Nota:
Stockholm, Pensylvania, produção do cinema independente americano de 2015, é a estréia na direção de uma jovem de Massachusetts, Nikole Beckwith, também autora do argumento e do roteiro. É um drama familiar pesadíssimo, tristíssimo, e muito diferente de praticamente todos os demais dramas familiares porque conta uma história rara – uma tragédia tão absurda que seria impensável, inimaginável.
É um daqueles filmes que envolvem o espectador e o deixam nervoso, tenso, triste, chocado diante de tamanha tragédia.
Uma situação impensável, inimaginável – e, no entanto, Nikole Beckwith se inspirou num fato real para criar sua história que parece a ficção mais incrível que pode haver.
A história real de Natascha Maria Kampusch aconteceu em Viena, e foi revelada ao mundo em 2006. Nikole Beckwith situou sua história fictícia numa pequena cidade do Estado da Pensilvânia, nos dias de hoje, e, embora a menção a Estocolmo no título já indique do que se trata, a realizadora construiu seu roteiro de modo a ir revelando só aos poucos a situação.
Uma jovem americana nos dias de hoje que nunca ouviu falar em Star Wars
O filme abre com uma jovem loura, de cabelos longos e olhos claros, aí de uns 20 anos de idade, sentada na poltrona traseira de um carro que corre em alta velocidade. Veremos que ela mesma se chama de Leia – a personagem da fantástica Saoirse Ronan, essa atriz excepcional.
Olha pela janela do carro com alguma expressão de espanto, às vezes – mas, em geral, a expressão de seu rosto é nenhuma. Ou a expressão de uma pessoa que se esforça para não demonstrar o que está sentindo. Ou de quem está confusa, e não sabe direito o que está sentindo. Ou tudo isso junto.
O carro pára diante de uma casa confortável. A câmara fica dentro do carro, o espectador não vê muito distintamente o que há lá fora, mas dá para perceber que umas 15, 20 pessoas estão diante da casa. Um homem de terno desce do carro, abre a porta para que a moça desça. Vemos, através dos vidros fechados do carro, que o homem coloca o braço sobre o ombro dela, como que para protegê-la, para fazê-la avançar pelo meio da pequena multidão.
A porta da frente da casa se abre, o homem de terno – um policial, o detetive Timms (Tom Wright) – e a moça entram. Diante deles estão os donos da casa, Marcy e Glen (Cynthia Nixon e David Warshofsky), um casal aí na meia-idade, com mais de 50 anos.
Estão todos de pé. Este é o diálogo:
O detetive, para a moça: – “Lembra-se do sr. e da sra. Dargon?”
Glen: – “Glen e Marcy.”
A moça: – “Conversamos por telefone quando eu estava no hospital, não é?”
Marcy: – “Foi. Nós tentamos ir lá, mas não nos deixaram, até que o resultado dos exames chegasse, e agora… Você está aqui!”
A moça: – “Tudo bem. Oi.”
O detetive: – “Bom. As queixas já foram registradas e… McKay será preso, sem direito a fiança, e ela está em ordem, embora não tenha feito um exame completo.”
A moça: – “Isso é particular.”
O detetive: – “É claro. Como conversamos, ela precisará passar pela psicóloga uma vez por semana. Aqui está o cartão dela. Isso deve acalmar as coisas.”
O detetive se despede, sai. Os três permanecem onde estão. Marcy pergunta se pode dar um abraço na moça, ela diz OK. Marcy a abraça, e vemos que ela está profundamente emocionada. A moça não mostra expressão alguma no rosto. Daí a um instante ela pergunta se podem parar de se abraçar.
Quando Marcy a chama de Leanne, a garota diz que se chama Leia. Glen e Marcy expressam perplexidade. Marcy consegue balbuciar: – “Leia, como a princesa do filme?” A moça pergunta: – “Que princesa?”
Leanne, ou Leia, vive nos Estados Unidos nos dias de hoje e nunca ouviu falar na saga Star Wars.
A diretora preferiu que os fatos fossem sendo revelados aos poucos
A situação não é absolutamente clara. Naturalmente, o espectador pode imaginar o que está acontecendo, mas o filme não é explícito. Só ao longo da narrativa é que o espectador vai tendo as informações que formam o quadro completo.
Como a roteirista e realizadora preferiu apresentar sua história dessa maneira, a rigor, a rigor, o que vem a seguir, a partir dessa primeira sequência, é spoiler. O eventual leitor que não viu o filme e tem vontade de ver deveria parar de ler aqui.
A rigor, o que vem a seguir é spoiler. Quem não viu o filme deveria parar de ler
O quadro que só vai se formando aos poucos é o seguinte:
Quando Leanne tinha quatro anos, estava com Marcy, sua mãe, em um parque; a mãe se distraiu por um breve momento – e de repente a menina tinha sumido.
A família avisou a polícia, houve buscas incessantes pela garota, mas ela não foi encontrada.
Havia sido pega, roubada, sequestrada, por um homem, Benjamin McKay (Jason Isaacs), que a manteve presa em um quarto no porão de sua casa. Não a tratava mal – bem ao contrário. Tratou dela com o maior carinho do mundo, ao longo de vários anos. Inventou para ela uma história maluca de fim de mundo, ou coisa parecida, que o mundo tinha se tornado inabitável, e ele a estava protegendo dos perigos todos.
Finalmente, agora – na época em que a ação se passa –, Leanne-Leia, com 21 anos de idade, havia sido encontrada, e McKay estava preso.
O filme não se preocupa em esclarecer como aconteceu de McKay ter permitido que Leanne-Leia escapasse – se ela fugiu, se quis dar um passeio pela primeira vez na vida e se perdeu. É como se a realizadora Nikole Beckwith estivesse dizendo que esse é um detalhe que não interessa.
Dá para o espectador presumir que, depois de encontrada, ela foi levada à polícia, e em seguida a um hospital – citado naquele diálogo inicial –, para um exame, que não encontrou qualquer vestígio de violência contra ela. Como a notícia de que uma jovem foi encontrada após anos sequestrada foi maciçamente divulgada, os Dargon, Glen e Marcy, se apresentaram à polícia, e foi feito o teste de DNA que comprovou a paternidade.
E então temos que o filme começa naquele momento exato em que o casal vê pela primeira vez em 17 anos sua filha – e ela não sente absolutamente nada por eles, não os reconhece. E ainda pior: sente saudade da única pessoa com quem conviveu ao longo de praticamente a vida inteira.
A Síndrome de Estocolmo.
O nome Síndrome de Estocolmo vem de um caso acontecido em 1973
A Wikipedia explica: Síndrome de Estocolmo “é o nome normalmente dado a um estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor”.
A designação com o nome da capital sueca se deve a um episódio acontecido em Estocolmo em agosto de 1973: um assaltante, Jan-Erik Olsson, entrou armado com uma metralhadora e explosivos em uma agência bancária do centro da cidade, tomou quatro funcionários como reféns e fez uma série de exigências ao banco e à polícia. Ficaram trancados dentro do banco durante seis dias, e acabaram criando uma relação afetiva.
O caso real que serviu de inspiração para Nikole Beckwith fazer seu filme aconteceu, como foi dito rapidamente lá em cima, em Viena, em 2006. Natascha Maria Kampusch tinha dez anos de idade quando, em março de 1998, foi sequestrada no caminho da escola por um homem, Wolfgang Přiklopil. Foi mantida presa no porão da casa do raptor ao longo de oito anos, até que, em agosto de 2006, conseguiu fugir.
Bem diferentemente do que acontece no filme, Natascha foi submetida a todo tipo de humilhação psicológica e sexual, tortura física com surras constantes e privação de comida e luz. Sua fuga causou o suicídio de seu sequestrador, uma comoção nacional e uma crise no governo e nos serviços de segurança do país, com relação às falhas descobertas e ao acobertamento de erros na investigação policial, durante os anos em que esteve desaparecida, e que poderiam ter levado à sua libertação mais cedo.
Ombros caídos, rosto de quem não está aí, Saoirse Ronan está estupenda
Nikole Beckwith construiu seu filme com um estilo aparentemente frio, distanciado. A narrativa é sóbria, o tom é realista, quase com um jeito de documentário. Nada disso impede que o espectador se envolva profundamente no drama daquela moça – e no imenso, gigantesco drama de seus pais. Eu diria até que esse estilo pelo qual a diretora optou a rigor realça mais ainda a profundidade do drama daquelas três pobres pessoas.
Ao longo dos 99 minutos de filme, há três ou quatro flashbacks. No meio de uma conversa com a mãe, ou com a psicóloga escolhida pelas autoridades para fazer o acompanhamento do caso, a dra. Andrews (Rosalind Chao), o pensamento de Leanna-Leia voa, e ela se lembra de um determinado momento importante de sua relação com McKay, que ela chama de Ben. Aqui, Nikole Beckwith adotou o artifício que Ingmar Bergman usou em Morangos Silvestres, e que Woody Allen às vezes reproduz em seus filmes: vemos na mesma tomada Leanna-Leia como ela é hoje, no presente, observando a pequena Leia conversando com o homem que cuidava dela como um pai devotado.
Essa atriz absolutamente extraordinária que é Saoirse Ronan nos dá mais um desempenho magnífico. Em boa parte das seqüências, ela parece estar sem expressão alguma. O espectador mais apressado poderá considerar que este é um defeito. Não é. Bem ao contrário. Estudadamente, muito estudadamente, ela mostra uma expressão que não expressa nem alegria, nem pavor, nem tristeza – Leanne-Leia se esforça para não demonstrar sentimentos para aquelas pessoas que sabe que são seus pais, mas por quem não tem qualquer afeto, são absolutos estranhos.
A Leanne-Leia que essa garota cria tem uma postura física de uma pessoa que está sofrendo muito – embora se empenhe em não deixar isso claro em seu rosto. Leanne-Leia está sempre com o corpo levemente encurvado, como se carregasse um gigantesco fardo nos ombros. É impressionante.
Cynthia Nixon foi também uma beleza de escolha para o papel da pobre mãe torturada, angustiada, que recebe de volta uma filha que não está nem aí – e sente saudade do homem que a privou de liberdade, de uma vida normal. Cynthia Nixon tem toda a aparência de uma mulher comum, normal, gente como a gente. E o espectador vai acompanhando pelas expressões da atriz que Marcy está cada vez mais mergulhando num pesadelo, num pântano, numa areia movediça – até que perde de todo a razão. É também uma grande atuação. E é impressionante como, para fazer esse papel Cynthia Nixon conseguiu parecer bem mais velha do que é. Essa atriz nascida em Nova York em 1966 é uma das quatro mulheres da série Sex and the City – uma mulher jovem ainda, portanto, e bela. Atriz de muitas caras, camaleônica, aqui ela parece uma senhora de mais de 60 anos.
Belo filme. Tristíssimo, apavorantemente triste. Mas belo.
Outros filmes com Saoirse Ronan neste site:
Nunca é Tarde para Amar/I Could Never Be Your Woman, de Amy Heckerling, 2007
Atos que Desafiam a Morte/Death Defying Acts, de Gillian Armstrong, 2007
Um Olhar no Paraíso/The Lovely Bones, de Peter Jackson, 2009
Caminho da Liberdade/The Way Back, de Peter Weir, 2010
Hanna, de Joe Wright, 2011
Minha Nova Vida/How I Live Now, de Kevin Mcdonald, 2013
Brooklyn, de John Crowley, 2015
Anotação em outubro de 2016
Estocolmo, Pensilvânia/Stockholm, Pensylvania
De Nikole Beckwith, EUA, 2015.
Com Saoirse Ronan (Leanne Dargon, Leia), Cynthia Nixon (Marcy Dargon), David Warshofsky (Glen Dargon), Jason Isaacs (Benjamin McKay), Rosalind Chao (Dra. Andrews), Avery Phillips (Leia aos 7 anos), Hana Hayes (Leia aos 12), Tom Wright (detetive Timms)
Argumento e roteiro Nikole Beckwith
Fotografia Arnaud Potier
Música Nora Kroll Rosenbaum e Brian McOmber
Montagem Joe Klotz
Casting Richard Hicks
Produção Fido Features, Olympus Pictures.
Cor, 99 min
***
2 Comentários para “Estocolmo, Pensilvânia / Stockholm, Pensylvania”