Na primeira vez em que o diretor André Téchiné e Juliette Binoche trabalharam juntos, em 1985, em Rendez-Vous, ela estava com 21 aninhos e bem em começo de carreira. Quando voltaram a se encontrar, 13 anos mais tarde, em 1998, para fazer este Alice e Martin, La Binoche já era uma grande estrela, das maiores do cinema mundial.
Já colecionava uma penca de filmes importantes, com diversos grandes diretores, entre eles, só para citar uns poucos, A Insustentável Leveza do Ser (1988), de Philip Kaufman, Perdas e Danos (1992), de Louis Malle, A Liberdade é Azul (1993), de Krzysztof Kieslowski, O Paciente Inglês (1996), de Anthony Minghella – que deu a ela o Oscar de melhor atriz coadjuvante.
Como bem resume o livro 501 Movie Stars, “Juliette Binoche está em casa na França, na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos; em filmes exibidos nos cinemas de arte ou filmes comerciais de prestígio; em papéis que exigem minimalismo absoluto, naturalismo ou a velha qualidade de estrela”.
Em Alice e Martin, Juliette Binoche deu ao diretor que havia dado a ela seu primeiro filme de grande sucesso – e ao respeitável público – uma interpretação maravilhosa, extraordinária, de aplaudir de pé como na ópera.
A rigor, muito a rigor, a interpretação de Binoche é a maior qualidade do filme.
Não que o filme não tenha outras qualidades. Tem. É sem dúvida alguma um bom filme – e não é só Juliette Binoche que brilha. Todo o elenco está impecável, com destaque para Alexis Loret (o Martin do título), Mathieu Amalric, Carmen Maura e Marthe Villalonga.
Um realizador que filma suas próprias histórias, em geral sobre relações familiares
É – como a maior parte dos filmes do realizador – um drama sobre relações afetivas, família. Também como quase todos os demais (e já são 22, feitos entre 1969 e este ano agora de 2016), não se baseia em romance ou peça de teatro – é uma história original do próprio André Téchiné com algum ou alguns de seus colaboradores. É um realizador que em geral filma suas próprias histórias.
Nascido em 1943, Téchiné fez o mesmo caminho de seus predecessores François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer: antes de dirigir, escreveu sobre filmes nos mesmos Cahiers du Cinéma em que os grandes nomes da nouvelle-vague haviam escrito. Seus filmes, como bem sintetiza o livro 501 Movie Directors, exploram as intrincadas relações humanas e a complexidade das emoções das pessoas – passando longe da visão sentimental tão comum em filmes de Hollywood. “Os filmes de Téchiné não oferecem respostas fáceis para as audiências; em vez disso, são observações sobre os dilemas cotidianos de pessoas que enfrentam as consequências de suas emoções e a natureza doçamarga das relações humanas”.
A família é um dos interesses fundamentais do realizador. Em Minha Estação Preferida/Ma Saison Préferé (1993), por exemplo, ele faz um apanhado de todos os tipos de problemas familiares: a crise da meia idade, a crise da geração de meia idade quando os pais ficam velhos e se tem que decidir o que fazer, as dificuldades de comunicação, a dificuldade de expressar sentimentos e sensações, as dificuldades da adoção, a distância dos filhos – e, ainda, um amor quase incestuoso entre dois irmãos, interpretados por Catherine Deneuve e Daniel Auteil.
A mesma dupla de grandes atores, Catherine e Auteil, disputa o amor de uma jovem ladra em Os Ladrões/Les Voleurs (1996). O filme fala de irmãos, de família, de amor, de solidão, de relação homossexual, encontro e desencontro. Mas o tema básico é como o outro lado da lei é tão mais atraente para uma criança do que o lado “certo”, em uma sociedade baseada na acumulação de dinheiro e bens.
Se as relações familiares, e as relações afetivas de uma maneira geral, são a base dos filmes de Téchiné, a questão dos dois lados da lei, da marginalidade, dos que optam por viver do outro lado dela também está presente em várias de suas histórias.
O recente O Homem que Elas Amavam Demais/L’Homme qu’on aimait Trop (2014), o sétimo em que ele dirige Catherine Deneuve, e que é baseado em um livro que reconstitui uma história real, aprofunda-se nas relações conturbadas, problemáticas, entre mãe e filha – mas depois se transforma quase num thriller, com sequências importantes em um tribunal.
O menino Martin não queria viver com o pai rico, casado com outra mulher
Como não poderia deixar de ser, Alice e Martin fala de relações familiares conturbadas, problemáticas – e no fim, como em outros filmes de Téchiné, há a presença da polícia e de juízes.
O filme começa mostrando para o espectador Martin criança de dez anos de idade (interpretado, aí, pelo garoto Jeremy Kreikenmayer, na foto abaixo). Vive numa cidade bem pequena, de interior, com a mãe, Jeanine (o papel da espanhola Carmen Maura), que tem um salão de beleza e, naquele momento, namora Saïd (Roschdy Zem). O garoto se dá muito bem com Saïd; parece ter uma boa relação com a mãe.
Jeanine insiste com Martin que é hora de ele ir passar um tempo com o pai, que ele nunca tinha visto na vida. O garoto diz que não quer, a mãe diz que ele vai de qualquer jeito – é uma decisão dela, e é pelo bem dele, pelo seu futuro.
O pai de Martin, Victor Sauvagnac (Pierre Maguelon), é um homem muito rico, um empresário, industrial. Com a mulher, Lucie (o papel de Marthe Villalonga), teve três filhos, Benjamin, François e Frederic (interpretados respectivamente por Mathieu Amalric, Eric Kreikenmayer e Jean-Pierre Lorit).
Martin, mais jovem que os três, nasceu de um caso que o ricaço Victor teve com Jeanine. Ela tinha sido apaixonada por Victor, e este tinha – uma das história mais repetidas na vida real e na ficção – prometido que se casaria com ela.
Ao contrário do que seria de se prever, do que seria o mais comum, Lucie Sauvagnac recebe muito bem o filho do marido com a amante. Mas o próprio pai é um homem absolutamente seco, autoritário – e Martin não quer, de jeito nenhum, viver na casa rica. Chega a fingir uma febre para ver se consegue voltar para a casa da mãe. Não consegue. O pai diz que ele ficará ali, e pronto.
Nesse ponto há um corte, vemos um letreiro que diz “Dez anos depois”, e Martin (agora, com 20 anos, interpretado por Alexis Loret) está saindo correndo o mais rápido que consegue daquela mesma do pai.
Caminha para fora da cidade, vai para uma montanha, longe de tudo. Acha uma pequena cabana, esconde-se ali.
Fica ali escondido durante vários, vários dias. Alimenta-se de ovos que rouba num sítio próximo – até que um dia é surpreendido pelo dono do sítio, que o entrega à polícia.
O policial encarregado do caso conversa com ele, quer saber por que ele fugiu de casa no dia da morte de seu pai. Conta que a sra. Sauvagnac havia se disposto a indenizar o pequeno fazendeiro, e estava vindo agora para a delegacia, para levá-lo de volta para casa. Martin diz que não gostaria de vê-la, pergunta se pode ir embora antes de ela chegar. O policial diz que sim, ele é maior de idade e é livre para fazer o que quiser.
Por um golpe de sorte, Martin vira modelo, passa a ganhar uma fortuna
Tudo isso que relatei acima é mostrado bem rapidamente, nos primeiros 15 minutos do filme.
Martin não volta para casa. Vai em seguida pedir carona e ir parar em Paris, no pequeno apartamento em que vive seu meio-irmão Benjamin (o papel, repito, do ótimo Mathieu Amalric).
Benjamin, veremos, pretende ser ator de teatro. Enquanto se prepara, ganha a vida trabalhando como segurança em uma das lojas da Fnac. Homossexual assumidérrimo, divide o apartamento com uma grande amiga, Alice – finalmente surge na tela a Binochinha, lindérrima, parecendo ter menos que os 34 anos que tinha.
Alice é violinista. Já tinha trabalhado tocando em festas, em casamentos, mas agora estava num grupo que se especializava em tango – ouviremos o conjunto tocar “Michelangelo 70”, de Astor Piazzolla.
Benjamin recebe com alegria o irmão, e oferece lugar no apartamento para ele.
Martin terá um golpe de sorte: rapaz muito bonito, atrairá a atenção da dona de uma agência de modelos. Em pouco tempo, o jovem de 20 anos recém-chegado a Paris estará ganhando uma fortuna inimaginável tanto por Benjamin quanto por Alice.
Vai rolar muita coisa daí para a frente – o previsível envolvimento do casal que dá o nome do filme, mas também muitos fatos surpreendentes. Quando o filme está lá pela metade de seus 124 minutos, haverá um flashback mostrando o que aconteceu nos momentos que precederam aquela fuga desesperada de Martin da casa do pai.
Não teria sentido, creio, avançar no relato da trama mais do que já foi dito.
Os dois filmes de Téchiné com Juliette Binoche têm vários pontos em comum
Acho interessante notar algumas semelhanças entre os dois filmes de Téchiné com Juliette Binoche. Em Rendez-Vous, a personagem central, Nina, chega a Paris vinda do interior bem jovenzinha, com uns 20 anos, querendo ser atriz. Por um golpe de sorte que pouquíssima gente tem na vida, rapidamente Nina estará nas mãos de um grande diretor de teatro que oferece a ela o papel de Julieta numa montagem que fará do clássico de Shakespeare.
Neste Alice e Martin, Martin chega a Paris vindo do interior, com 20 anos, sem saber absolutamente o que quer da vida e, por um golpe de sorte que pouquíssima gente tem, bem depressa vira modelo, e um modelo em fantástica ascensão.
Em Rendez-Vous, vai ser encenado Romeu e Julieta. Neste Alice e Martin, Benjamin ensaia o Ricardo III de Shakespeare.
Nina de Rendez-Vous vai da província para Paris tentar se firmar como atriz. Benjamin de Alice e Martin vai da província para Paris tentar se firmar como ator.
Três grandes jornais franceses deram 4 estrelas em 5 para o filme
Diz o Guide des Films de Jean Tulard: “Uma primeira parte em que se flutua entre Alice e Martin, em que eles mesmos não sabem muito bem se definir, como se encontrar – com o excelente Matthieu Amalric como traço de união. E depois um flashback inesperado faz o filme descer até o centro do drama. Juliette Binoche, luminosa, determinada, enfrenta a verdade, qualquer que seja, com todo seu talento. Drama individual com sua fissura, sua culpabilidade. O passado está lá para roer a vida.”
Eis o que diz o Petit Larousse des Films: “Um filme muito bem feito, mas curiosamente desprovido de emoção, como se o realizador tivesse ficado fora de seu tema, ou tivesse sido ultrapassado pela amplidão dos meios colocados à sua disposição.”
Leonard Maltin deu 2 estrelas em 4 ao filme e, ao final da sinopse, disse: “Seu passado problemático (de Martin) é gradualmente revelado em flashbacks, mas é difícil se importar com ele ou com seu futuro neste filme frustrante”.
Acho essa definição feito por Maltin muito exagerada. Segundo mostra o AlloCine, o site que tem tudo sobre os filmes franceses, três grandes jornais – Le Monde, Libération e L’Huminité – deram 4 estrelas em 5 para Alice et Martin quando o filme foi lançado.
Na minha opinião, não chega a ser um grande filme, nem é dos melhores de Téchiné. Mas é Téchiné, portanto é bom, e merece respeito.
Anotação em junho de 2016
Alice e Martin/Alice et Martin
De André Téchiné, França-Espanha, 1998
Com Juliette Binoche (Alice), Alexis Loret (Martin Sauvagnac), Mathieu Amalric (Benjamin Sauvagnac), Carmen Maura (Jeanine), Marthe Villalonga (Lucie Sauvagnac), Pierre Maguelon (Victor Sauvagnac), Eric Kreikenmayer (Francois Sauvagnac), Jean-Pierre Lorit (Frederic Sauvagnac), Roschdy Zem (Saïd), Jeremy Kreikenmayer (Martin criança), Kevin Goffette (Christophe), Christiane Ludot (Laurence)
Argumento e roteiro Olivier Assayas, Gilles Taurand e André Téchiné
Fotografia Caroline Champetier
Música Philippe Sarde
Montagem Martine Giordano
Produção Les Films Alain Sarde, Vértigo Films, France 2 Cinéma, France 3 Cinéma, Canal+. DVD Versátil.
Cor, 124 min.
R, **1/2
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