Beatrice é podre de rica, teve um monte de boas oportunidades na vida. Está em geral alegre, até demais; fala pelos cotovelos, sem parar. Donatella é de família pobre, teve uma vida cheia de perdas e tragédias; é frágil, calada, fechada em si mesma.
Têm, no entanto, pontos em comum. Ambas sofrem de problemas psiquiátricos, e tiveram condenações da Justiça. Conhecem-se num abrigo, uma espécie de manicômio judiciário bem administrado, com pessoal bem preparado, numa bela vila do interior da Toscana.
La Pazza Gioia conta a história do encontro dessas duas mulheres, interpretadas – maravilhosamente – pela mais veterana Valeria Bruni Tedeschi e pela jovem Micaela Ramazzotti.
A interpretação das duas atrizes é estonteantemente maravilhosa. É um estupor.
É uma história original do realizador Paolo Virzì, que assina o roteiro ao lado de Francesca Archibugi. Tanto Paolo Virzì quanto Micaela Ramazzotti – marido e mulher na vida real – já haviam me impressionado muito em A Primeira Coisa Bela, de 2010, uma beleza de filme.
A milionária Beatrice faz tudo para ficar amiga da novata Donatella
La Pazza Gioia começa com um tom cômico: é impossível deixar de rir de Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi, na foto acima), a milionária que fala sem parar, que fica contando a quem passar pela frente histórias de quando ela esteve com o presidente da República, com tal e tal figurão, com Bill e Hillary Clinton – ele, segundo ela, muito simpático; Hillary, uma boba.
Mete-se na vida de todo mundo, quer saber tudo sobre todas as companheiras de abrigo, a Villa Biondi. Fica curiosíssima quando chega uma nova inquilina, uma moça jovem, com a perna quebrada, cheia de tatuagens – Donatella (Micaela Ramazzotti, na foto abaixo).
Beatrice chega a arrombar uma estante para ler o prontuário de Donatella. Depois, acaba tendo uma oportunidade fantástica de conhecer a recém-chegada: Donatella está na sala da médica da Villa Biondi, Fiamma (Valentina Carnelutti), aguardando a chegada da doutora, quando Beatrice passa por ali. A mais jovem pergunta se ela é a médica – e, esperta, Beatrice se faz passar pela doutora Fiamma.
Não demora, claro, para que chegue a verdadeira médica. Donatella fica de pé atrás com a mulher que mentiu para ela, mas Beatrice tanto insiste que as duas acabam se aproximando. A mais velha consegue que a mais jovem divida o quarto com ela.
Começa como comédia, tem um tanto de aventura – mas vira uma drama pesado
Dá para perceber que Beatrice sofre de distúrbio bipolar, que até alguns anos atrás era chamado de psicose maníaca-depressiva, PMD. Na maior parte do tempo, está na fase de excitação. Já Donatella tem tendência a depressão, foi usuária de droga.
O espectador não fica sabendo exatamente de que cada uma das duas protagonistas da história foi acusada. Os detalhes só serão revelados bem mais para o final dos 118 minutos de duração do filme, e por isso, claro, não tem sentido adiantá-los aqui. Mas é dito, em diálogos já nos primeiros 20, 30 minutos do filme, que Donatella cometeu um crime grave. E Beatrice, por sua vez, teve duas condenações, e foi proibida pelo juiz de sair da área da Villa Biondi.
Apesar dessa ordem, o diretor do abrigo, o doutor Giorgio Lorenzini (Tommaso Ragno), em uma reunião de avaliação com seu pessoal, decide permitir que Beatrice, juntamente com Donatella – já que as duas a essa altura eram inseparáveis –, participe, num local próximo da Villa Biondi, de atividades com plantas.
Depois de uma tarde nessas atividades, as várias internas do abrigo escaladas para a tarefa estavam à espera da van que as levaria de volta para a Villa. A van se atrasa, Beatrice vê um ônibus passando, e corre, juntamente com Donatella, até ele.
Não tinham intenção de fugir – era só a excitação, a energia à solta de Beatrice que as impeliu para o ônibus.
Mas a partir daí – estamos, nesse momento, com uns 40 minutos de filme – elas vão se envolver em uma cadeia de acontecimentos que as manterá longe da Villa Biondi.
Haverá situações que fazem lembrar algo como uma aventura. Em alguns determinados momentos, o espectador certamente se lembrará de Thelma e Louise. Os mais velhos talvez se recordem de Il Sorpasso, o clássico de Dini Risi de 1962 com Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant, no Brasil Aquele Que Sabe Viver.
Mas não é aventura, e não tem mais absolutamente nada a ver com comédia. Apesar da palavra Gioia do título (e gioia, parece, tanto é o substantivo alegria quanto o adjetivo alegre), La Pazza Gioia, literalmente a louca alegre, vai ficando cada vez mais drama pesado, denso, angustiante.
Como em seu filme anterior, Paolo Virzì fla da relação pais-filhos
Em A Primeira Coisa Bela – como este aqui, uma história original, criada diretamente para o filme –, o realizador Paolo Virzì contrapôs duas personalidades bem diferentes, como são diferentes em La Pazza Gioia a milionária e alegre Beatrice e a pobre e triste Donatella.
No filme de 2010, Anna (interpretada pela belíssima Micaela Ramazzotti quando jovem, e pela deusa Stefania Sandrelli quando já velha) é uma mulher sofreu demais na vida, enfrentou dramas pesados, comeu o pão que o diabo amassou – e sempre foi alegre, sorridente, bem disposta, pra cima.
Já Bruno, filho de Anna (interpretado por Valerio Mastandrea) teve muito mais oportunidades na vida do que Anna – e é um homem amargurado, inseguro, não resolvido, infeliz. Pior ainda: em grande parte, responsabiliza o comportamento da mãe por suas próprias misérias.
O tema pais-filhos, tão presente em A Primeira Coisa Bela, também é importante em La Pazza Gioia. Quando o filme já se aproxima do fim, o espectador verá que a milionária mãe de Beatrice acha que a filha é um estorvo na sua vida. Chega mesmo a dizer para uma pessoa que acabou de conhecer que preferiria que a filha estivesse morta.
Do outro lado da escala social, o drama é bem parecido: Luciana, a mãe de Donatella (interpretada por Anna Galiena), demonstra não ter amor pela filha. Que também não gosta da mãe – e adora o pai. No entanto, o espectador verá também – com toda certeza chocado – que o pai de Donatella, Floriano (Marco Messeri), que a filha adora, tem em altíssima conta, é um homem brutal, insensível, que nunca deu carinho, afeto para ela.
É aquela coisa que sempre fica na minha cabeça: ser pai e mãe é algo de imensa responsabilidade. Não é para qualquer um. Se o mundo fosse perfeito, teria que haver concurso exigentíssimo para os candidatos a pais; só passariam os que provassem ter muito talento e competência.
Fizeram um grande esforço para que Micaela Ramazzotti aparecesse feia
Naturalmente, não reconheci a atriz que faz Luciana, a mãe de Donatella, que aparece apenas em algumas sequências – verdade que longas. Só agora, ao pegar os nomes dos atores para fazer a ficha técnica desta anotação, soube que ela é Anna Galiena, que vimos jovem, belíssima, sensualíssima, como Mathilde, a cabeleireira do título de O Marido da Cabeleireira (1990), de Patrice Leconte.
Uma coisa muito impressionante: em quase todas as sequências em que Donatella aparece, ela não está bela. Bem ao contrário: muitas vezes ela parece bem feia, de tão maltratada pela vida e até por ela própria. Há momentos em que ela fica bastante parecida com Hilary Swank – e Hilary Swank, excelente atriz, não é, de forma alguma, uma mulher bonita.
Prova de que Micaela Ramazzotti é uma grande atriz. Porque Micaela Ramazzotti é belíssima, maravilhosamente bela. Passou por uma metamorfose, com a ajuda, claro, da equipe de maquilagem, para parecer feia.
Foi a primeira vez que ela trabalhou ao lado de Valeria Bruni Tedeschi. Mas foi a segunda vez que Valeria trabalhou sob a direção de Paolo Virzì: haviam feito juntos Capital Humano (2013).
Quando o filme estava sendo produzido, a Itália fechou os manicômios judiciários
Em entrevista, Paolo Virzì contou que ele e pessoas de sua equipe visitaram diversas instituições para doentes mentais em Livorno, Viareggio e Montecatini, na Toscana (ele mesmo é natural de Livorno), e viram de tudo – desde lugares desanimadores, em que os pacientes pareciam ou dopados demais ou largados, abandonados, até lugares com boas equipes, com gente cheia de energia e disposição. “Encontramos muitos médicos, psiquiatras, psicoterapeutas, pessoal paramédico, competentes, motivos, apaixonados, com uma devoção total e tocante, apesar de enfrentar algumas carências de material ou de espaço físico mais adequado. Criamos essa Villa Biondi inspirados nos elementos que observamos na região.”
O filme é uma co-produção Itália-França de 2016; estreou em maio de 2016 na Itália e em junho na França.
Na abertura do filme, um letreiro informa o onde e o quando: “Villa Biondi – Paggio Alle Corti (Pistoia) – Maio de 2014”.
Nos créditos finais, vem a seguinte informação: “Uma lei de 2015 decretou o fim dos manicômios judiciários. Só metade dos pacientes conseguiu acomodação em comunidades com projetos de reabilitação ou abrigos.”
Não sei se quando começou a preparar o filme o realizador Paolo Virzì já tinha essa intenção, mas seu filme acabou se tornando um manifesto em defesa da existência de boas comunidades ou abrigos para doentes mentais como aquele criado para o filme, a Villa Biondi.
Anotação em janeiro de 2017
Loucas de Alegria/La Pazza Gioia
De Paolo Virzì, Itália-França, 2016
Com Valeria Bruni Tedeschi (Beatrice Morandini Valdirana), Micaela Ramazzotti (Donatella Morelli)
e Valentina Carnelutti (doutora Fiamma Zappa), Sergio Albelli (Torrigiani, do Servizi Sociali), Tommaso Ragno (doutor Giorgio Lorenzini), Luisanna Messeri (Luisanna, a enfermeira-chefe), Francesco Lagi (Francesco, o psicólogo), Giada Parlanti (psicóloga), Paolo Vivaldi (enfermeiro Basola), Alice Terranova (enfermeira), Chiara Arrighi (enfermeira), Fabrizio Brandi (Giancarlo), Maria Grazia Bom (irmã Pia), Mimma Pirré (irmã Diletta). Anna Galiena (Luciana Brogi, a mãe de Donatella), Marco Messeri (Floriano Morelli, o pai de Donatella), Bob Messini (Pierluigi Aitiani, o marido de Beatrice), Roberto Rondelli (Renato Corsi, o amante de Beatrice)
Roteiro Paolo Virzì e Francesca Archibugi
Baseado em história de Paolo Virzì
Fotografia Vladan Radovic
Música Carlo Virzì
Montagem Cacelia Zanuso
Casting Elisabetta Boni e Dario Ceruti
Produção Lotus Productions, Manny Films, Rai Cinema.
Cor, 118 min
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Título nos EUA: Like Crazy. Na França: Folles de Joie.