Este Detalhes/The Details, produção do cinema independente americano de diretor muito jovem e atores bons consagrados, é um filme danado de estranho. Não é ruim, não, de forma alguma. Ao contrário: o diretor, Jacob Aaron Estes, nascido em 1972 e também autor do argumento e do roteiro, mostra que tem talento.
Mas é um filme esquisito.
É uma comédia de humor negro, que começa cômica, vai indo negramente, amargamente cômica e depois vira simplesmente trágica.
Tenho um problema sério com humor negro: não consigo entendê-lo. Confesso que não compreendi o que esse filme feito com muito talento, mas esquisito demais, quer dizer.
Talvez ele queira dizer simplesmente que shit happens, Ma. Dá merda na vida de qualquer um, não é um fenômeno – muito ao contrário, é a coisa mais comum do mundo. Quem é mesmo que dizia “quer lugar comum mais lugar comum que a vida”? Luiz Vilela? Fernando Sabino? Não me lembro, mas me parece coisa de bom escritor mineiro.
A questão é que a merda que dá na vida do protagonista, Jeffrey Lang, um jovem médico boa gente, interpretado pelo sempre ótimo Tobey Maguire, é imensa demais da conta. É descomunal. Que dá merda na vida de gente boa, claro, é fato, a gente está cansado de saber disso, até porque já aconteceu na vida de cada um de nós. Mas a que dá na vida de Jeffrey Lang é ciclópica. É como se todos os elefantes da Terra inteira tivessem feito merda na vida dele.
Ah, sim, é fundamental que se diga desde logo que este filme esquisito tem duas características fascinantes: traz uma interpretação extraordinária, maravilhosa, estupenda, antológica dessa bela atriz que é Laura Linney. E faz absoluta questão de ser pós-racial.
É um filme esquisito, mas não é um filme ruim, de forma alguma.
A grama nova no terreno da casa atrai guaxinins, raccoons, bichos nojentos
Começa com a voz marcante, facilmente reconhecível de Tobey Maguire se apresentando para o espectador:
– “Quando uma coisa desastrosa acontece na vida, você tenta voltar e repassar tudo. Você vê onde foi o erro, tentando identificar como foi que aconteceu. Pensar cuidadosamente em cada uma das pequenas coisas. Você fica examinando todos os detalhes.”
E então Tobey Maguire-Jeffrey Lang vai enumerando os detalhes que aconteceram para transformar sua vida num absoluto, absoluto inferno, enquanto vamos vendo as coisas na tela: uma planta para enfeitar a casa; uma garrafa de veneno; um rim (vemos um rim nas mãos enluvadas de um médico); algumas pílulas para dormir; uma transação bancária; visitas a sites para adultos na internet.
E então, depois desse breve – e bem interessante – intróito, vêm os créditos iniciais. Uma raridade, hoje em dia, um filme com crédito iniciais – e muito bons, por sinal.
Dean Martin canta, com um vozeirão que faz lembrar o de Elvis na fase de “It’s Now or Never”, a deliciosa canção “Memories are of made of this”. (No final do filme, a mesma canção aparecerá com um arranjo totalmente diferente, mais roqueiro e mais moderno, com dois nomes de que jamais tinha ouvido falar, Jake Blenton e Gretchen Liberum.)
Gosto desse negócio de um diretor bem jovem usar, em um filme passado nos dias de hoje, uma gravação feita antes que ele nascesse. Indica que o diretor não é daquele tipo de jovem que acha que o mundo começou no ano em que ele nasceu.
Ao som do vozeirão de Dean Martin, vamos vendo homens colocando aqueles tapetes de grama no quintal de uma casa. A grama está bem em primeiro plano, a câmara está a poucos centímetros do chão, e ficam muito bem visíveis as minhocas, muitas, muitas delas, gordas, passeando na terra que acompanha a grama que está sendo plantada atrás da casa do jovem médico Jeffrey e de sua mulher Nealy (Elizabeth Banks, nas duas fotos acima).
Veremos que o casal tem um filho, Miles (Miles Ellenwood), aí de uns quatro, cinco anos de idade. A voz em off de Tobey Maguire vai nos narrando a história ao longo de todo o filme, e ele nos conta que, naquela época ali, ele e Nealy começaram a falar sobre a possibilidade de terem um segundo filho. Para tanto, teriam que fazer uma obra na casa, criar um novo quarto. Para tanto, teriam que submeter um projeto a um órgão da prefeitura – ah, sim, a ação se passa em Seattle, Washington, a bela cidade da torre futurista e das bandas grunge.
A reforma tal qual Jeffrey imaginou é vetada pelo órgão da prefeitura. Ele e Nealy resolvem que vão fazer a obra mesmo sem ter autorização. Claro, vai dar problema.
O gramado novo também dá problema, e um problema sério: o terreno da casa passa a ser invadido por guaxinins. Ou quase guaxinins. Raccoons – que um dicionário define “animal carnívoro noturno americano, da família do urso, semelhante ao guaxinim, com cauda longa e espessa”. Bem, simplificando – um bicho bastante repelente, nojento.
Os raccoons, guaxinins, whatever, seja o que for, serão assim o elemento desagregador da vida do pobre Jeffrey. A partir do surgimento dos bichos, tudo vai piorar cada vez, exponencialmente.
A luta desesperada de Jeffrey para matar os bichos vai fazer a relação entre ele e Nealy, que já não vinha lá muito excepcional, se desgastar. Os dois vão ficando nervosos, impacientes.
Como se já não tivesse problema demais, nosso herói vai comer a amiga…
A vizinha do lado, uma senhora de mais idade, absolutamente maníaca, doida de pedra, será um elemento fundamental para ferrar definitivamente a vida do pobre médico. Chama-se Lila, e é interpretada, com absoluto brilho, por uma Laura Linney que começa a mostrar os sinais da passagem do tempo, no rosto e no corpo – está mais cheinha, especialmente no traseiro.
Já bastaria isso – problemas com a reforma da casa, os bichos nojentos, a guerra contra eles, as brigas com a mulher, a vizinha doida de pedra sempre pronta a infernizar cada vez mais a vida do jovem médico. Mas a vida vem em ondas como o mar, e quanto mais problema já existe mais a gente procura, e então Jeffrey – ô ô – sai pra tomar umas com uma velha amiga, colega dos tempos da escola de Medicina, Rebecca (Kerry Washington).
E aí conversam, tomam umas, coisa e tal, falam do sexo que anda faltando com os devidos cônjuges, Rebecca saca um monte de erva, fumam, ficam alegres, e…
Dar umazinha fora de casa, uma única vez, com uma velha amiga, não deveria ser coisa para provocar maremotos, certo? Eu tenho para mim que não seria para provocar nem um pequenino tremor num copo d’água. A questão é que o marido de Rebecca se chama Peter Mazzoni – é um italiano de Nova Jersey danado de ciumento e que ainda por cima é interpretado por Ray Liotta, que acho que jamais fez um papel de sujeito bonzinho na vida.
Falta falar de um personagem importante. Chama-se Lincoln (Dennis Haysbert), é extremamente simpático, boa gente, joga basquete no mesmo ginásio em que Jeffrey joga para se exercitar e desestressar. Têm grande simpatia um pelo outro. Conversam, e Jeffrey fica sabendo que Lincoln tem dois empregos em que ganha mal, e além disso tem uma insuficiência renal grave.
Jeffrey é uma boa pessoa, repito. É gente do bem. Resolve ajudar Lincoln. Quando tudo está contra você, nem sequer uma boa ação resulta em coisa positiva.
E avançar mais na trama seria absoluto spoiler.
Parece que o diretor deu trela para Laura Linney se soltar, exagerar…
Laura Linney sempre foi uma grande atriz. Não sei exatamente quando comecei a reparar nela, mas me lembro muito bem dela em dois filmes importantes dos anos 90, Poder Absoluto, de 1997, e The Truman Show, de 1998. Vejo agora que ela começou a carreira em 1992, em O Óleo de Lorenzo, com Susan Sarandon e Nick Nolte, e em 1993 esteve em Dave – Presidente por um Dia. Não lembrava dela em nenhum desses dois filmes.
Mas lembro bem dela, sempre com grandes atuações, em outros bons filmes: A Vida de David Gale, Sobre Meninos e Lobos, Simplesmente Amor (todos eles de 2003). Neste último, ela faz, com brilhantismo, um personagem especialmente triste – uma mulher absolutamente solitária, que tem imensa atração por um rapaz mais jovem no seu trabalho (interpretado por Rodrigo Santoro).
Tem uma das melhores interpretações da carreira cheia de boas interpretações como essa mulher absolutamente insana que mora ao lado do protagonista da história.
Dá para sacar perfeitamente que o diretor Jacob Aaron Estes, que não é bobo nem nada, deu trela à atriz, deixou-a solta, livre, para exagerar nos gestos, nas caras e bocas – afinal, Lila, a personagem, é mesmo doida de pedra. E dá para ver também que Laura Linney resolveu aproveitar a oportunidade.
É um show.
Fiquei foi pensando que, a rigor, a rigor, ela não é tão mais velha assim que Tobey Maguire. Ele tem mesmo uma baby face, é daquele tipo que parece não envelhecer nunca, e é possível que ela tenha sido maquiada para parecer mais velha. Vamos ver: ela é de 1964, ele é de 1975. Tá, 11 anos de diferença. Mas de fato parece, no filme, que a diferença é muito maior, que Jeffrey é bem jovem e Lila, a doida, é muito mais velha.
Este aqui foi apenas o segundo filme dirigido por Jacob Aaron Estes. O primeiro foi Quase um Segredo/Mean Creek, de 2004, sobre um caso de bullying. Estranho que tenha ficado entre 2004 e 2011 sem dirigir. Repito: ele tem talento.
Um filme propositadamente pós-racial e pró-maconha
Rebecca, a velha amiga de Jeffrey, que estudou Medicina com ele, tem a pele negra, assim como Lincoln, que acaba se tornando o maior amigo do jovem médico. (A atriz Kerry Washington, na foto abaixo, que interpreta Rebecca, é belíssima e tem carreira ascendente no cinema americano.)
E daí? O que tem isso?
Pois é. A rigor, a rigor, não tem nada a ver, porque a cor da pele das pessoas não tem a menor importância. Ter a pele mais clara, mais escura, os olhos puxados ou não – isso não significa absolutamente nada.
Mas não consigo deixar de ficar contente ao ver um filme que mostra brancos e negros convivendo em perfeita harmonia, como as teclas negras e brancas dos teclados do piano, como dizia Paul McCartney.
O tema “raça”, etnia, cor de pele, não é tratado no filme. É como se esse problema não existisse mais, fosse coisa do passado distante, coisa antiga, obsoleta, felizmente já superada pela humanidade.
Faço então o registro – e tenho certeza de que foi tudo absolutamente intencional do diretor, dos produtores. Na verdade, na prática, ainda não chegamos totalmente lá, na sociedade pós-racial – mas vamos chegar, e então por que já não mostrar nos filmes que isso é possível?
Outra característica que chama a atenção é a presença da maconha, apresentada como uma droga prazerosa, gostosa, inofensiva. Tem sido bem significativo o número de filmes que mostram a maconha dessa maneira positiva. Me lembro, assim, sem fazer qualquer esforço, de Paul, o Alien Fugitivo (2011), Paz, Amor e Muito Mais (2011), Simplesmente Complicado (2009), Bernard e Doris (2006) Tempo de Recomeçar (2001), Garotos Incríveis (2000), Poltergeist (1982).
Um detalhinho mínimo lembrado no IMDb: este é o segundo filme em que trabalham juntos Laura Linney e Dennis Haysbert. Antes desde aqui, haviam contracenado em Poder Absoluto, o fascinante filme de Clint Eastwood em que um exímio ladrão de jóias, interpretado pelo próprio diretor, flagra um assassinato cometido por uma figura importantíssima da república; Laura Linney faz a filha do ladrão de jóias, que não quer saber do pai, e Dennis Haysbert, um dos homens do serviço secreto que protegem o assassino flagrado durante o roubo numa mansão.
A trama parece que escapa do controle no final
Para encerrar, é o seguinte: achei que a trama meio que escapa do controle, no final, quando, após uma série imensa de problemas – desgastantes, horrorosos, intoleráveis, mas a rigor suplantáveis – sobrevém uma tragédia tão violenta.
E a moral da história – “E a vida… continuou!” – é ambígua demais. É verdadeira, por certo – mas, num filme que afinal é, na maior parte, uma comédia, fica parecendo, mais de que uma denúncia, um aplauso a algo que não é justo de forma alguma.
Anotação em abril de 2015
Detalhes/The Details
De Jacob Aaron Estes, EUA, 2011.
Com Tobey Maguire (Jeff Lang), Elizabeth Banks (Nealy Lang), Laura Linney (Lila), Dennis Haysbert (Lincoln), Kerry Washington (Rebecca Mazzoni), Ray Liotta (Peter Mazzoni), Miles Ellenwood (Miles Lang), Cathy Vu (a moça sexy da intenet)
Argumento e roteiro Jacob Aaron Estes
Fotografia Sharone Meir
Música tomandandy
Montagem Madeleine Gavin
Produção LD Entertainment, Mark Gordon Productions.
Cor, 91 min
**1/2
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