Nunca é tarde para descobrir a maravilha que é The Tin Star, que Anthony Mann lançou em 1957, e no Brasil teve o título O Homem dos Olhos Frios.
Nunca tinha visto, nem me lembrava de ter ouvido falar dele. Dei com o DVD na locadora, e pensei: se é um western de Anthony Mann, e com Henry Fonda, deve ser bom, pensei.
A seqüência de abertura me deixou boquiaberto. Não é que seja boa: é extraordinária.
Um pouco mais adiante, The Tin Star vai fundo numa questão que não era, de forma alguma, usual nos westerns até então: o arraigado, vexaminoso racismo contra os índios e os mestiços, filhos de índios e brancos.
No geral, o filme faz um duro retrato da sociedade que se formava no Oeste, com gente hipócrita, covarde, egoísta, gananciosa, nos postos mais proeminentes da cidadezinha que é um microcosmo do país. Algo no estilo, no tom de Matar ou Morrer/High Noon.
É uma beleza de filme. E de forma alguma destina-se apenas a quem gosta de western, o gênero mais clássico do cinema americano; é um filme para todas as pessoas que gostam de bom cinema.
“É o que o western produziu de mais perfeito e de mais puro”
Na olhada pelos alfarrábios depois de ver o filme, encontrei um trecho do verbete sobre o realizador no Dicionário de Cinema – Os Diretores de Jean Tulard que acho melhor apresentar logo aqui.
Tulard lembra que primeiro Anthony Mann (1906-1967) foi um homem de teatro – cenógrafo, ator e diretor. “Trabalhou para (o produtor todo-poderoso David O.) Selznick e depois para a Paramount antes de ir para a RKO e para a Republic dirigir filmes de baixo orçamento. Pode-se deixar de lado as comédias musicais, mas os thrillers tocam pela violência de algumas cenas, pela beleza das imagens em preto-e-branco, pela qualidade da interpretação. (…) O domínio de Mann já salta aos olhos.”
Só depois é que se abre o ciclo de westerns. “Já se disse tudo sobre essa série de filmes interpretados por atores excepcionais (Stewart, Fonda, Cooper), amparados por roteiristas notáveis (Borden Chase, Philip Yordan) e por uma brilhante utilização de cenários naturais. Ao se rever O Preço de um Homem ou Winchester 73, é forçoso concordar com Coursodon e Tavernier: ‘É o que o gênero produziu de mais perfeito e de mais puro.’ A abertura de O Homem dos Olhos Frios é um modelo.”
E aí o livro do mestre Jean Tulard descreve um pouco da abertura magnífica. Para depois concluir o verbete assim: “Simplicidade e clareza na maneira de contar uma história, preocupação em apresentar o herói antes de tudo como um homem, beleza de imagens não gratuita, mas que serve para situar o cenário da ação. Mann é o cineasta clássico por excelência.”
“Não sou da lei”, diz o forasteiro. “Trabalho para ela, por dinheiro”
Enquanto vão rolando os créditos iniciais, podemos ver, ao fundo, as vastas paisagens do Oeste americano, sempre em planos gerais. É possível perceber, bem pequeno no meio do campo aberto, um homem a cavalo.
Quando terminam os créditos, estamos no centro de uma cidadezinha daquelas típicas, que já vimos em tantos westerns. Não há letreiro informando onde ou quando – a ação se passa possivelmente por volta de 1870, e a cidade não precisa ser identificada porque é uma igual a tantas outras – pode ser qualquer uma.
O cavaleiro que chega à cidadezinha puxa um segundo cavalo. Sobre este há um pano branco, talvez um lençol. Visível está a mão de um homem.
A cidade literalmente pára para acompanhar a chegada do desconhecido. Rapidamente juntam-se os poderosos do lugar – o banqueiro que também é o prefeito, os comerciantes mais ricos.
O forasteiro – um Henry Fonda com a barba por fazer, com o rosto e as roupas cobertas de poeira – encaminha-se com toda a calma para o prédio em que há a placa de xerife. Apeia-se, laça as rédeas de seu cavalo no local adequado e entra no lugar. Na sala principal não há ninguém. O estranho vai entrando e, numa dependência interna, flagra um garoto, um rapazote (interpretado por Anthony Perkins), treinando como sacar as armas.
O garoto leva um susto imenso ao perceber a presença do estranho. O primeiro diálogo do filme se dá aí.
O garoto: – “Ahnn… Só sentindo como segurar essas armas.”
O forasteiro: – “Onde está o xerife?”
O jovem pega então a jaqueta deixada ali ao lado, veste – e na jaqueta está a estrela de lata que o identifica como sendo o xerife do lugar. Estrela de lata – the tin star do título original.
Veremos em seguida que o xerife interpretado por Anthony Perkins se chama Ben Owens; o forasteiro, na pele de Henry Fonda, é Morg Hickman. Veremos também que, quando o velho Parker, xerife da cidade por 20 anos, foi morto por bandidos, os homens importantes do lugar escolheram o jovem Ben porque ninguém mais tinha coragem de assumir o cargo – a não ser um tal Bogardus (Neville Brand), dono de um estábulo, sujeito de maus bofes, sempre à procura de uma briga, uma confusão, um duelo.
Os homens importantes do lugar entram rapidamente na delegacia. Um deles diz ao garoto xerife que ele precisa pegar a arma do forasteiro, porque ele matou um homem.
O estranho se apresenta, diz seu nome, e comunica que não será necessário entregar as armas; pega na parede um daqueles cartazes de “Procurado” e acrescenta que o xerife não precisará mais daquele, que descreve um tal de Luke Jameson, procurado por assassinato e roubo, US$ 500 de recompensa – porque ali fora, no segundo cavalo, está o homem que procuravam.
– “Um caçador de recompensas”, diz, com desprezo na voz, um dos homens, o banqueiro-prefeito Harvey King (Howard Petrie).
Calmo, frio, seguro de si, o forasteiro Morg explica: – “Localizei Jameson. Ele tentou atirar em mim. Luta justa. Não há tiros nas costas dele.”
E prossegue, encarando o banqueiro-prefeito : – “Não sou da lei. Trabalho para ela, por dinheiro. O mesmo que vocês fazem, se fazem negócios legais.”
Um roteiro inteligente, soberbo, cheio de belos diálogos
The Tin Star é cheio de belos diálogos como esses aí da abertura. Quem assina o roteiro do filme não é Borden Chase ou Philip Yordan, os dois grandes roteiristas que escreveram para Anthony Mann em outros westerns e são citados no livro de Jean Tulard; chama-se Dudley Nichols, e seu nome aparece em diversos grandes filmes, inclusive em vários de John Ford, como No Tempo das Diligências/Stagecoach (1939), O Juiz Priest (1934), A Patrulha Perdida/The Lost Patrol (1934), O Delator/The Informer (1935). Ele assina ainda belas comédias (Levada da Breca/Bringing up Baby, de Howard Hawks, 1938, Os Sinos de Santa Maria, de Leo McCarey, 1945) e dramas pesados (Almas Perversas/Scarlet Street, de Fritz Lang, 1945).
O roteiro que Dudley Nichols escreveu para The Tin Star (com base em história de Joel Kane e Barney Slater) é inteligente, soberbo. Há momentos de bom humor, outros de tensão, outros até de ternura – estes, por conta de um garotinho, Kip (Michel Ray), e sua mãe, Nona (Betsy Palmer).
Ao final daquele diálogo inicial com a elite da cidade na sala do xerife, o forasteiro caçador de recompensas Morg Hickman informa que ficará na cidade até receber o pagamento por ter trazido o bandido procurado. Os homens importantes dizem que há algumas formalidades até que o pagamento possa ser feito, e então Morg vai ao hotel do lugar. O sujeito na recepção, provavelmente o dono de um hotel vazio, diz que não há vagas.
Ninguém na cidade parece disposto a acolher um caçador de recompensas.
Morg vai então ao estábulo, de propriedade, como já foi dito, do tal Bogardus, jogador, pistoleiro, baderneiro – e racista. Não por coincidência, Bogardus é primo do bandido que Morg matou. Identifica-se como tal, diz que não vai acolher o cavalo do forasteiro.
No estábulo está o garotinho Kip. Bogardus enxota o menino, dizendo algo do tipo já falei que não quero gente da sua laia na minha propriedade.
Um diálogo fantástico, uma tomada esplêndida. Aos 15 minutos, já se sabe: é um grande filme
Igualmente enxotados, Kip e Morg travam conhecimento. O menino pede uma carona, Morg dá, na garupa do seu cavalo. Depois de andarem um pouco, para fora da pequenina cidade, Morg sugere que ele desça, porque senão ficaria muito longe de casa. Kip diz que sua casa é logo ali – e aponta.
Surge então Nona, a mãe do garoto. Morg pergunta se ela sabe de algum lugar onde ele possa se acomodar – e Nona diz que, caso queira, ele poderia dividir o quarto com o filho dela.
Um menino que vive apenas com a mãe, seguramente viúva. Kip de imediato adota o estranho como figura paterna, como tantas vezes acontece na vida real.
À noite, no jantar e depois, Morg e Nona conversam. Ele conta para ela que já teve um filho, mas perdeu-o – perdeu o filho e a mulher de uma vez só. Polidamente, Nona não pergunta como, por quê – e o espectador só ficará sabendo um pouco sobre o passado de Morg bem mais tarde.
Antes de entrar para o quarto que dividirá com Kip, Morg pergunta o nome dela, e ela diz nome e sobrenome, Nona Mayfield.
Morg se espanta. Nona é loura, mas Kip tem a pele e o cabelo bem escuros. Morg deixa escapar que acreditava que Kip fosse filho de um mexicano, e acrescenta muito rapidamente que não tem nada contra mexicanos.
O semblante de Nona se fecha, enquanto ela informa que o pai de Kip era índio.
Vemos no rosto de Morg-Henry Fonda o Grande uma expressão de assombro.
Com a certeza de que contra índios aquele sujeito tem muita coisa, assim como todos os demais brancos, Nona encerra a conversa: – “Ótimo, assim você poderá ir embora amanhã bem cedo”.
Morg entra no quarto do mestiço Kip carregando uma vela, o cenho franzido. É um plano de conjunto: vemos, no quarto quase às escuras, a vela iluminando o rosto surpreso de Morg-Henry Fonda diante da cama em que Kip dorme. O diretor de fotografia Loyal Griggs e a montadora Alma Macrorie transformam aquela imagem escura em um quadro totalmente negro, num longo fade out.
Estamos com 15 minutos de narrativa, e a esta altura o espectador já sabe que está diante de um grande filme.
Henry Fonda era um dos reverenciados atores. Tony Perkins era um iniciante
Em 1957, o ano de lançamento de The Tin Star, Henry Jaynes Fonda estava com 52 anos e era um dos maiores e mais reverenciados astros do cinema americano. Já se notam entradas acima da testa, quando seu personagem Morg tira o chapéu da cabeça. Na verdade, ao ver o filme agora, é impossível não notar como é absurda a semelhança física entre Henry e seu segundo filho, Peter, quando Peter chegou à idade que o pai tinha naquela época. É impressionante. Algo somente comparável à semelhança entre os dois Douglas, Kirk e Michael.
Anthony Perkins estava com 25 anos, em 1957, mas parecia ter ainda menos. Havia começado a carreira em 1953, com participações em séries de TV; seu primeiro filme no cinema foi Sublime Tentação/Friendly Persuasion, de William Wyler (1956), num elenco encabeçado por Gary Cooper.
Em 1960, portanto apenas três anos depois deste The Tin Star, o jovem Anthony Perkins estrelaria uma comedinha romântica chamada Até os Fortes Vacilam/Tall Story, ao lado de uma absoluta estreante, uma garotinha linda de 23 aninhos – a irmã mais velha de Peter, a primogênita de Henry, que havia sido batizada com nome de princesa, Lady Jane Seymour Fonda.
A vida tem dessas coisas.
No mesmo ano de Até os Fortes Vacilam, Anthony Perkins faria o papel de Norman Bates em Psicose, dirigido por aquele inglês gorducho, grande marqueteiro de si próprio, que, um ano antes deste The Tin Star, havia dirigido Henry Fonda em O Homem Errado.
Já seria um grande filme mesmo se não abordasse de frente o racismo
Que eu me lembre (posso estar enganado, é claro), o primeiro diretor a fazer Henry Fonda o Grande interpretar um bandido foi o italiano Sergio Leone, na obra-prima Era uma Vez no Oeste, de 1968. Sim, houve Minha Vontade é Lei/Warlock, de Edward Dmytryk, de 1959, em que ele interpretou Clay Blaisedell, um pistoleiro autoritário – mas Clay Blaisedell foi contratado pelos homens importantes de uma cidadezinha do Oeste para trabalhar como xerife e livrar o lugar dos bandidos que a infestavam.
O Morg Hickman que Henry Fonda interpreta em The Tin Star não é, de forma alguma, um bandido. Mas não é bem aceito pelo Establishment daquela pequena cidade. É um caçador de recompensas, no momento que se passa a ação, embora seja fiel a seu código de honra – jamais encontrariam um tiro nas costas de um bandido procurado e localizado justamente por ele.
É um homem atormentado pelo passado, abalado por um trauma que o deixou solitário, amargurado, descrente, cético – mas é um homem de bem. Jamais poderia ser acusado – ao contrário do que pensou naquela primeira noite a moça Nona – do nojento crime de racismo.
The Tin Star já seria um grande filme mesmo se não abordasse de frente, com tanta clareza e precisão, o crime de racismo. Tendo tratado o tema dessa maneira, torna-se não apenas um grande filme, mas um marco histórico. Como já disse lá acima, não era comum abordar essa questão dessa forma nos westerns.
Mesmo o grande John Ford fez, nos anos 30 e 40, filmes que pareciam defender a tese de que índio bom é índio morto – ou, no mínimo, segregado em reservas. Tanto que, já bem maduro, em 1964, faria um filme, Crepúsculo de uma Raça/Cheyenne Autumn, que é uma espécie de pedido de perdão pela visão que mostrava dos índios em seus westerns anteriores.
O roteirista Dudley Nichols, que trabalhou tantas vezes com John Ford, colocou na boca de Nona Mayfield-Betsy Palmer a seguinte frase, em que, obviamente, se refere ao marido, o pai do garotinho Kip:
– “Eles (os brancos de uma maneira, ela quer dizer) dizem o único índio bom é o índio morto. Quando encontram um com orgulho e coragem de sentir igual, eles o matam. E não chamam de assassinato. Apenas o transformaram num bom índio.”
Mestre Jean Tulard se deslumbra com a abertura do filme, “um modelo”
Citei mais acima High Noon, que eu, pessoalmente, considero um dos melhores westerns jamais feitos, um dos melhores filmes jamais feitos. O livro Great Hollywood Westerns, de Ted Sennett, cita High Noon e Shane, ao falar de The Tin Star: “Apesar dos óbvios ecos de Shane e High Noon, The Tin Star funciona melhor em seus próprios termos, como um estudo sobre dois homens díspares cujas vidas se cruzam. Fonda e Perkins interpretam seus papéis com uma sinceridade e uma sensibilidade que tornam sua relação de pai e filho inteiramente crível.”
Esse belo livro traz um longo capítulo dedicado à questão de como os índios foram tratados nos westerns. O título do capítulo diz muita coisa: “Selvagem ou santo?” No entanto, o autor Ted Sennett não fala sobre The Tin Star ao tratar do relacionamento entre brancos e índios.
Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Xerife novato Perkins pede a ajuda do caçador de recompensas Fonda para combater os fora-da-lei que infestam sua cidade; western sólido, com boas atuações. Roteiro de Dudley Nichols.”
Maltin omitiu, mas o roteiro teve uma indicação ao Oscar – a única do filme.
Diz o Guide des Films de Jean Tulard:
“Todos os clichês do western reunidos no roteiro de Dudley Nichols, o autor de Stagecoach, e no entanto uma obra de uma grande força, a educação de um homem jovem por um homem maduro, e este homem o ensina que a eficácia vem antes da elegância. ‘Carrego meus revólveres como o xerife Parker’, diz Ben Owens a Morgan, e este replica: ‘Sim, mas Parker foi morto’.”
No seu Dicionário de Cinema, Tulard deslumbrou-se com a abertura de The Tin Star, “um modelo”: “Fonda, impassível, atravessa uma cidadezinha sob o olhar aterrorizado de seus habitantes. (…) Em alguns planos, tudo pode ser visto: o cenário, os personagens e o tema”.
É uma brilhante abertura, de fato, que me deixou também deslumbrado. Uma hora e meia de grande cinema depois, Anthony Mann brinda o espectador com um fecho igualmente brilhante. Um modelo.
Anotação em janeiro de 2014
O Homem dos Olhos Frios/The Tin Star
De Anthony Mann, EUA, 1957.
Com Henry Fonda (Morg Hickman), Anthony Perkins (xerife Ben Owens),
e Betsy Palmer (Nona Mayfield), Michel Ray (Kip Mayfield), Neville Brand (Bart Bogardus), John McIntire (Dr. McCord), Mary Webster (Millie Parker), Peter Baldwin (Zeke McGaffey), Richard Shannon (Buck Henderson), Lee Van Cleef (Ed McGaffey), James Bell (juiz Thatcher), Howard Petrie (Harvey King)
Roteiro Dudley Nichols
Baseado em história de Joel Kane e Barney Slater
Fotografia Loyal Griggs
Música Elmer Bernstein
Montagem Alma Macrorie
Produção Perlberg-Seaton Productions, Paramount. DVD Lume Filmes.
P&B, 93 min
***1/2
Título na França: Du sang dans le désert. Em Portugal: Sangue no Deserto.
4 estrelas para esse texto
4 estrelas para esse filme
4 estrelas para o Tony Perkins 🙂