The Furies, que Anthony Mann lançou em 1950, é um filme que mistura gêneros. A princípio, é um western – a ação se passa no Velho Oeste, mais exatamente no Novo México, em algum ponto não explicitado do final do século XIX.
Tem também um lado economicista – fala muito sobre currency, moeda corrente –, algo tipo os filmes sobre Wall Street, um tanto antes de Wall Street ser o que é hoje.
Mas é basicamente um drama familiar. E também um melodramão misturado com épico, daqueles que mostram empreendedores construindo ou desenvolvendo impérios, tipo Assim Caminha a Humanidade/Giant (1956), ou Alma em Suplício/Mildred Pierce (1945), ou ainda Imitação da Vida (1934 e depois 1959) e Esquina do Pecado/Back Street (1961).
O título escolhido pelos exibidores brasileiros, Almas em Fúria, salienta esse tom de melodrama. Remete a Alma em Suplício, o título brasileiro de Mildred Pierce, feito cinco anos antes.
O título original, The Furies, remete mais diretamente à tragédia grega.
Como sou terrivelmente preguiçoso, transcrevo o que diz a Wikipedia em português sobre as Fúrias:
“As erínias (em grego: Ἐρīνύς), na mitologia grega, eram personificações da vingança. Enquanto Nêmesis (deusa da vingança) punia os deuses, as erínias puniam os mortais. Eram Tisífone (Castigo), Megera (Rancor) e Alecto (Inominável). Na mitologia romana, eram chamadas fúrias – Furiæ ou Diræ. Viviam nas profundezas do Tártaro, onde torturavam as almas pecadoras julgadas por Hades e Perséfone. Nasceram das gotas do sangue que caíram sobre Gaia quando o deus Urano foi castrado por Cronos. Pavorosas, possuíam asas de morcego e cabelo de serpente. As erínias, deusas encarregadas de castigar os crimes, especialmente os delitos de sangue, são também chamadas Eumênides (Εὐμενίδες), que em grego significa as bondosas ou as Benevolentes, eufemismo usado para evitar pronunciar o seu verdadeiro nome, por medo de atrair sobre si a sua cólera. Em Atenas, usava-se como eufemismo a expressão Semnai Theai (σεμναὶ θεαί), ou deusas veneradas.”
Tal como a Electra da mitologia grega, a heroína tem veneração pelo pai
Há caminhos mais curtos entre, de um lado, a mitologia e a tragédia gregas, e, de outro, o western do que pode sonhar nossa vã filosofia, Horácio – ainda mais se Anthony Mann for o diretor do filme.
Anthony Mann botou Freud no meio do faroeste. E se Freud foi buscar na mitologia grega a expressão de várias de suas descobertas sobre o que acontece dentro do cérebro humano, por que não ir diretamente até Electra?
Em The Furies, Barbara Stanwyck interpreta uma filha tão fascinada pelo pai – interpretado por Walter Huston, em seu último filme, fazendo um exercício maluco de over-acting – que, quando ele anuncia que vai se casar de novo, ela agride fisicamente a possível futura madrasta de uma forma violentíssima, absurda, inimaginável, que causará profundo dano à mulher que ousou querer chegar perto de seu pai.
The Furies é isso aí.
O espectador que gosta de bangue-bangue porque gosta mesmo é de ver tiroteio, e montanhas de índios caindo mortinhos da silva, esse aí, tsc, tsc, provavelmente não vai gostar muito de The Furies.
Anthony Mann foi o mestre do western psicológico.
Se houvesse psicanalista no Novo México daquela época, Vance Jeffords – esse é o nome da personagem da maravilhosa, fantástica, extraordinária Barbara Stanwyck – deveria consultar umas cinco vezes por semana, e ainda assim provavelmente levaria uns 35 anos para se livrar de tanto problema.
A mãe morreu cedo. Era uma dama, um ser um tanto puro demais, pelo que podemos perceber. O pai, T.C. Jeffords, era homem bruto, o tipo exemplar dos construtores de império daquela época muito distante desta nossa de hoje, em que do empreendedor se exige apenas cérebro e esperteza. T.C. Jeffords começou do nada – como todo herói de história americana – e construiu um império no Novo México. O filme não gasta tempo explicando como isso aconteceu, mas dá a entender que ele foi comprando ou simplesmente invadindo diversos terrenos antes pertencentes a mexicanos, e, após muitos anos, passou a ser o dono de uma propriedade rural de tamanho assombroso. A tal imenso latifúndio, deu o nome de The Furies.
Teve dois filhos, um homem e uma mulher. Clay (John Bromfield, na foto abaixo) não é amado ou respeitado pelo pai. Já pela filha, Vance, T.C. tem todo o amor da vida.
O latifundiário pagava os empregados com notas que ele mesmo imprimia
O roteirista Charles Schnee apresenta essa família complicada de maneira inteligente, ágil, esperta, rápida. Primeiro de tudo, o espectador vê Clay chegar de cavalo à grande casa principal do latifúndio. Ainda lá fora, Clay olha para cima, vê que o quarto da mãe está com as luzes acesas.
Após a morte da mulher, T.C. havia determinado que o quarto dela não sofreria mudança alguma, ficaria exatamente como estava no último dia de vida dela.
Naquele dia em que a ação começa, Vance, contrariando as ordens do pai, havia entrado no quarto-santuário. Procurava algum vestido lindo que pudesse usar no casamento de Clay, que aconteceria dali a pouco.
O primeiro diálogo do filme, entre os dois irmãos, já apresenta para o espectador os fatos básicos sobre a família, e sobre o caráter de cada um deles. Clay prefere jamais enfrentar o pai, jamais discordar dele, para evitar problemas. Já Vance, ao contrário, não foge de uma discussão com o pai todo-poderoso – e o velho T.C. adora a filha, entre outros motivos, exatamente pelo fato de ela ser corajosa a ponto de desafiá-lo.
Naquela mesma noite, T.C. estará chegando de volta à mansão após uma longa temporada em San Francisco. Chegará trazendo para se hospedar ali um alto funcionário de um banco da grande cidade californiana, o banco pertencente a um sujeito chamado Anaheim (Charles Evans). O homem vem conhecer de perto The Furies, para avaliar se o banco deve fazer o grande empréstimo solicitado por T.C., se a propriedade é garantia suficiente.
Dono de uma imensidão de terras e de um rebanho fabuloso, T.C. se encontra naquele momento sem capital de giro, sem meio circulante, sem dinheiro na mão. Veremos que na verdade esse sempre foi o estilo de vida do magnata: muita terra, muito gado, mas quase nada de dindim no bolso. Tanto que fazia tempo que ele havia criado seu próprio meio circulante, sua própria moeda – ele imprimia notas, como se fossem notas promissórias, e pagava os empregados e fornecedores com elas. Suas notas eram chamadas de T.Cs.
Essa questão, o fato de ele imprimir seu próprio dinheiro, terá importância fundamental na trama.
A rebelde Vance vai se apaixonar pelo grande inimigo do pai poderoso
T.C. sabe que Vance será a herdeira de suas terras todas, sabe que ela (e não seu irmão Clay) é que tem talento e força para tocar The Furies no futuro. Sabe que será o filho que Vance vier a ter que será o herdeiro de seu império – e por isso mesmo faz questão de ser ouvido pela filha na questão da escolha do homem com quem ela se casará. Na verdade, T.C. gostaria de escolher ele mesmo o marido da filha – coisa que Vance, tão geniosa, forte, decidida quanto o pai não permitirá, é óbvio.
Vance tem uma amizade fortíssima, íntima, com Juan Herrera (Gilbert Roland, na foto abaixo), um mexicano, hoje chefe de uma das famílias que eram proprietárias de partes das terras que foram sendo comprada e/ou griladas por T.C. Vance e Juan brincavam juntos quando crianças, cresceram juntos, são unha e carne. Juan é absolutamente apaixonado por ela, mas ela tem por ele apenas um amor fraternal.
A existência de Juan Herrera, e a amizade fortíssima entre ele e Vance, também serão muito importantes no desenrolar da trama criada pelo escritor Niven Busch e adaptada pelo roteirista Charles Schnee.
Imensa importância terá também um sujeito chamado Rip Darrow (Wendell Corey). O pai dele era dono de um trecho das terras que hoje pertencem a T.C. – um trecho especialmente importante, com água e bela vegetação. E tinha sido morto por T.C., aparentemente num duelo legal, daqueles admitidos na época. Darrow é um grande jogador, e tem um saloon na cidadezinha mais próxima. Ele e T.C. se odeiam, são inimigos figadais.
E então Vance se apaixona pelo grande inimigo do pai.
Isso que relatei é apenas o início da história. A trama que virá a seguir é complexa, cheia de lances inesperados.
É uma tragédia grega.
Num gênero machista, é fascinante ver essa mulher fortíssima, ousada
É sabido que o western é um gênero machista. Em geral, a grosso modo, há espaço nos westerns para dois tipos de mulheres: as esposas e as mulheres dos cabarés. Ou santas, ou putas.
São bem raras as exceções, os faroestes em que a mulher tem grande importância na trama. Há, claro, Johnny Guitar (1954), em que as figuras mais fortes são as personagens interpretadas por Joan Crawford e Mercedes McCambridge, e alguns outros poucos.
The Furies é outra exceção à regra machista.
Vance Jeffords é uma mulher fortíssima, corajosa, ousada. Na relação dela com Rip Darrow, exige ser tratada de igual para igual. E a forma com que entra o fade out nas cenas em que os dois se beijam – a imagem vai sumindo e a tela fica toda negra por alguns segundos – é um indício claríssimo de que o casal não parou por aí, apenas no beijo. Não, senhor – eles foram em frente. Algo que era extremamente ousado para a época, em que ainda estava em vigor o Código Hays, o código de autocensura dos grandes estúdios que vedava terminantemente relações sexuais fora ou antes do casamento.
Há um diálogo sensacional entre Vance e uma bela moça de cabaré que, fica claro para o espectador, é, naquele momento, amante de Rip Darrow. Vance chega ao saloon de Rip, depois de um longo tempo em que não se viam, e lá está a bela (interpretada por Myrna Dell, 1904-2011, 77 títulos na filmografia, aparentemente nunca como protagonista).
A moça diz: – “Não nos vimos antes. Meu nome é Dallas Hart. Sou nova na cidade, querida.”
E Vance, superior, fria, cortante: – “Querida, você não seria nova em nenhum lugar”.
Cai a ficha na cabeça da bela: – “Você deve ser Vance Jeffords”.
Vance pergunta se Rip falou sobre ela. É a vez de a bela se vingar: – “Ele, não, nunca. Mas todos os outros me falaram sobre você.”
Em outro belo diálogo, Vancc abre o coração para seu amigo de infância Juan Herrera: “Não sei se gosto de estar apaixonada. Sinto-me como se tivesse um freio na boca”.
É interessante notar que o escritor Niven Busch é também o autor do romance que deu origem a Duelo ao Sol/Duel in the Sun, a suntuosa produção de David O. Selznick de 1945 que parece ter sido feita como uma homenagem a Jennifer Jones, a paixão do todo-poderoso produtor. Exatamente com em The Furies, em Duelo ao Sol a personagem central é uma mulher.
Mann dizia que Shakespeare ou tragédia grega podem ser adaptadas para o Oeste
The Furies não costuma ser considerado um dos melhores westerns de Anthony Mann. Em geral são citados como obras-primas os filmes que o grande diretor fez com James Stewart: Winchester 73, do mesmo ano deste filme aqui, 1950, E o Sangue Semeou a Terra/Bend of the River, de 1952, O Preço de um Homem/The Naked Spur, de 1953, e Região do Ódio/The Far Country, de 1954.
Esses são os westerns citados pelo crítico Paul Mayersberg num programa da BBC de Londres chamado “The Films of Anthony Mann”, feito em 1968, quando o diretor estava em Londres filmando O Espião de Dois Mundos/A Dandy in Aspic, que viria a ser seu último filme. O programa, como tudo que a BBC faz, é uma maravilha; ele está como um dos extras na caixa de DVDs Cinema Faroeste, lançado pela ótima Versátil.
O crítico mostra diversas cenas desses westerns citados logo acima com tomadas de sua longa e gostosa entrevista com Anthony Mann. Não aparece no programa uma tomada sequer de The Furies, e não há qualquer citação a ele.
Mas uma frase de Mann define bem sua visão do western:
– “Você pode pegar qualquer dos grandes dramas, não importa se é Shakespeare, ou uma das peças gregas. Tudo. Sempre se pode situá-los no Velho Oeste. De algum modo ganham vida, e esse tipo de paixão, esse drama, você pode ter parricídio, qualquer tipo de homicídio no Velho Oeste. E vai dar certo, porque é onde toda a ação se desenrola.”
Sobre Anthony Mann, diz Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores:
“Ao se rever O Preço de um Homem ou Winchester 73, é forçoso concordar com Coursodon e Tavernier: ‘É o que o gênero produziu de mais perfeito e mais puro.” E ele conclui o verbete cheio de adjetivos que demonstram admiração assim: “Mann é o cineasta clássico por excelência”.
Diz o livro The Paramount Story: “Um western grandioso, The Furies atingiu picos quase operísticos de emoções quando a força irresistível de uma filha rebelde se batia contra as objeções irremovíveis de seu pai, um barão do gado. Com atores tão talentosos quanto Barbara Stanwyck e Walter Huston nesses papéis, não havia perigo algum de risos não desejados atrapalhando o clima, mas a história de Niven Busch, adaptada por Charles Schnee, às vezes chegava a ficar além dos limites.”
Depois de mencionar o tom freudiano da relação entre os personagens, o livro diz que Anthony Mann era adepto de dar ao drama passado ao ar livre um sentido de realidade, e seu ritmo o salvava cada vez que ele saía de dentro do estúdio e ia para as cenas filmadas em exteriores.
E conclui relatando que foi o último filme de Walter Huston – o pai do grande diretor John, avô de Anjelica. O excelente ator morreu no mesmo ano do lançamento do filme, aos 67 anos de idade.
Leonard Maltin deu ao filme 2.5 estrelas em 4: “Western bem dirigido mas muito falado e psicológico, detalhando a complexa relação de amor e ódio de Stanwyck com seu pai, Huston (em seu último papel), um tirânico fazendeiro de gado. Muito pesado em alguns momentos.”
Sem dúvida, pesado demais, aqui e ali. Mas um belo, fascinante filme, com dois atores de primeiríssima em atuações fortes, marcantes.
Anotação em fevereiro de 2016
Almas em Fúria/The Furies
De Anthony Mann, EUA, 1950
Com Barbara Stanwyck (Vance Jeffords), Walter Huston (T. C. Jeffords), Wendell Corey (Rip Darrow)
e Judith Anderson (Flo Burnett), Gilbert Roland (Juan Herrera), Thomas Gomez (El Tigre), Beulah Bondi (Mrs. Anaheim), Albert Dekker (Mr. Reynolds), John Bromfield (Clay Jeffords), Wallace Ford (Scotty Hyslip), Blanche Yurka (a mãe Herrera), Louis Jean Heydt (Bailey), Frank Ferguson (Dr. Grieve), Charles Evans (Anaheim), Movita Casteneda (Chiquita), Myrna Dell (Dallas Hart)
Roteiro Charles Schnee
Baseado em romance de Niven Busch
Fotografia Victor Milner e Lee Garmes
Música Franz Waxman
Montagem Archie Marshek
Figurinos Edith Head
Produção Hal B. Wallis, Paramount Pictures. DVD Versátil.
P&B, 109 min
R, ***1/2
Há defeitos em Barbara Stanwyck?
Nunca tinha ouvido falar desse. Uau. Parece grandioso – trágicos gregos, que referência maravilhosa. O título me fez lembrar logo de Eumênides, de Ésquilo – onde um filho é perseguido pelas Fúrias por ter matado a mãe, aliás.
Tirei o dia para ler você. Estou por dentro de mais 5 filmes. Adoro fazer isso. Bjs,
Anthony Mann constitui com John Ford e Howard Hawks a santísima trindade dos westerns.O Winchester 73 do Mann também é notável. Nestas Fúrias o que sobressai são as estupendas interpretações da Barbara Stanwick e do Walter Huston.