A.J. Cronin era um autor de imenso sucesso em 1956 quando seu romance lançado seis anos antes, O Jardineiro Espanhol, virou filme. Aparentemente, pelo que dá para perceber pela longa sinopse do livro na Wikipedia, o filme foi bastante fiel ao espírito da obra, embora tenha feito algumas mudanças importantes na trama.
O médico e escritor escocês Archibald Joseph Cronin (1896-1981) era extremamente prolífico: publicou cerca de 60 obras. Houve 19 adaptações delas para o cinema. Nos anos 60, vários de seus livros estavam editados no Brasil, como o que é tido como sua obra mais importante, A Cidadela, e também As Chaves do Reino – este filmado por John M. Stahl em 1944, com Gregory Peck no papel principal. Li uns dois ou três dos livros dele, quando era adolescente.
Hoje em dia, seguramente pouquíssima gente sabe da existência do filme O Jardineiro Espanhol. A existência do próprio Cronin é pouco conhecida.
Aconteceu com ele um estranho fenômeno, pelo menos aqui: o mundo editorial brasileiro baniu seus livros. Depois que vi As Chaves do Reino, em março de 2015, fiz uma busca no site da Livraria Cultura. De fato, não havia ali um livro do autor disponível em português. Havia uma edição importada de The Keys of the Kingdom, e uma em alemão de A Cidadela, Die Zitadelle. Uma edição de Três Amores, seu segundo romance, de 1932, chegou a sair na coleção Grandes Romances da Abril Cultural, em 1985.
De lá para cá, A.J. Cronin saiu de circulação. Seus livros só podem ser encontrados em sebos, como mostra o site EstanteVirtual.com.br. Há vários exemplares de O Jardineiro Espanhol à venda; o livro foi editado pela Record.
O filme foi relançado há pouco no Brasil em DVD pela Cult Classic, uma dessas várias empresas que se aproveitam das obras que, por um motivo ou outro, não tem detentor de direitos autorais.
Não é um grande filme, mas é um interessante exemplo das histórias criadas por Cronin, um autor sempre disposto a discutir os valores morais e o comportamento das pessoas diante deles, e também uma perfeita amostra do tipo de cinema – formalista, acadêmico – que se fazia na Grã-Bretanha antes que jovens cineastas como Tony Richardson, Lindsay Anderson e Karel Reisz entrassem em cena querendo mudar tudo com seu free cinema, no final dos anos 50 e início dos anos 60, num processo bem semelhante ao dos realizadores da nouvelle vague francesa.
O filme trata da relação entre pai abandonado pela mulher e o filho garoto
O Jardineiro Espanhol é basicamente um drama familiar. Aborda a relação – em 1950 pouquíssimo usual, raríssima, até hoje não extremamente comum – entre pai e filho que vivem juntos sem a presença da mãe ou uma eventual madrasta do garoto.
O espectador vê primeiro o filho, Nicholas (Jon Whiteley), um garoto de uns nove anos de idade, que se veste como se vestiam os filhos dos ingleses de classe média para alta nos anos 1950: como um adulto, com camisa branca, gravata, paletó – embora ainda de calças curtas. Tem um jeito suave, gentil, bem educado – mas um tanto educado demais, formal demais. Veremos que o pai exige que ele aja como se de fato fosse um adulto.
O pai, Harrington Brande (Michael Hordern, na foto acima), é um diplomata inglês em serviço na Espanha. Na primeira sequência do filme, Nicholas está em um corredor do prédio da embaixada britânica em Madri; Brande está conversando com seu superior, o embaixador, e a conversa não é nada agradável. Brande se tem em altíssima conta, tem currículo de valor, mas não consegue subir na carreira – e o espectador verá os motivos. Pomposo, convencido, emproado, metido, rígido demais, metódico demais, sem qualquer jogo de cintura, desagradável na convivência, Harrington Brande é um chato, um porre.
Não é de se estranhar que tenha sido abandonado pela mulher, que voltou para a Inglaterra e nem quis saber de criar o filho.
O fato de ter sido abandonado pela mulher e estar solteiro também conta contra ele, na visão – estúpida, tacanha, mas fazer o quê? – de seus superiores no Foreign Office.
Naquela reunião, Brande é informado pelo superior que não só não será promovido ao cargo seguinte, de primeiro cônsul, como também será removido de Madri para a cidade portuária de San Jorge, onde vai substituir o diplomata que até então estava lá e acaba de ser nomeado, ele sim, primeiro cônsul.
Brande será então, daí para a frente, além de todos aqueles adjetivos citados acima, também um homem frustrado, queixoso, amargurado, certo de que está sendo tratado injustamente pelo mundo.
Brande gosta do filho, tem afeição por ele. O problema não é falta de amor, de afeto – é a forma com que o pai demonstra o que sente pelo filho. Um pobre homem que de fato não é bem tratado pela vida, ele entende que o melhor que pode fazer pelo filho é ser duro, exigente, rígido, na relação com ele. Quer ser amigo de Nicholas, mas, sobretudo, quer que Nicholas seja como ele mesmo é. Vira – sem má intenção, a princípio – um sargento de treinamento de um jovem recruta, como aqueles que a gente vê em tantos filmes americanos.
Os sargentos durões querem transformar os recrutas em bons soldados. Brande quer transformar seu filho em um bom inglês como ele mesmo.
O jardineiro espanhol libertará a criança que o pai sufocava com regras rígidas
Essa relação já problemática entre um pai mandão, durão, e um garoto sensível, de boa índole, mas garoto, afinal de contas, será profundamente abalada quando Nicholas vai ficando cada vez mais afeiçoado ao jardineiro espanhol contratado pelo pai para cuidar do vasto jardim que cerca a vila que ele e o garoto ocupam em San Jorge, no litoral da Catalunha.
O jardineiro, José, é tudo o que Brande não é: é simpático, afetuoso, bondoso, alegre, jovial, comunicativo.
José fará sair daquele pequenino ser forçado a se comportar como adulto a criança que Brande sufocava com suas regras rígidas. Depois de fazer suas lições, Nicholas vai ajudar José nas tarefas do jardim, e tira a gravata, tira a camisa imaculada, se expõe ao sol mediterrâneo.
Naturalmente, o pai vai ser atacado por um ciúme doentio, e suas reações serão as piores possíveis – e cada vez mais graves.
O jardineiro espanhol é interpretado pelo inglesérrimo Dirk Bogarde
O roteiro de O Jardineiro Espanhol é assinado por Lesley Storm e John Bryan. Eles foram bastante fiéis ao espírito do livro, repito – mas promoveram algumas mudanças grandes. No livro, Harrington Brande não é inglês, e sim americano. E, no livro, José, o jardineiro espanhol, tem 19 anos. No filme, o jardineiro espanhol já é adulto, ai chegando à faixa dos 30 – e é interpretado pelo inglesérrimo Dirk Bogarde (1921-1999).
Dirk Bogarde, na verdade, era o grande atrativo do filme, em termos de bilheteria, tanto no mercado britânico quanto no americano. Belo, talentoso, começara a carreira em 1947 e já era um grande astro em 1956. Os nomes dele e de A.J. Cronin eram de fato os pontos altos da produção – o diretor Phlip Leacock nunca chegou a ser um nome importante. (Dele, Jean Tulard diz que é “a prova de que os bons sentimentos não fazem bons filmes”.)
Até os anos 60, não era incomum atores interpretarem personagens de nacionalidade bem diferente da sua. O sueco Nils Asther, por exemplo, fez papel de um senhor de guerra chinês em O Último Chá do General Yen/The Bitter Tea of General Yen (1933). Em Bonequinha de Luxo/Breakfast at Tiffany’s (1961), o americaníssimo Mickey Rooney interpreta um japonês, e o espanhol José-Luis de Villalonga faz papel de um brasileiro. A sueca Greta Garbo fez o papel de uma russa em Ninotchka (1939).
Os exemplos são muitos, a lista poderia continuar indefinidamente.
Mas… Ahn… Dirk Bogarde como um jardineiro espanhol?
Esquisito, vamos e venhamos.
Dirk Bogarde, com sua beleza, seu talento, é uma das melhores coisas do filme. Mas que é esquisito vê-lo interpretar um jardineiro espanhol, lá isso é.
Mas a grande alteração feita pelos roteiristas foi no final da trama. Eles inventaram um happy end que de forma alguma existe no livro. O desfecho do livro é um drama brutal.
Mas os produtores na época acreditavam que filme bom é o que tem happy end, e despacha para casa espectadores felizes.
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4: “Quando o jardineiro fica amigo do jovem filho do empregador, o pai diplomata fica com ciúme. Adaptação inteligente e belamente filmada da novela de A. J. Cronin.”
De fato não é um grande filme, sem dúvida alguma. Mas gostei bastante de vê-lo.
Anotação em outubro de 2015
O Jardineiro Espanhol/The Spanish Gardener
De Phlip Leacock, Inglaterra, 1956
Com Dirk Bogarde (José), Jon Whiteley (Nicholas Brande), Michael Hordern (Harrington Brande)
e Cyril Cusack (Garcia), Maureen Swanson (Maria), Lyndon Brook (Robert Burton), Josephine Griffin (Carol Burton), Bernard Lee (Leighton Bailey), Rosalie Crutchley (Magdalena), Ina De La Haye (a mãe de José), Geoffrey Keen (Dr. Harvey), Harold Scott (Pedro)
Roteiro Lesley Storm e John Bryan
Baseado na novela de A.J. Cronin
Fotografia Christopher Challis
Música John Veale
Montagem Reginald Mills
Produção John Bryan, The Rank Organisation. DVD Cult Classic.
Cor, 95 min
**1/2
Eu ia comentar como o Cronin era fantástico, mas babei no teclado por causa do Bogarde…
Excepcional A.J. Cronin; li ‘A Cidadela’ e
‘As Chaves do Reino’, porém já faz mais de
60 anos! Nesta obra o assunto é interessantís
mo, mormente nos dias de hoje em que a unida-
de da família está bastante abalada e as dro-
gas estão contribuindo demais para isso!
Vou tentar encontrar o livro em algum ‘sebo’.
Parabéns pela reportagem acima, Fernando.
P.S.Por favor não publiquem meu email, estou
cansado de deletar ‘spams’e outras coisas!
Ontem encontrei uma carta de 1956 no qual minha mãe informava minhas irmãs que ela meu pai e eu tínhamos assistido “o jardineiro espanhol “
Eu com 10 anos tinha conseguido entrar no cinema para ver o filme proibido até os 14. Não lembro disso. Agora vou rever o filme. Bela resenha.