Ao contrário de tantos outros filmes, Capitão Phillips não traz, no início, aquele letreiro “Baseado em uma história real”. No entanto, o que ele mostra – por mais absurdo que possa parecer – é, sim, uma história real.
E o diretor Paul Greengrass sabe como poucos reproduzir histórias reais em imagens em movimento. Ele filma como se fosse um camaraman de TV, fazendo uma reportagem.
Já havia feito isso, com maestria, com brilho, em Vôo United 93/United 93, de 2006, em que reconstituiu, com precisão cirúrgica e um tom que beira o documentário, os acontecimentos dentro do único dos quatro aviões tomados pelos terroristas em 11 de setembro de 2001 que não atingiram seu alvo (dois acertaram o World Trade Center e o terceiro, o prédio do Pentágono).
Inglês da região de Surrey, nascido em 1955, Paul Greengrass passou os dez primeiros anos da vida profissional como documentarista da Granada Television. Uma boa frase de sua biografia no IMDb, escrita por Enrique Bocanegra, define: “Seu estilo documentário fica mais dinâmico e intenso a cada filme”.
Hum… A frase de fato é boa, mas talvez não exatamente acurada, já que dirigiu, antes e depois de Vôo United 93, dois dos títulos da série Bourne, A Supremacia Bourne (2004) e O Ultimato Bourne (2007) – filmes de ação, muita ação, artesanalmente bem realizadas, mas muito longe de qualquer proximidade com a verdade dos fatos, com a vida real.
Depois de O Ultimato Bourne, no entanto, voltou ao mundo real com Zona Verde/Green Zone (2010), que demonstra, tintim por tintim, como a motivação usada por George W. Bush para invadir o Iraque em 2003 era uma grande falácia – e, de quebra, exibe as divisões entre os vários agentes americanos em ação em Bagdá.
Este Capitão Phillips é seu filme seguinte. Greengrass não é do tipo que faz um filme a cada ano.
Reconstitui – creio que com a fidelidade possível – um episódio estarrecedor, acontecido em 2009.
Em pleno século XXI, piratas agem com freqüência
No finalzinho de março, início de abril de 2009, quatro somális, viajando num pequeno barco movido a motor de popa, tomaram de assalto um gigantesco, monstruoso cargueiro de empresa norte-americana, e aterrorizaram a vida de seus 20 tripulantes. Em especial a do seu capitão, o Capitão Phillips do título, interpretado, maravilhosamente, por Tom Hanks, essa espécie de Gary Cooper da América pós 1980.
A gente ouve falar nessa coisa de pirataria, mas acho que em geral não paramos muito para pensar.
Piratas – creio que para a imensa maioria das pessoas funciona assim – são coisa de um passado longínquo. De filmes de aventuras com Errol Flynn. Das brincadeiras de carnaval – “eu sou um pirata da perna de pau, do olho de vidro, da cara de mau”. Das historinhas de Astérix.
Os piratas existem neste século XXI, e atacam, em especial na região da Chifre da África. No início de 2009 – apenas quatro anos antes do lançamento do filme de Paul Greengrass que reconstitui o episódio, ridículos seis anos antes de Mary e eu vermos, apavorados, o filme –, quatro miseráveis somális invadiram um cargueiro biliardário, moderníssimo, de 155 metros de comprimento, quase dois campos de futebol, diversos andares, um monte de computadores dirigindo todos os trabalhos, e transformaram em reféns um bando de homens da marinha mercante do país mais rico e mais poderoso que já houve no planeta.
Tem gente que comemora ataques bem sucedidos a alvos dos EUA
E aí temo que esta anotação deixe de se concentrar exclusivamente no filme – belíssimo filme –, para falar das coisas que o filme aborda.
A tomada do monstruoso cargueiro Maersk Alabama por quatro piratas somális muito certamente é um grande feito a ser festejado por milhares, milhares, milhares de pessoas – gente que se orgulha de se dizer “de esquerda”, que tem um ódio profundo, que nem mesmo o doutor Sigmund poderia explicar, do que chamam de Império do Mal, o Império da Decadência, os Estados Unidos da América.
Esse tipo de gente existe no mundo inteiro – mas o bom Deus, ou o destino, ou as mil e uma variáveis da Geografia, da História, da Sociologia, o escambau, resolveram concentrar em quantidade absurda aqui neste canto infeliz do planeta, esta nuestra América Latrina.
A esquerdiotice vai virando raridade, peça de museu, em muitos lugares do mundo, mas na Nicarágua, Venezuela, Bolívia, Equador, Argentina e Brasil, ela floresce, cresce, aparece.
Há esquerdiotas, esquerdiopatas, que comemoraram, festejaram – como se fosse a vitória de seu time de futebol – a morte de centenas, milhares de pessoas absolutamente inocentes, pessoas como eu e o eventual leitor, no ataque terrorista às Torres Gêmeas no 9 do 11.
Eles estão aí, em massa. Estão falando imbecilidades no Facebook, no Twitter. Se os portais dos jornais estivessem noticiando hoje que quatro piratas somális, fortemente armados, tomaram de assalto um cargueiro americano desarmado de tudo, eles estariam delirando, dando hurras a esse exemplar caso de derrota dos filhos da mãe dos imperialistas americano diante da força revolucionária dos povos pobres, humilhados e ofendidos.
O filme não toma partido de nenhum dos lados – apenas expõe os fatos
Uma das muitas maravilhas de Capitão Phillips é que o filme – tal qual uma boa, ideal, idílica reportagem de TV – parece não tomar partido entre os que parecem ser Davi x Golias do nosso tempo.
Ele descreve os fatos. Mostra os argumentos de um lado, os argumentos do outro lado. A incrível tenacidade dos piratas, as tentativas dos pirateados desarmados de serem mais espertos do que quem os ameaça com as armas de fogo potentes.
O filme é feito de tal forma que as pessoas que apóiam os atos de terrorismo, de pirataria, cometidos por pessoas de um país pobre contra um Estado rico, podem achar que tudo é maravilhoso. Luminares, gênios, do tipo Sibá Machado, Rui Falcão, João Pedro Stédile, Guilherme Boulos, seguramente sairiam do cinema com os punhos erguidos, comemorando um gol contra o imperialismo. Gritando que são heróis do povo mundial os terroristas chefiados por esse incrível Muse (Barkhad Abdi).
Como se estivesse obedecendo a leis eleitorais que exigem igualdade de tempo para os dois lados, Capitão Phillips mostra para os espectadores, logo de cara, os dois lados. Um letreiro informa que estamos em Underhill, Vermont – e vemos o Capitão Phillips dirigindo seu carro desde sua casa até o grande aeroporto mais próximo, onde embarcará para a África, para assumir a chefia de mais uma viagem do cargueiro da empresa para a qual trabalha.
Confesso que fiquei bastante impressionado com essa sequência de abertura do filme. Paul Greengrass conseguiu que a bela, experiente, talentosa Catherine Keener fizesse o papel da mulher do Capitão Phillips – embora ela só apareça nessa sequência inicial, em que os dois estão indo de carro de casa até o aeroporto. Mas tamanha é a vontade do realizador de fazer algo no estilo documental que ele não filma, em momento algum, a bela Catherine Keener de frente. A câmara está no banco de trás do carro – vemos os rostos de Tom Hanks e Catherine Keener de lado, como se estivessem sendo vistos por alguém sentado no banco de trás do carro.
Conversam sobre os filhos, que já estão entrando na idade adulta. Um deles não estuda muito a sério, e Phillips se preocupa com isso: a competitividade está cada vez mais acirrada no mercado de trabalho.
Quando a mulher do Capitão Phillips assume a direção do carro do casal, para fazer o caminho de volta à casa, corta, e estamos na Somália.
De Vermont, um dos Estados mais ricos dos Estados Unidos da América, diretamente para a Somália, um dos países mais miseráveis da África, o continente que reúne o maior número de países miseráveis do planeta.
Uma rápida sequência mostra que há senhores do crime, mafiosos poderosos, que exigem de um bando de gente cumplicidade total – e ataques a navios que se aventurarem pela região.
Barkhad Abdi, que interpreta o líder do grupo pirata, Muse, e seria indicado ao Oscar, é feio que nem a fome. A rigor, consegue ser mais feio que a fome. Porém, é inteligente, esperto, e um pirata de grandes qualidades.
Capitão Phillips pode até agradar quem gosta de filmes de ação
Desde que a Bíblia foi escrita a simpatia das pessoas vai para o pequetito Davi contra o gigante Golias.
Isso vai além da paixão dos esquerdiotas por todos os que desafiam os ianques.
É algo que parece atrelado ao bom caratismo: ninguém gosta do mais poderoso.
Capitão Phillips mexe com essas certezas milenares. Não que defenda os americanos, de forma alguma. A rigor, bem a rigor, o filme – repito – não defende ninguém, nem americanos nem somális.
Mas ele mexe com essas certezas milenares. Ele coloca a questão: vem cá, mas o fato de você ser mais pobre dá a você o direito de ser violento, ser agressor? Infernizar a vida de seres humanos?
O fato de você ser mais pobre dá a você o direito de ser um torturador?
Você ser pobre dá a você o direito de ser igual a um nazista num campo de concentração?
Na minha opinião, é disso que trata esse filme brilhante. É dessas questões muito sérias, muito importantes.
O estilo é mesmo quase de documentário. É como se o filme estivesse imitando o estilo de uma reportagem de TV, repito – e chega até a ser irritante como tem excesso de câmara de mão, e excesso de close-up.
Paul Greengrass capta, em uma bela produção de cinema, um momento importante da história recente, como já havia feito naqueles outros dois belos filmes, Vôo United 93 e Zona Verde. Filma como se fosse um documentário, filma com uma imensa urgência – e quem gosta de filmes de ação, de besteiras tipo os 007 ou os Bourne ou os de super-heróis, pode até gostar, porque Capitão Phillips, com seu ritmo rápido, com a tensão que se acumula e vai aumentando a cada momento, deixa o espectador com os nervos à flor da pele.
Mas é muito, muitíssimo mais que um mero bom filme de ação. É um filme para fazer pensar.
Paul Greengrass surpreende os atores no momento da filmagem
O próprio Richard Phillips relatou as duríssimas, apavorantes, angustiantes horas em que ele, mais do que qualquer um de seus comandados, esteve sob a mira de quatro bandidos violentos. Com a ajuda de um escritor, Stephan Talty, publicou o livro A Captain’s Duty: Somali Pirates, Navy SEALS, and Dangerous Days at Sea.
O filme teve 21 prêmios e nada menos que 131 indicações, inclusive para seis categorias do Oscar – filme, roteiro adaptado, ator coadjuvante para o somaliano Barkhad Abdi, montagem, som e montagem de som.
Barkhad Abdi – assim como os outros três somalianos que interpretam os piratas que tomam o navio – nunca tinha tido experiência prévia como ator. Os quatro foram escolhidos num processo de seleção conduzido pelo pessoal do casting – chefiado por Francine Maisler – em Minneapolis, Minnesota, a cidade americana que tem a maior colônia de somalianos. Setecentos homens participaram dos testes.
Foi uma bela escolha. É impressionante como Barkhad Abdi atua bem. Não é à toa, de forma alguma, que teve indicação ao Oscar, além de várias outras: Globo de Ouro, o prêmio do Sindicato dos Atores. O Bafta ele levou.
Mesmo após um desempenho extraordinário e de tanto reconhecimento, não seria muito fácil para um somaliano que fala inglês com forte sotaque e, admitamos a verdade dos fatos, é feio que nem a fome, estabelecer uma carreira internacional. Mas Barkhad Abdi está se mantendo à tona: teve um papel na série de TV Hawaii Five-0 e, em julho de 2015, tinha participado de três outros filmes em fase de pós-produção ou ainda em filmagem.
Três detalhes descritos na página de Trivia (informações, historinhas da filmagem, coincidências) mostram bem como é o estilo de Paul Greengrass de dirigir os atores:
* A enfermeira que atende o capitão Phillips num dos navios da Marinha americana fez o papel dela mesma na sequência. Realismo, estilo documentário, é isso aí.
* Tom Hanks nunca havia visto Barkhad Abdi e os outros três atores que fazem os piratas – até o exato momento em que foram filmadas as cenas da chegada dos quatro piratas à sala de comando do navio. Greengrass disse em entrevistas que isso foi proposital, para criar uma maior tensão entre os atores.
* Antes que os piratas entrem no navio, há uma sequência tensa em que o personagem interpretado por Chris Mulkey diz que é do sindicato, e que nem ele nem seus companheiros da tripulação ganham para enfrentar piratas. Quando as tomadas dessa sequência foram filmadas, apenas Tom Hanks sabia que o personagem diria aquilo; para os demais atores, foi total surpresa, e era essa, é claro, a intenção do diretor.
Na vida real, um dos homens da tripulação entrou na Justiça com um processo contra o capitão Richard Phillips, exigindo indenização, argumentando que ele sabia do perigo de existência de piratas naquela região próxima ao litoral da Somália, e, em vez de fazer um trajeto mais longo, arriscou-se a entrar na área de perigo. O IMDb não informa o resultado da ação.
Anotação em julho de 2015
Capitão Phillips/Captain Phillips
De Paul Greengrass, EUA, 2013
Com Tom Hanks (Capitão Richard Phillips),
e Barkhad Abdi (Muse), Barkhad Abdirahman (Bilal), Faysal Ahmed (Najee), Mahat M. Ali (Elmi), Michael Chernus (Shane Murphy), David Warshofsky (Mike Perry), Corey Johnson (Ken Quinn), Chris Mulkey (John Cronan), Yul Vazquez (Capitão Frank Castellano), Max Martini (o comandante do SEAL), Catherine Keener (Andrea Phillips)
Roteiro Billy Ray
Baseado no livro A Captain’s Duty: Somali Pirates, Navy SEALS, and Dangerous Days at Sea, de Richard Phillips e Stephan Talty
Fotografia Barry Ackroyd
Música Henry Jackman
Montagem Christopher Rouse
Casting Francine Maisler
Produção Scott Rudin Productions, Michael De Luca Productions, Trigger Street Productions.
Cor, 134 min
***1/2
O filme é legal e o texto também. Incrível como você emana o clima dos filmes…
Que bom não é que agora nos livramos da esquerda. Afinal livrar e usar esse termo inclusive da esquerda não tem nada de antidemocrático. Antidemocrática é a esquerda que ganha eleições seguindo e respeitando as regras. Mas, ainda bem que isso ficou no passado. Hoje é que estamos muito bem com um governo de direita. Que não burla regras, não se vale de fake news, que não tolera fisiologismo e nepotismo, que respeita os direitos de pessoas como os gays, indígenas, quilombolas. Que defende o meio ambiente, a educação e a ciência. Que não acredita em ideologia, terras planas, ou que defender o meio ambiente é mera bobagem de ONGS, enfim, ainda bem que estamos vivendo em um país muito melhor sem as esquerdas, que aliás nem esquerda eram, mas quem importa. Tudo que for diferente dessa maravilha que estamos vivendo, era o comunismo. Ainda bem que nos livramos desse risco e de quebra e melhor ainda vamos nos livrar também dessa idiotice de cultura e cinema. Aliás que perigo viveu o cinema na época dos esquerdas hein? Bom é hoje que cinema é assunto de 5 censores ligados diretamente ao presidente. Viva a direita e seu projeto cultural.