Albert Dupontel, ator tarimbado, realizador bissexto, começa este 9 Mois Ferme, no Brasil Uma Juíza Sem Juízo, seu sexto filme como diretor, de forma absolutamente extraordinária. É um tour-de-force, é um encanto, é de babar – a comédia abre com um plano-sequência para quem gosta de cinema ficar de pé e aplaudir como na ópera.
Enquanto vão rolando os créditos iniciais, a câmara vai passeando – rapidamente, agilmente – pelos imensos salões do Palais de la Justice, a sede da mais alta Corte da Justiça francesa, no coração de Paris, na Île de la Cité, junto da Saint-Chapelle. É o dia 31 de dezembro de 2012, é a festa de réveillon promovida pelos advogados, com a participação da juizada toda.
A câmara passeia velozmente entre as dezenas, centenas de convivas, a maioria vestida em seus trajes de gala, alguns usando togas como se estivessem em meio a um julgamento. Um contigente grande de serviçais usa uniformes de séculos atrás, o que dá a tudo um ar de corte de Luís XVI, antes da queda da Bastilha e daquela invenção de Monsieur Joseph Ignace Guillotin.
Garçons em impecáveis casacos brancos carregam taças e mais taças de vinho e champagne, e os representantes do mais alto meio jurídico francês bebem com uma sede de flamenguista ou corintiano no bar da esquina depois de um jogo especialmente duro.
A câmara não pára um instante sequer, não há corte algum, é uma tomada apenas, um plano-seqüência, e ela sobe as escadas do imponente salão de entrada do Palais de la Justice com a elegância de uma gazela. Festeja-se lá em cima como lá embaixo.
“Meu trabalho é proteger as pessoas delas mesmas”, diz a juíza para o espectador
Alguém carrega para o andar de cima alguns balões de diversas cores, todos com o desenho de uma toga. Um dos balões – um vermelho, como o que deu nome ao filme cult de Albert Lamorrisse de 1956 – voa para fora da janela, para a área do pátio interno do conjunto de prédios que formam o Palais de la Justice. A câmara – ainda sem um corte sequer – segue o balão e aí vemos uma janela de uma sala em que uma jovem mulher trabalha, naquela noite de fim de ano.
É a protagonista da história, interpretada por Sandrine Kiberlain, e ela se apresenta para os espectadores. O monólogo inicial é delicioso: – “Meu nome é Ariane Felder. Tenho 40 anos. Sou juíza e trabalho de 10 a 15 horas por dia no Palácio de Justiça, entre audiências, dossiês, relatórios de peritos, depoimentos de testemunhas, avisos e fotocópias. Palácio é uma palavra muito pomposa, quando sua sala é um cubículo e você tem o poder de condenar alguém a uma cela de prisão. É uma pequena vingança pessoal, mas isso é errado. As pessoas são irresponsáveis. Meu trabalho é protegê-las delas mesmas.”
Vemos vários papéis – trechos de processos – sendo carimbados. Aí vemos o rosto da juíza Ariane Felder-Sandrine Kikberlain, enquanto ela diz: – “Amo meu trabalho. Sou solteira e não tenho filhos.”
Vemos Ariane fazendo alongamentos na sala de seu confortável apartamernto: – “Estou bem sem um homem e sem impulsos. É só fazer um pouco de exercício que tudo fica bem.”
Vemos Ariane em sua salinha abarrotada de livros, tendo diante de si um casal que discute, a mulher chora, o advogado tenta conter os ânimos: – “E trabalhar com questões de família confirmou o que penso sobre relacionamentos. Filhos atuam em uma tragédia escrita pelos pais.”
Vemos uma criança, um carro que vai embora de uma casa: – “Minha mãe também era sozinha, mas não foi por escolha: meu pai foi embora quando eu era criança. É fácil dizer que todos os homens são covardes. Hoje, na minha idade, não tenho papas na língua.”
Vemos uma senhora elegante diante de uma bela casa cair para trás da cadeira em que está sentada: – “Depois de me criar, minha mãe morreu.”
Vemos novamente cenas da festa que está rolando no Palais de la Justice: – “Esta noite é o réveillon. Todos estão festejando. Especialmente os advogados.”
Vemos Ariane em sua salinha, sentada diante de sua mesa, e diante dela, os processos vão se acumulando, formando pilhas cada vez mais altas: “Não vejo graça no início de um novo ano. Há de 100 a 150 novos casos, e muitas vítimas a lamentar”.
Um grupo festeiro enfim invade a sala onde Ariane resistia trabalhando solitária e explicando seus pontos de vista ao distinto público que começa a ver o filme.
Ariane sabe que não conseguirá resistir mais. Se não tem remédio, remediado está: ela se entrega então à farra, entra na dança. Para aguentar aquele povo todo que já estava meio ou muito bêbado enquanto ela estava sóbria como uma juíza, Ariane entra na bebida vorazmente.
Para fechar essa abertura majestosa, brilhante, tour-de-force, inteligente, com aquele plano sequência de abertura de aplaudir de pé como na ópera, o filme ainda nos oferece tomadas das escadarias frontais do Palais de la Justice feitas das câmaras de segurança. Está lá escrito que são 0h40, ou algo assim, do dia 1º de janeiro de 2013 – o ano em que o filme foi lançado nos cinemas franceses. As câmaras mostram uma mulher magra, com uma peruca daquelas que os juízes das cortes inglesas usam até hoje, saindo do Palais de la Justice trôpega, bêbada, trêbada.
O filme faz uma claríssima opção pelo exagero, pelo desbunde total
Se conseguisse manter o nível de inteligência, de brilhantismo desses primeiros cinco, oito, talvez dez minutos, ao longo de todo o filme, Albert Dupontel teria feito um filme genial, no nível assim por exemplo de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, com que Jean-Pierre Jeunet presenteou o mundo em 2001.
Não é exatamente o caso.
Uma Juíza sem Juízo/9 Mois Ferme é um filme bem curtinho: tem apenas 82 minutos, um pouco menos que os 90 minutos que são hoje em dia (na verdade já há algumas décadas) o tamanho padrão de um longa-metragem comercial.
Nos oito, dez primeiros minutos do filme, abusa-se da inteligência, do brilhantismo. Nos 72 restantes, abusa-se do abuso. A história, a trama – tudo criação de Albert Dupontel –, os personagens, as interpretações dos atores, tudo fica over demais da conta. É o exagero do exagero do exagero.
É proposital, é claro. É uma escolha consciente, e claríssima – Dupontel optou por fazer uma comédia abusada, exagerada, que roça no grotesco, no desbunde total, no nonsense – que roça, ou, melhor dizendo, que ultrapassa de longe, de muito longe, qualquer fronteira do nonsense.
Com essa opção, feita às claras, sem medo, sem vergonha, o filme não deixa de ser interessante, e, muitas, muitíssimas vezes, bastante engraçado. Mas também deixa de lado qualquer possibilidade de ser considerado algo melhor, maior, do que divertido, ou, no máximo, divertidíssimo.
No meio dessa zorra total, há um pau violento na imprensa de TV
O filme traz uma dura, duríssima gozação da imprensa: mostra a imprensa como uma coisa absolutamente irresponsável, afundada no lodo, no pântano de infotainment, essa coisa de transformar o noticiário, o jornalismo, em especial o televisivo, num fantástico show da vida – uma mistura de informação com entretenimento, esse horror que os brasileiros conhecem tão bem, simbolizado pelos Datenas, os locutores do fim do mundo a cada fim de tarde.
Mary achou essa exposição dos males do jornalismo sensacionalista uma coisa muito boa – e de fato é, obviamente. A questão é que, como o filme optou por ser escrachado demais, por ser gozador demais, radicalmente pouco sério, temo que muitos espectadores nem sequer captem a mensagem anti fantástico show da vida de merda na TV.
E, no dia seguinte, a juíza acorda sem ter a mínima idéia do que fez à noite
A trama toda vai girar em torno da seguinte questão: naquela noite de réveillon, a até então seriíssima juíza Ariane Felder bebeu demais, e, a partir aí da meia-noite e meia do primeiro dia do Ano Novo, não era mais responsável por seus próprios atos.
Acontece em Paris com a até então ajuizadíssima juíza Felder exatamente o mesmo que já havia acontecido – para dar apenas dois exemplos – com Alex Sternbergen, em Los Angeles, e com Vieira, no Rio de Janeiro.
Alex Sternbergen, a personagem interpretada por Jane Fonda em A Manhã Seguinte, de Sidney Lumet (1986), acorda, de ressaca abissal e absoluta amnésia alcoólica, numa cama ao lado de um homem assassinado em meio a um banho de sangue.
Vieira, o ex-policial já aposentado criado pelo escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza no livro Achados e Perdidos (1998), acorda, de ressaca abisssal e absoluta amnésia alcoólica, para descobrir que sua amante havia sido assassinada na noite anterior após jantar com ele. E o cinto de couro dele está amarrando às pernas dela.
Exatamente como a americana Alex e como o brasileiro Vieira, a francesa Ariane Felder acorda no dia 1º de janeiro sem ter a minima idéia, a mais minima idéia, a menor minima idéia do que aconteceu na noite anterior.
Pasma, a juíza descobre que está grávida do bandido mais louco do país
Estamos todos hoje sob os olhos atentos do Grande Irmão que George Orwell, genialmente, já antecipava em 1949, um ano antes de eu nascer, em seu apavorante 1984. Essa coisa do Grande Irmão é uma previsão futurística que se transformou há tantos anos em realidade clara, óbvia, palpável, que nem mais damos atenção ao fenômeno. Sorria, você está sendo filmado, nos dizem, em cada lugar em que andamos – e achamos tudo isso muito normal.
As diversas, dezenas de câmaras de segurança colocadas nos postes da Île de la Cité, nos arredores do Palais de la Justice, gravaram todos os passos bêbados, tronchos, da até então seriíssima juíza Ariane Felder, ao sair da festa de arromba do réveillon.
Seis meses depois da tremenda bebedeira, a juíza se descobrirá grávida. E então irá até os policiais que têm as gravações, pedirá para vê-las – e verá que ela deu, no meio da rua, ali, no Première Arrondissement, no miolo da Cidade Luz, ao ar livre, as estrelas infinitas acima de sua cabeça, para ninguém menos que Bob Nolan, o criminoso mais falado pelos telejornais franceses, o ladrão conhecidíssimo, várias vezes condenado, e que agora há pouco havia sido acusado não apenas de assaltar o apartamento de um miliardário, Monsieur De Lime (Gilles Gaston-Dreyfus), como também de atacá-lo com um maçarico, cortar fora suas pernas, e, at last but not at least, ter arrancado e comido seus olhos.
No dia 31 de dezembro, Ariane era uma juíza ajuizadíssima. Na madrugada de 1º de janeiro, deu para um bandido louquíssimo – e, em meados de julho, se descobre gravida da lombrosa figura.
Bob Nolan, o bandido louquérrimo, que segundo toda a imprensa comeu os olhos de uma vítima, é interpretado, é claro, por ninguém menos que Albert Dupontel, o diretor do filme e autor do roteiro.
O cinema francês, assim como o americano, tem especial paixão por bandidos
A trama criada por Dupontel é sem dúvida engraçada. Uma juíza seriíssima que de repente se descobre grávida de um bandido crudelíssimo, um tipo ao que tudo indica imbecil, estúpido, e doido de pedra.
Albert Dupontel ganhou o César por seu roteiro original, e Sandrine Kiberlain levou o de melhor atriz. A academia francesa gostou mesmo de 9 Mois Ferme, que teve também indicações nas categorias de melhor filme, melhor diretor, melhor ator para Dupontel e melhor montagem para Christophe Pinel.
O cinema francês – assim como o americano, e não há cinematografias que se adorem mutuamente e se respeitem mais que as americana e francesa – tem uma antiga paixão pelos fora-da-lei. François Truffaut, que na vida real, bem jovem, roçou na marginalidade, fez vários filmes em que personagens são foras-da-lei – com especial destaque para Uma Jovem Tão Bela Como Eu/Une Belle Fille Comme Moi (1972), em que uma criminosa condenada enrola a cabeça de um jovem sociólogo.
A folk music nascida na Inglaterra e na Irlanda e que deu frutos magníficos nos Estados Unidos também sempre endeusou bandidos, ladrões, assim como o cinema. Nunca houve um xerife, um homem da lei, tão amado quanto bandidos como Billy the Kid, Bonnie and Clyde.
O bandido é sempre mais fascinante que o homem da lei – o cinema e a música americana sempre disseram isso, e os franceses caíram de amores por isso. Seja marginal, seja herói – essa foi uma palavra de ordem do cinema brasileiro que se seguiu ao cinema novo, no meio da ditadura.
Dupontel faz no filme um bandido – pai ausente, mãe alcoólatra, ai, ai, meu Deus do céu e também da terra – muito simpático e muito digno. Vai ser demonstrado, ao longo do filme, por A e até Z, que ele não usa maçarico, não corta pernas, não come olhos. Ele só rouba de gente rica – e, ora bolas, roubar de ricos, ah, isso na verdade é praticar a justiça social!
Se a gente for pensar seriamente, ainda que só por alguns segundos, é assim: este filme que começa brilhante, maravilhoso, é de uma absoluta irresponsabilidade. Vende gato por lebre – bota como herói quem é, na verdade, bandido.
Mas, se a gente não se preocupar demais com significados, se soltar a franga, ah, é uma comédia danada de engraçada.
Um tanto forçada demais, um tanto ridícula demais, um tanto grotesca demais, é verdade. E há um exagero violento demais da conta na exibição do ataque sanguinário ao tal miliardário que perde as pernas e os olhos.
Mas que a abertura do filme é espetacular, lá isso é, e nada do que vem depois pode apagar.
Anotação em abril de 2015
Uma Juíza Sem Juízo/9 Mois Ferme
De Albert Dupontel, França, 2013
Com Sandrine Kiberlain (Ariane Felder), Albert Dupontel (Bob Nolan),
e Nicolas Marié (Trolos, o advogado de Bob Nolan), Philippe Uchan (De Bernard), Philippe Duquesne (Dr. Toulate), Bouli Lanners (o policial dos vídeos de segurança), Christian Hecq (tenente Edouard), Gilles Gaston-Dreyfus (M. De Lime), Michel Fau (o ginecologista)
Argumento e roteiro Albert Dupontel
Fotografia Vincent MathiasMúsica Christophe Julien
Montagem Christophe Pinel
Produção ADCB Films, Wild Bunch, France 2 Cinéma, Cinéfrance 1888. DVD Europa Filmes.
Cor, 82 min
**1/2
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