Os atores de teatro são uns chatos de galocha. Os dramaturgos, a julgar pelo exemplo em questão, são uns bocós, incompetentes. Os intelectuais, ou metidos a intelectuais, também são sacos vazios de idéias. A única pessoa que sabe fazer direito alguma coisa é um assassino frio, que perdeu a conta de quantos já matou.
Mas nem tudo está perdido: se você desistir de pretender ser o que não é, e admitir suas limitações, você terá direito a uma cota de felicidade.
Essa parece ser a moral da história de Tiros na Broadway, o Woody Allen de 1994.
A quantidade de bons atores com que o realizador pôde contar é de babar: John Cusack, Dianne Wiest (esta, useira e vezeira nos filmes de Allen), Jennifer Tilly, Chazz Palminteri, Mary-Louise Parker, Jack Warden, Tracey Ullman, Jim Broadbent.
Para um papel importante, mas pequeno, Allen chamou o colega Rob Reiner, o diretor de comédias deliciosas (Harry e Sally – Feitos um para o Outro/When Harry Met Sally…, 1989) e dramas densos (Questão de Honra/A Few Good Men, 1992, Fantasmas do Passado/Ghosts of Mississippi, 1996).
Impressionante.
O mafioso financia a peça para pôr no elenco sua namoradinha
O protagonista é David Shayne (o papel de um John Cusack que hoje nos parece jovem demais), um jovem dramaturgo que se mudou para Nova York com a namorada, Ellen (Mary-Louise Parker, na foto), naqueles turbulentos anos 1920, com a firme determinação de ser um dos mais importantes nomes do teatrão sério dos Estados Unidos, do mundo. Um Strindberg, um Tchekhov, um Ibsen. Escreveu duas peças que foram um fracasso absoluto – segundo ele, porque foram estragadas pelos diretores – e agora está com uma terceira pronta, um drama sério, pesado.
Seu agente, Julian Marx (Jack Warden), tenta chamá-lo à razão: ninguém vai financiar uma peça séria, pesada, de um autor que já teve dois fracassos encenados.
Mas acontecerá um lance do destino: por acaso, Julian Marx se encontra, uma noite, com Nick Valenti (Joe Viterelli, ótimo num papel em que se ajusta a ele como uma luva), um gângster, um mafiosão, que acontece de estar de caso com uma dame, uma broad, uma ex-dançarina de inferninho barato que sonha em ser atriz na Broadway. Nick está absolutamente apaixonado por Olive (um papel perfeito para Jennifer Tilly, uma atriz sensual, que sabe perfeitamente fazer papel de gostosa burra), e fará tudo por ela. Inclusive, é claro, financiar uma peça em que ela tenha um papel importante.
Ao conhecer aquele estrupício de putinha de gângster com Q.I. de ostra e voz de taquara rachada, o nosso futuro gênio maior da dramaturgia mundial tem um ataque apoplético. E jura que não quer saber daquilo, de jeito nenhum, não quer se comprometer, não quer alterar seus planos.
Tudo o que fará em seguida será ceder, ceder, ceder, alterar seus planos, mexer no texto, mudar tudo.
Além da pavorosa Olive, o elenco da peça contará com uma ex-grande diva que hoje está sem convite para peça alguma, Helen Sinclair (o papel de Dianne Wiest, ótima em tudo que faz, aqui perfeita), um veterano e respeitado ator inglês que também não está em seus melhores diasm come compulsivamente e não pára de engordar, Warner Purcell (Jim Broadbent), e uma cabeça de vento que leva para os ensaios um cachorrinho danado de chato, Eden (Tracey Ullman, comediante fantástica, que Allen saberia usar muito melhor em Trapaceiros/Small Time Crooks, 2000).
O mafioso Nick Valenti mandará para acompanhar Olive nos ensaios, e não se desgrudar dela nem um minuto, seu homem de confiança, o experiente assassino Cheech (um papel sob medida para Chazz Palminteri).
Lá pelas tantas, Cheech passará a fazer sugestões de mudanças nos diálogos, nas situações, nas personalidades dos personagens da peça. E serão sugestões ótimas.
Elenco maravilhoso, ótimas situações, diálogos sensacionais
Uma ex-diva agora em decadência. Um ator que envelhece e cede a um vício que piora ainda mais sua carreira. Um gângster apaixonado por uma mulher gostosa e burra. Uma mulher gostosa e burra que quer ser atriz de teatro. É um grande desfile de estereótipos, me peguei pensando, enquanto revia Tiros na Broadway e – coisa raríssima, raríssima, em se tratando de um filme de Woody Allen – não achava lá muita graça.
Mas vou logo me apressando a dizer: como já foi dito aí acima, o elenco é extraordinário e estão todos maravilhosos, como sempre nos filmes de Woody Allen. Há situações muito, muito boas, e os diálogos, também como sempre, têm fagulhas de brilho, de genialidade.
Creio que não me diverti tanto com o filme, nesta revisão, por falta de sintonia, por problemas meus, por estar em dias de mau humor e preocupações com coisas que não têm nada a ver com as qualidades de Tiros na Broadway.
Sete indicações ao Oscar. Dianne Wiest levou o de coadjuvante
Junto com Hannah e Suas Irmãs, este aqui foi o filme de Woody Allen com maior número de indicações ao Oscar – nada menos que sete: direção, roteiro original, ator coadjuvante para Chazz Palminteri, atriz coadjuvante para Jennifer Tilly, atriz coadjuvante para Dianne Wiest, direção de arte para Santo Loquasto, figurines para Jeffrey Kurland.
Dianne Wiest levou para casa a estatueta, e também ganhou o Globo de Ouro.
Este é um dos poucos filmes do realizador em que, nos créditos iniciais, não aparece a expressão “written and directed by Woody Allen”. O roteiro é assinado por Allen e Douglas McGrath. É extremamente raro que ele divida com outra pessoa a autoria da história e do roteiro.
Esse Douglas McGrath é ator e diretor, além de roteirista. Dirigiu Emma (1996), baseado na obra de Jane Austen, e Confidencial/Infamous (2006), um dos dois filmes lançados mais ou menos na mesma época e que mostram como Truman Capote escreveu a obra-prima A Sangue Frio.
Para situar o filme dentro da obra de Woody Allen: Tiros na Broadway foi o segundo filme após o fim da era Mia Farrow. Neblina e Sombras (1991) e Maridos e Esposas (1992) foram os últimos dessa era. Aí então veio o delicioso, impagável Um Misterioso Assassinato em Manhattan/Manhattan Murder Mistery (1993), em que, para traçar claramente a linha divisória com a fase anterior, Allen contracena com a musa anterior, a maravilhosa Diane Keaton.
Depois de Tiros na Broadway veio outra absoluta delícia, Poderosa Afrodite (1995). E, logo em seguida, ainda outra maravilha, Todos Dizem Eu Te Amo (1996).
Maltin, Ebert, Tulard – todos se deliciaram com o filme
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 para o filme: “Deliciosa diversão de Woody Allen sobre um dramaturgo que se julga muito sério e que rapidamente se vende quando tem uma chance de dirigir seu último trabalho na Broadway – com a prostituta de um gângster num papel chave, e uma estrela intoxicantemente sedutora como a protagonista. Um prato cheio para os atores, com papéis especialmente suculentos para Wiest, como a extravagante atriz, e Palminteri, como um bandido com um dom inesperado. Os detalhes de época são tão ricos e certos que tudo parece fascinantemente real”.
Roger Ebert deu 3.5 estrelas em 4. “É 1929, o mundo está em tumulto, e o dramaturgo é orgulhosamente um homem de esquerda. Mas o sujeito que está botando dinheiro na peça é um rico gângster que não dá a menor bola para política – desde que sua namorada tenha um papel importante na peça. Só isso já poderia ser a base de uma boa comédia. Mas Allen tem uma carta maravilhosa na manga, na forma do guarda-costas da putinha do gângster. (…) Ele se chama Cheech, e é interpretado por Chazz Palminteri com uma nota de ameaça combinada com uma inteligência natural. Ele não é um autor de peças de teatro. Dificilmente terá visto uma peça antes. Mas ao sentar lá, dia após dia, vendo o elenco lutar com frases impossíveis de serem ditas e idéias que não funcionam, ele consegue ver o que está errado. Diabo, qualquer um poderia. A reviravolta envolvendo o guarda-costa é o que faz Bullets Over Broadway ser mais do que ele poderia ser, uma comédia engraçada mas rotineira.”
O Guide des Films de Jean Tulard diz que é um Woody Allen muito bom porque ele mesmo não aparece, deixando o papel do autor para John Cusack. “O personagem interpretado por Cusack é estúpido e sem talento, enquanto Woody Allen teria dado a ele uma outra dimensão, com dúvida existencial e angústias metafísicas. Com Cusack, o espectador ri francamente. Outro motivo do sucesso do filme: a homenagem nostálgica aos velhos filmes de gângster, homenagem na qual Allen sempre se dá bem, já que sua cultura cinematográfica é imensa. O personagem de Cheech já tem seu lugar numa antologia de obras do mestre.”
É. Sem dúvida vou ter que rever de novo Tiros na Broadway, quando as circunstâncias estiverem melhores…
Anotação em janeiro de 2015
Em 1995, escrevi que o filme é “um colírio, uma bênção”
Foi só agora, ao colocar este post no ar, que percebi que já havia aqui neste 50 Anos de Filmes um texto sobre Tiros na Broadway. Tinha me esquecido completamente. É um texto bem pequeno, escrito para mim mesmo em 1995, muito antes de eu pensar em ter um site sobre filmes. Lá vai:
Um colírio, uma bênção. Um Woody Allen que não quer ser Bergman, nem Fellini, nem quer discutir Deus, o vazio. Não que o Allen-Bergman seja ruim, de forma alguma. Mas é bom também ver o Woody Allen ele mesmo, sempre às voltas com Manhattan, o showbiz.
Estão lá as críticas ao esnobismo dos ricos e intelectuais, estão de passagem e de maneira muito engraçada os problemas com Deus e Freud. Mas o filme é pra cima, é alegre, é engraçadíssimo, a história é maravilhosa, e há um inédito (na obra dele) elogio ao homem simples (o grande autor de teatro não é o pretensioso intelectual, e sim o gângster humilde) e à vida simples (a opção por uma vida comum no interior em vez de almejar a glória da Broadway).
Tiros na Broadway/Bullets Over Broadway
De Woody Allen, EUA. 1994
Com John Cusack (David Shayne), Dianne Wiest (Helen Sinclair), Jennifer Tilly (Olive Neal), Chazz Palminteri (Cheech), Mary-Louise Parker (Ellen), Jack Warden (Julian Marx), Joe Viterelli (Nick Valenti),
Rob Reiner (Sheldon Flender), Tracey Ullman (Eden Brent), Jim Broadbent (Warner Purcell), Harvey Fierstein (Sid Loomis), Stacey Nelkin (Rita)
Argumento e roteiro Woody Allen e Douglas McGrath
Fotografia Carlo Di Palma
Montagem Susan E. Morse
Casting Juliet Taylor
Direção de arte Santo Loquasto
Produção Miramax, Sweetland Films, Magnolia Productions. DVD Flashstar.
Cor, 99 min
R, ***
Título na França: Coups de feu sur Broadway.
Opa. Já tinha falado dessa pequena obra prima quando comentei “Poucas e Boas”.
Vaz, que site legal! Meus parabéns. Dá vontade até de trocar uma ideia pessoalmente.
O guarda costas assassino dando pitacos no roteiro da peça é um achado. Ótimo filme.