A frase é dita por uma voz de uma adolescente, em off, ainda ao final dos créditos iniciais, antes que surja na tela a primeira sequência de Cinco Graças, no original Mustang: “É como se tudo tivesse mudado em um piscar de olhos. Uma hora, estávamos bem. Depois, tudo ficou uma merda”.
A frase sintetiza com perfeição a história que veremos a seguir, sobre cinco jovens mulheres, irmãs, órfãs, que tinham uma vida agradável, num vilarejo qualquer da Turquia, a mil quilômetros de Istambul, junto ao mar – e de repente, num piscar de olhos, passam a sofrer mais e mais e mais os rigores de uma disciplina rígida, rigorosa, conservadora, retrógada, castradora.
A frase sintetiza também com perfeição o que parece infelizmente estar acontecendo com a Turquia como um todo, ao longo dos últimos anos: até uns dez, 15 anos atrás, era um país laico, de amplas liberdades políticas e comportamentais, em processo de modernização, aggiornamento, cada vez mais próximo da Europa Ocidental – e que, num movimento que parece ter começado de repente, está se afundando cada vez mais num ambiente de rigor religioso, em que as liberdades são reprimidas em nome da fé muçulmana.
A jovem diretora Deniz Gamze Ergüven, nascida em Ancara em 1978, e que estava portanto com 37 anos quando Cinco Graças foi lançado, em 2015, fez da história das cinco irmãs uma metáfora claríssima do que vem acontecendo com seu país, que tem se afastado cada vez mais do século XXI rumo a uma medieval Idade das Trevas.
E fez seu filme metafórico com doses fortes de talento, garra, vigor, inconformismo, raiva, indignação. É uma maravilha de filme.
(Ele está disponível no Now.)
Uma explicação: este texto foi escrito antes dos trágicos acontecimentos de julho de 2016, que pioraram muitíssimo mais o quadro geral na Turquia. As diversas medidas autoritárias, ditatoriais mesmo, tomadas pelo governo Erdogan, só aprofundam a conjuntura triste que o filme mostra, e tornam o filme um documento ainda mais importante.
Fim do ano escolar: quase todos os garotos e garotas estão muito felizes
A narrativa começa, depois daquela frase fortíssima, num belo dia de verão, final do ano escolar. Dezenas de estudantes – garotos e garotas – de idades entre aí uns 12 e uns 17 estão saindo da escola, com expressões alegres, sorrindo, se abraçando. Usam uniformes escolares normais, costumeiros, que poderiam perfeitamente ser de qualquer escola ocidental – as meninas usam camisa branca, saia azul marinho, gravatinha. Nada de véu, de burca – “Estávamos bem”, como diz a frase inicial.
Uma garotinha, no entanto, não está alegre com o início das férias. A câmara a mostra com uma expressão triste – nessa rápida sequência inicial, percebemos que a garotinha é muito ligada à professora Dilek (Bahar Kerimoglu), que está se despedindo da turma, de mudança para a metrópole do país, Istambul.
A garotinha é Lale (Günes Sensoy, um talento incrível – na foto acima), a caçula das cinco irmãs, das Cinco Graças do título brasileiro.
Veremos rapidamente que Lale – aí com uns 12 anos – é a mais jovem de uma escadinha que começa com Sonay, que deve estar com uns 17 anos.
Em ordem decrescente de idade, é assim (se eu tiver compreendido certo): Sonay (Ilayda Akdogan), Selma (Tugba Sunguroglu), Ece (Elit Iscan), Nur (Doga Zeynep Doguslu) e finalmente Lale.
Lale é a narradora e a personagem principal da história. É também, de todas as cinco irmãs, a que vai mais se revoltar contra os rigores comportamentais que passarão a ser impostos a todas elas.
As cinco jovens turcas escolhidas para os papéis são belas, e têm, todas elas, cabelos longos – longos, livres, soltos. E todas atuam bem.
As cinco garotas chegam em casa alegres – e levam uma surra da avó
Naquela rápida sequência inicial, fica claro também que a professora Dilek tem admiração especial por Lale, que seguramente era uma de suas melhores alunas. A professora se certifica de que Lale anotou direitinho o endereço dela em Istambul, e repete que as duas vão se corresponder.
E Lale então se junta às suas irmãs, para a pequena viagem até a casa em que vivem com sua avó (o papel de Nihal G. Koldas). Uma das mais velhas dá a voz de comando: nada de pegar o ônibus – o dia está lindo, melhor é fazer uma caminhada pela praia.
E então segue-se uma sequência de belíssimas imagens de um grupo grande de meninas e garotos caminhando pela praia, entrando na água, fazendo brincadeiras, meninas sendo carregadas no cangote pelos garotos – imagens paradisíacas de saudabilíssima brincadeira de um grupo de adolescentes.
Antes de chegar em casa, as irmãs ainda invadem um pomar para roubar umas frutas – e são pegas em flagrante pelo dono da terra, que as expulsa furibundo, de arma na mão.
Chegam em casa cansadas, mas alegres, rindo muito – e levam sova da avó, uma de cada vez, a começar de Sonay, por ser a primogênita.
A avó bate nelas sem piedade, e conta o motivo: recebeu um telefonema de uma vizinha que as viu brincando na praia com meninos. Subindo no cangote de homens, esfregando as partes no pescoço de homens!
“Uma hora, estávamos bem. Depois, tudo ficou uma merda”.
Lale destrói uma cadeira. Diante da avó em fúria, explica: a cadeira, afinal, roça na bunda delas!
É como se as cinco meninas dessem um salto sem pára-quedas ao coração das trevas
É duro, é um absurdo, uma tragédia desfrutar de liberdade, de viver numa sociedade mais aberta, mais arejada, e de repente cair na Idade das Trevas.
O filme da jovem Deniz Gamze Ergüven, escrito a quatro mãos por ela e pela francesa Alice Winocour, também jovem, nascida em Paris em 1976, mostra isso com clareza de água de nascente.
As duas autoras não quiseram se preocupar, ao escrever seu roteiro, em dar explicações sobre a história daquela família. O espectador é levado a aceitar o fato de que pai e mãe daquelas cinco adolescentes de idades próximas uma da outra morreram, deixando para a avó a criação delas. Não há a preocupação sequer de dizer se a avó é paterna ou materna: não importa, não faria diferença – é o que fica implícito.
Logo depois da sequência em que cada uma das cinco irmãs apanha da avó ao voltar para casa ao fim do ano letivo, vemos uma conversa da avó com seu filho Erol (Ayberk Pekcan), aparentemente o único tio das meninas.
O tio é muitíssimo mais retrógado, conservador, careta do que a própria avó. No diálogo, vemos que, diante do filho que acusa as meninas de estarem agindo como se fossem prostitutas, a avó se torna até defensora delas.
Em geral, os muito retrógados, conservadores, caretas escondem debaixo da estampa moralista uma face bruta, má, vil. Quando a narrativa se aproxima do fim, o espectador verá que o tio Erol é o perpetrador de um dos piores crimes que pode haver.
“Uma hora, estávamos bem. Depois, tudo ficou uma merda.” Foi de repente que tudo mudou, pelo que mostra o filme. Até aquele dia em que chegam em casa e apanham porque saíram da escola juntamente com um grupo de rapazes – o dia em que a narrativa começa –, tudo indica que não havia essa brutal repressão de costumes na casa das cinco moças.
A repressão começa de repente – mas aquilo ali, a surra dada pela avó, é apenas o começo de um processo. O cerco das trevas vai aumentando mais e mais, ao longo dos 97 minutos de belo cinema.
É um salto sem pára-quedas ao coração das trevas.
A rigidez da disciplina imposta às cinco moças vai aumentando mais e mais, cada vez mais.
Quando se inicia numa sociedade, num país, o processo de perda das liberdades, é como água morro abaixo, fogo morro acima: ninguém segura.
No entanto, Cinco Graças não é um filme pessimista. Ao contrário, termina com uma nota de esperança – é possível fugir das trevas. É preciso lutar, é preciso coragem, perseverança, mas é possível fugir das trevas, diz este belíssimo filme.
Quando a religião passa a mandar, todos perdem – mas as mulheres perdem mais
De uma certa forma, Cinco Graças faz lembrar Persépolis (2007), de Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi, a adaptação para o cinema do livro autobiográfico de Marjane Satrapi, uma iraniana nascida em Rasht em 1969. No livro (e no filme), Marjane conta a história de sua vida até os 21, 22 anos, e, portanto, abrange o período entre 1969 e 1990, 1992 – o período em que o Irã passou de uma ditadura dirigida pelo xá Mohammad Raza Pahlavi, pró-Ocidente e de certa maneira modernizadora em termos de costumes, para a ditadura religiosa dos aiatolás, ainda mais brutal, ainda mais violenta, com absoluta repressão a qualquer comportamento parecido com liberal, livre, aberto, democrático.
Persépolis mostra uma visão feminina sobre essa queda do Irã nos rigores medievais do conservadorismo fanático. Este Cinco Graças mostra uma visão feminina sobre esse início de imposição de leis religiosas sobre o comportamento dos turcos.
Quando o Estado deixa de ser laico para ser regido pelas leis religiosas, como aconteceu no Irã, ou quando e o governo e boa parte da sociedade passam a adotar cada vez mais as leis religiosas, como vem acontecendo na Turquia, todos saem perdendo – com a única exceção, é claro, dos clérigos, da alta hierarquia religiosa. Homens, mulheres, crianças, todos perdem – mas quem perde mais são sempre as mulheres, que passam a ser vítimas indefesas de uma sociedade cada vez mais machista.
Ainda bem que existem mulheres como a iraniana Marjane Satrapi e a turca Deniz Gamze Ergüven, capazes de criar arte de qualidade enquanto ao mesmo tempo denunciam essa situação vexaminosa, vexatória, indigna.
As duas viveram partes de suas vidas na França, e tiveram a colaboração de produtoras francesas para realizar seus filmes.
Não se fala a palava Mustang no filme, mas a referência à liberdade é clara
Deniz Gamze Ergüven estudou na prestigiosa escola de cinema La Femis. Seu filme de conclusão de estudos, Bir Damla su (Une goutte d’eau em francês, uma gota d’água, de 2006), um curta de 19 minutos co-escrito por ela, em que também trabalha como atriz, foi mostrado na Cinéfondation de Cannes e recebeu um prêmio no festival de Locarno,
A jovem participou de um curso para diretores iniciantes em Cannes, e foi lá que conheceu Alice Winocour, que viria a ser sua parceira no roteiro de Cinco Graças. Eram as únicas mulheres no curso. Deniz pretendia fazer um filme chamado Kings, sobre distúrbios raciais em Los Angeles, mas não conseguia produtores. Foi Alice Winocour que sugeriu que ela fizesse um filme em escala menor, para provar que era capaz de dirigir, e as duas juntas começaram a trabalhar no roteiro do que viria a ser Cinco Graças.
O título do filme na França e em diversos outros países é Mustang – e não há referência explícita alguma a Mustang, na obra. A primeira lembrança que vem diante da palavra, para muita gente, é a marca do carro, uma marca absolutamente cool, cult, in. (Raios, três palavras inglesas. Mas não há palavra tão exata nesta nossa Última Flor do Lácio para designar essa coisa objeto de admiração, culto.)
Marcos Valle e seu irmão Paulo Sérgio compuseram “Mustangue cor de sangue”, para horror dos esquerdistas sisudos ou festivos (ou as duas coisas) dos anos 60. Wilson Simonal gravou e virou sucesso.
Claro que o título do filme não vem dos carros fabricados pela Ford, e sim do cavalo que inspirou o nome da marca.
Mustang é a denominação de cavalos selvagens da América do Norte. Segundo a Wikipedia, a expressão deriva de palavra do espanhol antigo que significa “sem dono, selvagem”: “os mustangues são descendentes diretos de cavalos levados para a América por conquistadores espanhóis no século XVI”.
Crina grande, livre leve solta ao vento. Como os longos cabelos das cinco irmãs.
Na Argentina, México, Chile e Uruguai, os exibidores tornaram o título mais óbvio: Mustang: Belleza Salvaje.
Os exibidores brasileiros, sempre muito originais, criativos, saíram-se com Cinco Graças. Não foi uma má escolha, acho.
Mustang foi apresentado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2015, e depois fez gloriosa carreira em diversos festivais ao redor do mundo. Teve indicação tanto ao Oscar quanto ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, representando a França – o filme é uma co-produção França-Alemanha-Turquia.
No total, Cinco Graças recebeu 37 prêmios e outras 46 indicações.
Edouard Waintrop, organizador da Quinzena dos Realizadores, deu uma bela definição da obra: “Um filme que faz passar por todas as emoções, como o cinema deveria mesmo fazer”.
Que a moça Deniz Gamze Ergüven faça mais filmes.
Anotação em maio de 2016
Cinco Graças/Mustang
De Deniz Gamze Ergüven, Turquia-França-Alemanha, 2015
Com Günes Sensoy (Lale), Doga Zeynep Doguslu (Nur), Tugba Sunguroglu (Selma), Elit Iscan (Ece), Ilayda Akdogan (Sonay), Nihal G. Koldas (a avó), Ayberk Pekcan (Erol, o tio), Bahar Kerimoglu (professora Dilek), Burak Yigit (Yasin), Erol Afsin (Osman), Suzanne Marrot (tia Hanife), Serife Kara (a tia-avó), Aynur Komecoglu (tia Emine), Sevval Aydin (Erin), Enes Sürüm (Ekin)
Argumento e roteiro Deniz Gamze Ergüven e Alice Winocour
Fotografia David Chizallet e Ersin Gok
Música Warren Ellis
Montagem Mathilde Van de Moortel
Casting Kristin Diehle e Harika Uygur
Cor, 97 min
Produção CG Cinéma, Vistamar Filmproduktion, Uhlandfilm, Bam Film, Kinology, Canal+ .
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