Calçadas de Londres, no original St. Martin’s Lane, não é lá um grande filme, na minha opinião. Mas, para quem gosta de cinema, é interessantíssimo de se ver, por vários motivos.
Pela época em que foi feito – é uma produção de 1938, o último ano antes da Segunda Guerra, pouco antes dos bombardeios nazistas sobre Londres. É absolutamente fascinante ver as imagens das ruas de Londres daquela época.
Pelo elenco. Que maravilha ver Charles Laughton, Vivien Leigh e Rex Harrison jovens. Não me lembro de ter visto nenhum deles tão jovem. Vivien Leigh, de 1913, estava com 25 aninhos. Laughton estava com 39 anos (ele é de 1899), exatamente como seu personagem – e já era bem gordão. Rex Harrison, de 1908, estava com 30.
É também fascinante pensar que esse aqui deve seguramente ter sido um dos filmes que convenceram o produtor David O. Selznick a dar para essa inglesinha o papel que todas, absolutamente todas as atrizes de Hollywood, Bette Davis à frente, queriam desesperadamente – o de Scarlett O’Hara, a orgulhosa dama sulista de … E o Vento Levou, que seria lançado no ano seguinte ao deste St. Martin’s Lane aqui, 1939.
Aliás, como bem observou Leonard Maltin, o personagem interpretado aqui por Vivien Leigh é bastante parecido com Scarlett O’Hara: uma mulher independente, cheia de confiança em si mesma, disposta a fazer de tudo para obter sucesso na vida – inclusive passar por cima dos outros.
Maltin deu ao filme – que nos Estados Unidos teve o título mais, digamos, palatável, compreensível para as platéias não inglesas de Sidewalks of London – 3 estrelas em 4: “Laughton está soberbo como um busker (artista de rua), com Leigh quase tão boa quanto ele como sua protegée, que usa e abusa de tudos em sua jornada rumo ao sucesso como uma estrela de teatro (um personagem não diferente de Scarlett O’Hora!). Entretenimento de primeira… até a pessimamente concebida sequência final. Título britânico original: St. Martin’s Lane.”
A jovem belíssima rouba o dinheiro suado do gorducho
Os buskers! Há buskers em todas as grandes cidades do mundo. São Paulo está cada vez mais cheia de buskers: eles tomam conta das calçadas da Avenida Paulista, em vários trechos, mas em especial perto da esquina com a Augusta, na região do Conjunto Nacional.
Existem em todos os lugares, mas a palavra só existe mesmo no inglês britânico – tanto que Maltin teve que, entre parênteses, traduzir para os americanos: street entertainers. Seria esquisito usar entretenedores de rua, então são mesmo artistas de rua. Cantores, instrumentistas, dançarinos, mágicos, equilibristas, o escambau.
Um texto em letras garrafais informa o espectador, logo após os créditos iniciais, antes do início da ação:
“Em Londres, a diversão noturna começa nas ruas. Do lado de fora dos cinemas e teatros, os buskers, como Londres chama os artistas de rua, ganham seu sustento apresentando-se para as multidões que estão nas filas.”
E então a câmara dá um passeio por ruas agitadas de Londres à noite. Longas filas diante dos teatros – e, disputando a atenção (e as moedinhas) de quem está nas filas, hordas de artistas de rua.
Um carrão enorme pára perto de um teatro, e dele desce o ator principal da peça que está em cartaz ali, um tal Jan Duchesi (Romilly Lunge). Ele é imediatamente cercado por uma multidão de fãs que pedem autógrafos, querem vê-lo de perto, tocar nele. Vemos uma jovem de rosto lindíssimo se aproximar do grupo. Veremos depois que ela se apresenta como Libby, forma carinhosa de Liberty, seu único nome – o papel, é claro, de Vivien Leigh, em seu oitavo filme.
Libby dá uns cotovelões, consegue chegar perto do astro, mas não tem caneta, e, assim, perde a chance de pegar seu autógrafo. E Duchesi finalmente escapa dos fãs e entra pela porta lateral do teatro.
A câmara volta a percorrer a rua principal em frente ao teatro, passa por vários buskers, e acaba se fixando num sujeito bastante gordo, com a silhueta bem redonda, o barrigão proeminente tornado mais óbvio pelo paletó dois números menor. O personagem de Charles Laughton se chama Charles Saggers, e ele dança, canta, coreografa, compõe cançonetas, faz um pouco de tudo, mas gosta mesmo é de declamar poemas. Tem especial predileção por “If…”, de Rudyard Kipling (aquele que começa assim, na tradução de Guilherme de Almeida: “Se és capaz de manter a tua calma quando / Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa; / De crer em ti quando estão todos duvidando, / E para esses no entanto achar uma desculpa…”) e por “The Green Eye of the Little Yellow Dog”.
E então Charles Saggers faz uma pequena introdução, dizendo que recitará em seguida um poema que ficou famoso na voz do ator Bransby Williams e mais tarde também na voz de John Gielgud.
Achei fascinante ver que já era famoso, em 1938, o grande ator de teatro e cinema que eu veria em tantos bons filmes, como Júlio César (1953), Providence (1977), O Homem Elefante (1980), Gandhi (1982), Shine – Brilhante (1996).
E então aquele senhor rotundo começa a declamar, a plenos pulmões, “The Green Eye of the Little Yellow Dog”. Nunca tinha ouvido falar nele; vejo agora que é um poema escrito em 1911 por J. Milton Hayes, um típico exemplo do “monólogo dramático” que fazia muito sucesso no music hall londrino no início do século XX.
Está ainda no início do poema quando Libby passa por ali, observa o recitador, olha em volta – e rouba a única moedinha que já havia sido depositada no chapéu que Charles Saggers havia colocado no chão, diante de si!
Charles continua declamando o poema e consegue segurar a moça pelo braço, mas ela é arisca, tasca-lhe um tapa forte na cara, e, ágil, escapa e some no meio da multidão.
A ladrazinha sabe imitar o declamador – e dança lindamente
Agora munida de uma moedinha, Libby vai a um food truck ali perto. Em 1938, Londres já tinha food truck, sim, senhor. Pede a seu velho conhecido Doggie (Alf Goddard), o dono do estabelecimento, um café e uma informação: quem são aqueles dois desconhecidos ali, do outro lado, junto ao balcão? Doggie informa que o de chapéu é um famoso jornalista americano, e o outro é um compositor, Harley Prentiss (o papel de um Rex Harrison 36 anos mais moço do que o Professor Higgins de My Fair Lady).
Libby logo se aproxima dos dois. – “Você é compositor? Já publicou alguma coisa?” Apresenta a si mesma como dançarina, entre outras coisas – e começa a imitar Charles recitando “The Green Eye of the Little Yellow Dog”.
É falar no Diabo que ele aparece. Charles vem chegando e vai observando a moça que recita como se fosse ele. Chega perto do grupo, quer tomar satisfação com a moça que roubou sua moeda, Harley e Doggie se intrometem para impedir que haja briga, chega um policial. Harley estende o cachimbo da paz – cigarros para todos, saídos de sua belíssima cigarreira que é uma jóia, e que ele, distraidamente, coloca no balcão do food truck. Libby vê a cigarreira, bota embaixo do braço, diz que precisa ir andando. Só Charles vê o movimento rápido da ladrazinha linda.
Ele vai atrás da moça. Ela é mais jovem e bem mais ágil, e consegue se esgueirar para dentro de uma grande mansão que está para alugar. O gordo Charles chega depois, mas também consegue entrar lá. A casa está às escuras, é claro; Charles vai acendendo fósforos para enxergar alguma coisa – e aí temos a mais bela sequência deste filme.
Num amplo salão em que penetra luz vinda de fora, Libby-Vivien Leigh dança.
Dança para si mesma, de pura alegria de viver. Vivien Leigh, como já disse, estava com 25 anos, mas seu personagem, como dirá mais tarde Harley Prentiss, o compositor rico, está então com 18, 19 anos. É quase uma criança ainda, e então dança com a alegria de uma criança no amplo salão da casa de gente rica.
Charles chega devagarinho, sem fazer barulho, e, como o espectador, observa aquela jovem de beleza fantástica dançando.
“Você está atrás de justiça e lógica. Isso não existe.”
Depois de algum tempo, Charles anuncia sua presença. Os dois travam então um diálogo fascinante.
Charles a recrimina por roubar. Libby diz que viveu a vida toda num orfanato. Havia saído dele há pouco, e tinha direito a ter o que as demais mulheres têm.
Ela: – “Eu também tenho direito a uma manicure.”
Ele: – “Você está falando tolices.”
Ela: – “Por quê? Por quê? Você não vai me responder?
Ele: – “Não existe resposta. Você está atrás de justiça e lógica. Isso não existe. O mundo não é feito assim. Tudo depende de sorte. E também do temperamento. E ser capaz de acertar uma piada. A vida toda é uma piada.”
Ela: – “Uma piada? Então é uma piada que eu não aceito.”
Começa a chorar, logo está chorando convulsivamente.
Daí a pouco, um policial percebe que há gente na casa que deveria estar vazia; apita, chama reforço. Imediatamente, Charles e Libby, que até um minuto atrás discutiam, um com raiva do outro, se unem para fugir do inimigo comum. Charles a leva para dormir em seu quartinho muito simples no último andar de um casarão de vários andares, cujos donos transformaram numa espécie de pensão.
Libby é a ambição em estado puro. Compara-se a Garbo
Embora a ação se passe na época em que o filme foi feito, 1938, senti uma certa influência de Charles Dickens sobre a história que mostra pobres muito pobres numa cidade de gente muitíssimo rica. Não há uma miséria tão absolutamente miserável quanto na Londres do início do século XIX dos romances de Dickens, mas há muita pobreza, e um gigantesco fosso, um Amazonas, um Grand Canyon separando uma classe da outra.
Nisso, o filme faz lembrar também um pouco o clima de My Fair Lady – e não apenas porque nos dois Rex Harrison interprete personagens da classe alta. Há um pouco de Professor Higgins na história do quase quarentão Charles ensinando a arte para essa Libby que é uma espécie de Eliza Doolittle de 18, 19 anos.
E haverá também algo de Luzes da Ribalta e de Nasce uma Estrela, quando, a partir de pouco além da metade do filme, a garotinha Libby deixa para trás seu benfeitor pobretão e vai escalando a ladeira do sucesso.
Libby é ambição em estado puro. Não à toa, ela se compara a ninguém menos que a maior estrela do cinema mundial nos anos 30. O diálogo é gostoso. Harley Prentiss se finge de jornalista e faz uma entrevista de mentirinha com ela. – “Miss Liberty… Liberty de quê?” E ela, espevitada: – “Só Liberty. Como Garbo. Fica melhor nos letreiros.”
O roteiro é assinado por Clemence Dane, com base em uma história de autoria dela mesma. Esse era o pseudônimo de Winifred Ashton (1888-1965), novelista e dramaturga inglesa que também escreveu roteiros para o cinema, como o da Anna Karenina de 1935 – a versão estrelada exatamente por Greta Garbo! Algumas de suas peças também foram levadas para o cinema, como Vítimas do Divórcio/A Bill of Divorcement (1932) e Wild Decembers (1956).
Segundo o IMDb, no entanto, várias outras mãos mexeram no roteiro que é assinado apenas por Clemence Dane: o site cita Bartlett Cormack, Charles Laughton, Erich Pommer e Tim Whelan. Este último foi o diretor do filme. Pommer assina como produtor, era um dos donos da produtora Laughton-Pommer.
É uma figura de imensa importância esse Erich Pommer (1989-1966). Alemão da Saxônia, ele produziu mais de 200 filmes, inclusive alguns dos maiores clássicos de todos os tempos, Metrópolis (1926), a ficção-científica de Fritz Lang, e O Anjo Azul (1930), o filme que transformou Marlene Dietrich em uma das maiores estrelas que já existiram. Pommer fugiria do nazismo e se instalaria na Inglaterra, onde prosseguiu sua carreira gloriosa.
De repente, Libby muda de personalidade. É o maior defeito do filme
Alguém, no meio daquelas cinco pessoas citadas logo acima, resolveu que Libby estava ambiciosa demais, e, afogada pela ambição, havia perdido a ternura e todos os bons sentimentos. E então decidiram que, aos 43 minutos do segundo tempo, tudo iria mudar radicalmente. E então, no final, a história muda de rumo, dá um cavalo de pau, faz uma curva em U, e Libby muda totalmente seu comportamento.
É a isso que Leonard Maltin se refere em sua sinopse-crítica, e ele está certo.
É o defeito mais grave do filme, mas não é o único. Ator extraordinário, Charles Laughton no entanto em alguns momentos exagera demais da conta, me pareceu. Vivien Leigh também exagera na caricatura, especialmente no início, quando ainda é uma pobretona sem eira nem beira.
Aparentemente, o filme não foi lançado no circuito comercial no Brasil. O IMDb não traz título brasileiro para ele. Não há título brasileiro para ele na edição brasileira do Dicionário de Cinema – Os Cineastas, de Jean Tulard. E o Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho, a melhor e mais completa obras no quesito títulos dos filmes no Brasil, não traz sequer verbete para o diretor Tim Whelan.
Não que isso seja uma lacuna no importante livro do Rubinho. Ao que tudo indica, esse Tim Whelan, que aliás é americano, e não inglês, não teve mesmo importância. O Dicionário de Cinema – Os Diretores de Tulard sequer traz uma minibiografia dele – apenas a relação dos muitos filmes que dirigiu, vários deles não lançados comercialmente aqui.
Saiu agora em DVD no Brasil pela Cult Classic, uma dessas várias empresas que se aproveitam das obras que, por um motivo ou outro, não têm detentor de direitos autorais. Usaram a mesma arte da capa de um lançamento do filme no mercado americano, e fizeram a tradução do título de lá, de Sidewalks of London para As Calçadas de Londres.
A imagem está excelente: a empresa brasileira seguramente se valeu de uma edição americana em que o filme havia passado por bom processo de restauração.
E então é isto, em suma: pode não ser um filme muito bom, e de fato não é. Mas, repito, é muito interessante de se ver.
Anotação em outubro de 2015
As Calçadas de Londres/St. Martin’s Lane
De Tim Whelan, Inglaterra, 1938
Com Charles Laughton (Charles Saggers), Vivien Leigh (Libby), Rex Harrison (Harley Prentiss)
e Larry Adler (Constantine), Tyrone Guthrie (Gentry), Gus McNaughton (Arthur Smith), Bart Cormack (Strang), Edward Lexy (Mr. Such), Maire O’Neill (Mrs. Such), Basil Gill (juiz), Clare Greet (Maud), David Burns (Hackett), Cyril Smith (Blackface), Ronald Ward (Temperley), Romilly Lunge (Duchesi), Alf Goddard (Doggie), Carroll Gibbons and His Orchestra, The Luna Boys
Roteiro Clemence Dane, baseado em sua história “St. Martin’s Lane”
Fotografia Jules Kruger
Música Arthur Johnson
Montagem Hugh Stewart e Robert Hamer
Coreografia Philip Buchel
Produção Erich Pommer, Mayflower Pictures Corporation. DVD Cult Classic.
P&B, 84 min
**1/2
Título nos EUA: Sidewalks of London. Em Portugal: Ilusões Perdidas. Na França: Vedette du Pavé.
Ah, o Rex Harrison por aqui… Maravilha!
Gostei bastante desse filme, adorei essas referências que você encontrou no filme, mas assisti esse filme com o título de “Nos bastidores de Londres”