Samba é um belo filme. É rico, caloroso, comovente, emocionante, engraçado, mesmo falando de coisas feias, tristes, horrendas. Mete humanidade, esperança, alento em tema associado à pior podridão.
Por isso mesmo, exatamente por isso, é um filme altamente ofensivo. Ofende os racistas, os supremacistas de qualquer categoria, os cínicos, os egoístas, os mal intencionados todos, mesmo os que não admitem que são racistas, xenófobos.
E os jovens diretores Éric Toledano e Olivier Nakache ofendem também, e frontalmente, a todas as pessoas que não perdoam quem faz sucesso. Afinal, o filme anterior da dupla, Intocáveis/Intouchables, de 2011, foi um êxito absolutamente extraordinário, com incríveis 19,2 milhões de espectadores na França. Foi o segundo filme francês de maior bilheteria no país em toda a História, atrás apenas, e por pouco, de A Riviera Não é Aqui/Bienvenue Chez les Ch’tis, que Dany Boon lançou em 2008.
Assim, racistas, xenófobos, assumidos ou envergonhados, e mais a legião de gente que não tolera o sucesso dos outros, têm o que parece ser boas desculpas para torcer o nariz para este Samba. Podem dizer coisas assim, como disse um leitor do site francês AlloCiné: ah, lá vêm de novo aqueles caras, reis do cinema comercial, que descobriram a fórmula de agradar a muita gente fingindo que têm bons sentimentos…
Podem até dizer, empinando o narizinho: ah, mas nem de longe chegaram perto do sucesso do outro…
De fato, Samba ficou longe de Intocáveis. Lançado na França em outubro de 2014, ao longo de um ano foi visto por 3,1 milhões de espectadores em seu país. É um belíssimo número, sob qualquer aspecto – a não ser na comparação com o absoluto fenômeno que foi Intocáveis.
A crítica francesa aparentemente também se dividiu mais do que quanto ao filme anterior de Toledano e Nakache: levantamento do AlloCiné mostrou que 3 publicações deram a cotação máxima, de 5 estrelas, ao filme; 18 deram 4 estrelas, o que é um resultado maravilhoso. Mas 10 outras publicações deram 3 estrelas ou menos.
Para começo de conversa, um plano-seqüência de se aplaudir de pé
Samba é o quinto longa-metragem dos parceiros Toledano e Nakache, depois de Je préfère qu’on reste amis (2005), Nos jours heurex (2006), Tellement Proches (2009) e Intocáveis. (Os três primeiros aparentemente não tiveram lançamento comercial no Brasil.) Toledano é parisiense, de 1971; Nakeche é interiorano, de Suresnes, de 1973.
E é também a quinta vez que Omar Sy está no elenco de filmes da dupla. Omar Sy, 36 anos de idade no ano de lançamento de Samba, 1 metro e 90 de altura, jeito de forte como um touro, finíssima estampa, sorriso esplendorosamente belo, foi seguramente uma das grandes qualidades de Intocáveis, e repete a façanha aqui.
Desta vez, Omar Sy, francês de Trappes, Yvelines, descendente de pai do Senegal e mãe da Mauritânia, foi também um dos produtores.
Samba ainda não tem 20 minutos quando há um diálogo absolutamente delicioso entre o personagem de Omar Sy e o do ator Isaka Sawadogo. Os dois estão numa prisão, uma espécie de campo de detenção nos arredores de Paris para imigrantes ilegais.
Então o personagem de Isaka Sawadogo se apresenta para o outro: – “Jonas, como na Bíblia. E você?”
E o personagem de Omar Sy, o protagonista da história: – “Samba, como a dança”.
Samba Cissé – este é o nome que deram para ele seus pais, no Senegal.
O espectador vê Omar Sy-Samba Cissé pela primeira vez ao fim de um plano-sequência de fazer cinéfilo que se preza aplaudir de pé como na ópera. É a primeira tomada do filme – mas é uma tomada longa, em que a câmara vai percorrendo grande distância, passando por diversos ambientes, sem corte – uma única tomada, ou take, ou plano, que vale por uma sequência inteira.
É uma festa de gente muita rica, num grande restaurante ou salão de hotel fechado para o evento. Toca-se uma música animada, ritmada, que, para algum músico francês um tanto mal informado é um samba. Parece samba – mas as bailarinas se vestem um pouco como as moças se vestiam nas festas dos anos 20, ao som do charleston. Dezenas de dançarinos profissionais executam passos que fariam gente que sabe de fato sambar morrer de rir – mas estão animados, a festa é chique, tudo no capricho. Os noivos aparecem no meio dos dançarinos, dão o corte inicial no gigantesco bolo.
Quatro garçons seguram a base do bolo e vão caminhando com aquilo, e a câmara vai indo atrás. O salão está enfeitado com palmeiras estilizadas, feitas de material prateado, brilhante.
É uma decoração brega-tropical, uma homenagem ao Brasil feita por gente que só ouviu falar vagamente em Brasil, mas não conhece nada do país. É uma mistureba danada de estilos – mas as pessoas parecem estar se divertindo à beça.
Lá vão os garçons carregando o gigantesco bolo, e lá vai a câmara, apoiada sossegadamente num carrinho de rodas de pneus bons, que garantem uma estabilidade total, nenhum tremor, por pequeno que seja. Garçons passam apressados de um lado para outro, e lá vai a câmara caminhando pelos corredores, até chegar à imensa cozinha, onde o bolo será cortado em pedaços – dezenas e dezenas de pratinhos estão dispostos nas mesas da cozinha, à espera do corte do bolo.
Um dos muitíssimos garçons passa diante da câmara carregando um grande número de pratos sujos, e aí a câmara vai atrás dele, e ele caminha por mais corredores, atravessa novas portas, a câmara sempre atrás, e aí finalmente aquele garçom e a câmara chegam a um salão também muito espaçoso – o lugar do fundo da cozinha em que os pratos são lavados.
Vemos que diversos dos homens que lavam os pratos são negros. Obviamente imigrantes ilegais, que a rigor, não poderiam estar trabalhando, ganhando dinheiro. Chegaram como imigrantes ilegais, agora são trabalhadores ilegais.
Entre eles está o grandalhão que – saberemos daqui a pouco – se chama Samba. Sambá, como se diz en français.
Depois desse magnífico plano-sequência inicial, há uma tomada externa: do lado de fora do restaurante, numa viela, diversos trabalhadores, Samba entre eles, aproveitam um breve momento de descanso para fumar um cigarrinho.
Tratar de assuntos sérios, pesados, da forma mais leve e agradável possível
Éric Toledano explicou numa entrevista que fazia muito tempo que ele e Nakache pensavam em fazer um filme sobre “esses trabalhadores que a gente vê fumando do lado de fora dos restaurantes – africanos, asiáticos, fazendo uma pausa rápida”. Chegaram até mesmo a escrever algumas páginas de um roteiro sobre esse tema.
E aí os dois realizadores acabaram se deparando com o romance Samba pour la France, de Delphine Coulin, lançado em 2011. Entraram em contato com a autora, e fizeram a adaptação do romance para o cinema – nos créditos, o roteiro é assinado pelos dois diretores, “com a colaboração de Delphine Coulin e Muriel Coulin”.
Mas eles tomaram liberdades em relação ao romance. “Partimos do romance e de toda a trama do livro”, disse Nakache. São os mesmos personagens. Quando havia uma passagem engraçada no livro, mantínhamos o tom; quando era muito triste, sombrio, tentávamos tornar mais leve, em particular através dos diálogos.”
Essa é a receita de Toledano e Nakache, tanto em Intocáveis quanto neste Samba: tratar de tema sério, duro, pesado, de forma menos sombria do que outros realizadores fariam. Com algum humor, alguma graça. Algum bom humor e alguma esperança, porque sem eles não há jeito na vida.
Assim, em Intocáveis eles falaram da vida de um homem milionário tornado tetraplégico por um acidente (o papel do grande François Cluzet), e do encontro dele com um despossuído de todos os tipos de bens materiais, um imigrante pobre que, no entanto, tem humor, disposição para a vida (o papel, claro, do mesmo Omar Sy). E fizeram uma comédia deliciosa, que levou 19,2 milhões de franceses às bilheterias dos cinemas. Quase 20 milhões, num país de 67 mil habitantes!
E aqui falam de imigração, de imigrantes ilegais, da vida duríssima de quem tem que ficar constantemente fugindo da polícia, e tem que se sujeitar aos mais duros trabalhos em troca de pagamento mínimo – e tudo rola da forma mais leve, mais bem humorada possível.
Conselho da moça experiente: não se envolva com eles. A outra vai se envolver
Samba Cissé está na França já há dez anos. Vive com um velho tio, Lamouna (Youngar Fall), que está no país há ainda mais tempo. Faz tempo que Samba trabalha na cozinha de restaurantes, lavando pratos, fazendo serviços gerais, mas tem aprendido também um pouco da cozinha propriamente dita, e espera uma chance de começar como auxiliar de auxiliar. Em vez disso, acontece de – nos momentos iniciais da ação – ser identificado como imigrante ilegal, sem documentos, e então é preso e levado para o centro de detenção de imigrantes ilegais situado, não por acaso, junto de um aeroporto, nos arredores de Paris. (Não se identifica que é o Charles De Gaulle, não se explicita qual é o aeroporto.)
Samba vai ser atendido, auxiliado, por uma dupla de moças, uma bem mais jovem, Manu (Izïa Higelin, na foto abaixo, em seu segundo papel no cinema), outra já madura, Alice (o papel de Charlotte Gainsbourg, essa atriz em tudo por tudo fascinante).
As duas chegam juntas àquele centro de detenção, logo após o encerramento dos créditos iniciais; veremos que quem dirige o carro é a mais velha, Alice.
Não haverá uma explicação muito clara sobre quem elas são. Parecem ser assistentes sociais – veremos depois que trabalham numa ONG de ajuda a imigrantes despossuídos. Vão lá entrevistar os presos, obter as informações todas necessárias para a defesa deles, que será feita depois nos tribunais pelos advogados.
O que faz o espectador achar um tanto estranho é que é a mais jovem, Manu, que domina o ofício, e vai dando as instruções para a mais velha, Alice.
A primeira tomada após os créditos iniciais é uma tomada geral de uma área perto do aeroporto – vemos um avião na pista, e um carro que se aproxima. O espectador ainda nem viu a cara das duas, mas já ouve Manu fazer uma pergunta intrigante a Alice: – “Quer dizer que você tirou uma licença do trabalho e neste tempo está fazendo voluntariado?”
E Alice: – “É isso mesmo.”
Manu, a jovem experiente: – “Bem, por enquanto, apenas observe e tome nota.”
Manu ensina para Alice: não forneça seu telefone para eles, senão você vai receber telefonemas pedindo ajuda de madrugada. Jamais dê seu número para eles. Mantenha distância, não se envolva pessoalmente com eles.
Alice, é claro, é óbvio, vai sentir atração por Samba.
A personagem de Alice não existe no romance, foi criada pelos diretores
O espectador só vai ficar sabendo um pouco da história de Alice – quem ela é, o que aconteceu recentemente com ela, por que ela resolveu fazer trabalho voluntário durante um período de licença do trabalho, por que ela está de licença do trabalho – quando ela conta essas coisas para Samba, lá pela metade do filme. Como só acontece na metade do filme, não seria bom que eu antecipasse aqui.
Alice não existe no romance Samba pour la France. Foi criação da dupla de roteiristas-realizadores. A existência de Alice deu à dupla a oportunidade de colocar em cena “um verdadeiro casal de cinema, isso que ainda não tínhamos conseguido até agora”, segundo explicou Olivier Nakache.
Funcionou muito bem a existência de Alice. Funcionou bem o casal.
É, de novo, o encontro entre duas pessoas extremamente diferentes uma da outra, assim como foi o dos dois personagens centrais de Intocáveis. Alice é a tensão em pessoa, Samba é tranquilo; Samba não tem papéis, Alice tem até demais. Alice é francesa, branca, trabalha demais e gostaria loucamente de não ter aquele trabalho; Samba é imigrante, negro, precisa desesperadamente de trabalho, qualquer trabalho.
Vai surgir (bem a rigor, vai ressurgir), quando o filme já passa aí certamente de uns 40 minutos, um personagem interessantíssimo, Wilson, sujeito sempre alegre, jovial, malandrão, mulherengo, amante de dança – o protótipo do brasileiro, no imaginário de qualquer um, brasileiro ou estrangeiro. Wilson é interpretado – gostosamente – por Tahar Rahim (na foto abaixo), ator francês descendente de argelinos, que trabalhou no excelente O Passado (2013), do iraniano Asghar Farhadi.
A sequência em que Wilson e Samba estão lavando os vidros externos de um arranha-céu em Paris Nova, la Grande Arche de La Défense lá atrás, lá embaixo, é extremamente típica do estilo da dupla Toledano & Nakache. Samba está absolutamente apavorado – e a seqüência é mesmo apavorante, amedrontadora, faz você morrer de medo e de pena de quem executa aquele tipo de trabalho. Confortavelmente sentado na minha poltrona, eu senti vertigem, a tal ponto de desviar por um tempo o olhar.
Ao mesmo tempo, a seqüência é engraçada, bom astral, porque Wilson, figura sempre altíssimo astral, resolve dançar na plataforma de madeira, para ser visto pelas mulheres do grande escritório lá dentro do arranha-céu.
Há uma personagem que aparece pouquíssimo na tela, mas é bastante importante na história. Chama-se na verdade Magali, mas tem o apelido de Gracieuse. É a grande paixão da vida de Jonas, o imigrante ilegal que fica amigo de Samba no campo de detenção. Quando Samba está para sair do campo, Jonas pede, implora, que o outro encontre Gracieuse e dê notícias de Jonas.
Samba se esforça para atender ao pedido do amigo, e vai visitar os diversos salões de beleza de um determinado bairro – únicas pistas que Jonas tinha sobre o paradeiro da moça.
Quando Gracieuse finalmente aparece, é um estupor: ela não é apenas graciosa, é lindérrima. Tive a sensação de que já havia visto aquele rosto, e tinha mesmo: é Liya Kebede, a etíope de beleza avassaladora que em 2009 interpretou em Flor do Deserto uma personagem real, Waris Dirie, uma somáli de história de vida absolutamente trágica que se tornou supermodelo e depois porta-voz da ONU na luta contra a mutilação genital. Recentemente, Liya Kebede teve um papel – bem pequeno – no filme de Giuseppe Tornatore de 2013, O Melhor Lance.
O filme chega numa hora em que cresce na Europa a xenofobia
Não poderia haver hora mais apropriada para este hino à convivência entre seres díspares, de origens diferentes, este panfleto contra o racismo, a xenofobia, do que este tempo em que a Europa enfrenta a gravíssima questão da invasão de hordas de refugiados vindos da Síria e de outros países pobres e/ou abalados por guerras e ataques de fanáticos.
A tensão do momento leva a uma radicalização de posições. Talvez nunca como hoje a Europa tenha sido tão atacada pela expansão da xenofobia, do racismo, da intolerância.
Não deve ser pequeno o número de europeus que se sentem ofendidos por este filme belo em todos os sentidos, a mais pura estética e também a melhor ética.
Anotação em novembro de 2015
Samba
De Éric Toledano e Olivier Nakache, França, 2014.
Com Omar Sy (Samba Cissé), Charlotte Gainsbourg (Alice),
e Tahar Rahim (Wilson, na verdade Walid), Izïa Higelin (Manu), Isaka Sawadogo (Jonas Karanoto), Hélène Vincent (Marcelle), Youngar Fall (o tio Lamouna), Christiane Millet (Madeleine), Jacqueline Jehanneuf (Maggy), Liya Kebede (Gracieuse, na verdade Magali)
Roteiro e diálogos Éric Toledano e Olivier Nakache, com a colaboração de Delphine Coulin e Muriel Coulin
Baseado no romance Samba pour la France, de Delphine Coulin
Fotografia Stéphane Fontaine
Música Ludovico Einaudi
Montagem Dorian Rigal-Ansous
Casting Gigi Akoka
Cor, 118 min
Produção Quad Productions, Ten Films, Gaumont, TF1 Films, Korokoro. DVD Califórnia Filmes.
***1/2
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