Este A Convocação/The Calling, co-produção Canadá-EUA de 2014, é um filme que tem um serial killer, crimes inomináveis, crudelíssimos. No entanto, muito mais canadense do que americano, não abusa da violência; não tem sequer uma sequência de perseguição de carros ou lutas, brigas. Evita ser parecido com um filme de ação. É um filme para adultos, não para adolescentes.
E, depois de um terço dos 108 minutos de duração, começa a falar de religião, de ritos e crenças católicas.
É daquele tipo de thriller que se preocupa tanto com a vida pessoal dos policiais quanto com a investigação que eles estão fazendo. O que é sempre um ponto positivo.
A chefe da polícia da cidadezinha é problemática, e vive com dores nas costas
A protagonista da história é Hazel Micallef, a chefe da polícia de uma pequenina cidade de Ontario, Port Dundas, onde praticamente todos se conhecem, e o último assassinato havia acontecido quatro anos da época em que a ação se passa. (Na verdade, Port Dundas não existe; o filme usa um nome fictício para indicar que aquilo poderia ter acontecido em qualquer pequena cidade de Ontario; as filmagens foram em Hamilton, cidade próxima de Toronto, a maior metrópole do país.)
Hazel é interpretada por Susan Sarandon – uma garantia de bons serviços prestados.
Vive com dores nas costas; já havia feito uma operação, mas seis meses antes os médicos recomendaram uma nova cirurgia, que ela vinha adiando. Dorme no chão, ao lado de sua cama. Toma diversas pílulas, e bebe bastante – na primeira sequência do filme, põe um pouco de uísque na caneca de café, ao chegar para trabalhar, no começo da manhã.
Não é, de forma alguma, uma pessoa feliz, resolvida, de bem com a vida. Veremos que já tentou o suicídio uma vez – Ian Mason (Ted Whittall), seu superior, em Toronto, joga isso na cara dela como explicação para o fato de ela não ter sido ainda promovida. Ficou grávida uma vez, mas perdeu o filho. A relação com o amante – homem casado – não é boa. E ela não se dá bem com a mãe, Emily (interpretada pela sempre maravilhosa Ellen Burstyn), que tenta de tudo para ajudá-la mas é sempre mal recebida.
Ao chegar à delegacia, é informada pelo seu segundo, Ray Green (Gil Bellows), de um típico problema de cidade pequena, mansa, sossegada: Bob Chandler (Alex Poch-Goldin) havia telefonado para a casa de sua mãe, Delia (Joan Massiah), para avisá-la que chegaria ainda naquele dia para vê-la, e ela não atendeu. Ray tinha mandado Jolene (Courtney Lyons), a moça que trabalha como secretária na delegacia, dar uma passada lá, e Delia não atendeu à campainha. Então Bob tinha acabado de telefonar de novo, pedindo que alguém voltasse à casa da mãe para ver se tinha acontecido alguma coisa. Como era o final do turno dele, Ray, ele pedia que Hazel desse uma passada lá.
Hazel então vai até lá – e encontra Delia morta, assassinada com requintes de crueldade, o pescoço cortado profundamente, a boca tendo sido forçada a ficar numa posição estranha.
Um sujeito estranho surge na cidadezinha e na história
Ray é a favor de chamar um detetive especialista em assassinatos violentos. Hazel argumenta que ele e Ray são detetives, que o crime é na jurisdição deles e eles devem investigá-lo.
Não há pista alguma.
No meio da narrativa centrada em Hazel, surge uma rápida sequência que não tem nada a ver com ela, nem com a polícia, nem com Delia Chandler, a senhora assassinada: vemos um grupo de crianças aí por volta dos 8, 10 anos de idade brincando ao ar livre, na neve. De repente, uma garota cai dura no chão.
A sequência é de fato bem rápida, e em seguida voltamos a acompanhar as ações de Hazel.
Mas, passado um pouquinho, quando o filme está ali com uns 20, 25 minutos, volta a surgir uma sequência que parece deslocada da história. Esta é bem mais longa que a da garotinha caindo – e tem a ver com ela.
Um desconhecido, um sujeito que não é dali, está parado diante da porta de uma lanchonete. Lá dentro há apenas uma funcionária – veremos depois que se chama Grace (Kristin Booth) –, ainda arrumando as cadeiras, dando uma geral nas mesas. Ela abre a porta para o freguês, explica que faltam ainda alguns minutos para o horário de abertura, mas, como estava muito frio lá fora, resolveu abrir para ele.
É um sujeito de uns 40 e tantos anos, de barba. Pede água quente e uma salada de frutas silvestres. Tem a voz calma, pausada. Tira da pasta que carrega um embrulhinho com ervas, e faz um chá com a água trazida por Grace.
Grace é curiosa, a cidade é pequena e pelo jeito não costuma receber muitos visitantes. Ela pergunta: – “O senhor é médico?” E ele: – “Trabalho com métodos que a medicina tradicional ignora”.
Grace se mostra indecisa; não quer constranger o freguês, mas ao mesmo tempo não consegue segurar a vontade e conta que sua filha, Rose (Ella Ballentine), está doente, tem tido como que uns ataques, cai dura como se estivesse morta.
Corta, e voltamos para Hazel.
Ela vinha pedindo reforços fazia tempo. Mandam para lá, finalmente, um rapaz bem novo, Ben Wingate (interpretado pelo bom Topher Grace, que realmente tem uma baby face), que parece extremamente inexperiente. Jolene, a secretária, fica animadíssima com a chegada ao pedaço de carne nova e bela, mas Hazel, ao contrário, fica furiosa com a chefia. Precisava de alguém experiente, e mandam um novato.
É claro que o garotão Wingate vai se mostrar esperto, inteligente, bem preparado.
Entram em cena um velho padre e o catolicismo – e mais não se deve contar
No dia em que o corpo de Delia Chandler vai ser enterrado, um fazendeiro rico é encontrado morto, a uma boa distância da cidade. Mason, o superior deles, de Toronto, havia mandado que eles se encarregassem do caso.
O morto estava no chão do galpão onde ficavam os cavalos da fazenda. A boca também havia sido forçada, antes de o corpo enrijecer, a ficar numa posição estranha, como se estivesse falando, pronunciando uma palavra, uma sílaba. E o estômago havia sido removido.
Hazel tem a certeza de que os dois assassinatos foram cometidos pela mesma pessoa.
É o jovem Wingate que resolve dar telefonemas para delegacias de diversas outras cidades do país, perguntando por assassinatos não resolvidos, em que a vítima estivesse com a boca em posição de alguém que está falando, pronunciando uma sílaba. Bingo: logo descobrem que houve diversos outros crimes assim.
Fotos dos outros cadáveres são enviados para a delegacia da cidade. Hazel, Ray, Wingate, todos examinam detidamente as fotos. Cada morto está com a boca de um jeito. Como se, no conjunto, estivessem formando uma palavra, uma frase.
Eventualmente, depois de todos estudarem muito as fotos, Wingate sugere que a palavra formada pelo conjunto de bocas pode ser de uma língua estrangeira – e ele mesmo palpita que pode ser latim.
O padre da pequena cidade não sabe muito de latim, mas indica um padre mais velho, uma sumidade em latim e em história da Igreja e do catolicismo, o padre Price (o papel do grande Donald Sutherland). E lá vai Hazel falar com o padre.
A partir daí o catolicismo passará a ser um tema fundamental da trama – mas adiantar qualquer outra informação que vem depois disso já seria spoiler.
Só vale dizer o que o espectador atento vai notar de cara: aquele estranho, forasteiro, de voz mansa, que apareceu na lanchonete em que trabalha Grace, a mãe da garotinha Rose, evidentemente, é o assassino que Hazel procura. Para Grace e Rose, identifica-se como Simon, mas na verdade chama-se Peter Mallick, e é interpretado por Christopher Heyerdahl.
O diretor Jason Stone e o roteirista Scott Abramovitch (ele também um dos produtores do filme) não pretendem esconder isso do espectador. Muito ao contrário. Na primeira vez em que ele aparece na tela, naquela sequência em que conversa com a garçonete Grace, fica bem claro que é ele o assassino.
Há os thrillers que fazem suspense sobre quem é o assassino, o perpetrador do crime. O suspense fica basicamente em cima disso. É o que em inglês se chama whodunit – forma simplificada de who has done it?, quem fez? São assim as tramas de Agatha Christie – e ela faz maravilhosamente suas tramas de whodunit.
Diferentemente, há os thrillers que mostram para o espectador quem fez, whodunit – e o suspense, mais sutil, é saber em que momento ele vai deixar uma pista, em que momento a polícia vai chegar até ele, e como. É o estilo de outro inglês doido de pedra que nem Dame Agatha, Sir Alfred Hitchcock, em muitos de seus filmes.
Este The Calling pertence a essa segunda linhagem.
E a última tomada do filme é absolutamente surpreendente, inesperada. Fantástica.
Uma mistura de Seven com O Código Da Vinci com Este Mundo é um Hospício
O filme se baseia em um romance policial assinado por Inger Ash Wolfe. Inger é um nome feminino – me faz lembrar Inger Stevens (1934-1970), a sueca loura que causou a Quarta Guerra Mundial no fascinante O Diabo, a Carne e o Mundo (1959). Em 2012, Michael Redhill revelou para o mundo que ele é o autor dos três livros publicados com o nome de Inger Ash Wolfe.
Michael Redhill é bastante jovem: nasceu em 1966, em Baltimore, mas foi criado em Toronto. Adulto, estudou tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá. Nunca tinha ouvido falar dele, nem sei se ele já foi publicado no Brasil, mas, pela trama interessante deste filme aqui, valeria a pena ir atrás dos livros dele.
Fiquei com preguiça de ir atrás de outras opiniões sobre este filme. A cotação dele no IMDb é bastante baixa.
Espectadores mais exigentes poderão talvez achar que ele é assim meio uma mistura de Seven com O Código Da Vinci com o clássico de Frank Capra Este Mundo é um Hospício/Arsenic and Old Lace. Sim, o filme fala sobre a questão importantíssima da morte com dignidade. Mas prefiro crer que a má avaliação do filme seja porque, de fato, ele é feito para adultos, e não para adolescentes. Não tem perseguição de carro, luta, briga, violência explícita – então boa parte dos amantes de thrtillers, de filmes de ação, não gosta.
Jason Stone – meu Deus do céu e também da terra – nasceu em 1981! Seis anos depois da minha filha! O cara quase pode ser meu neto!
Nasceu em Johannesburg, África do Sul – e não há mais informação sobre ele no IMDb, a não ser o fato de que fez três curta-metragens entre 2007 e 2009, e de que este The Calling é seu primeiro longa. Não é dito sequer onde a figura mora, mas seguramente é no Canadá.
Jovem demais da conta – e dirige de um modo calmo, sossegado, tranquilo, adulto. Não vem pra cima do pobre espectador com maneirismos, com criativóis, com berros “olhem como eu sou genial”. Fez um filme para o público, e não para os seres de nariz empinado que fazem parte dos júris dos festivais de cinema, se acham melhores do que todo o resto da humanidade e só gostam de filmes papo-cabeça, chatos a dar com o pau.
Seguramente prefere Truffaut a Godard. Frears, Leigh e Loach, a Greenaway. Spielberg a qualquer Tarantino, Ferrara. Em suma: prefere bom cinema a masturbação intelectual.
Anotação em agosto de 2015
A Convocação/The Calling
De Jason Stone, Canadá-EUA, 2014
Com Susan Sarandon (Hazel Micallef), Gil Bellows (Detetive Ray Green), Ellen Burstyn (Emily Micallef), Topher Grace (Ben Wingate), Donald Sutherland (padre Price), Christopher Heyerdahl (Simon, ou Peter Mallick) Kristin Booth (Grace Batten), Kevin Parent (Spere), John Ralston (Andrew Pederson), Ted Whittall (Ian Mason), Courtney Lyons (Jolene), Alex Poch-Goldin (Bob Chandler), Joan Massiah (Delia Chandler)
Roteiro Scott Abramovitch
Baseado no livro de Inger Ash Wolfe
Fotografia David Robert Jones
Música Grayson Matthews
Montagem Ruy Diaz e Aaron Marshall
Produção
Cor, 108 min
***
Eu dou nota 10 para o filme