
Música Tim Prebble
Montagem Dan Krcher
Produção Four Knights Film, New Zealand Film Commission, Park Road Post Production
Cor, 101 min
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