Dois anos depois da obra-prima O Veredicto/The Verdict, de 1982, o grande Sidney Lumet fez este Garbo Talks. É certamente um dos filmes menos falados, menos vistos, de sua longa e extraordinária carreira de grandes obras, lançadas entre 1957 (12 Homens e uma Sentença) e 2007 (Antes Que o Diabo Saiba que Você Está Morto).
Tem um toque de drama – afinal, a história trata de uma mulher que é diagnosticada com um tumor no cérebro que não pode ser operado –, mas é uma comédia, quase um conto de fadas. Como é um filme de Sidney Lumet, trata da relação pais-filhos.
É também, naturalmente, uma homenagem, um tributo a Greta Garbo, essa atriz que se tornou um dos maiores mitos da cultura popular do século XX.
Apaixonada por Garbo, a protagonista é uma lutadora contra todas as injustiças
Estelle (o papel de Anne Bancroft, excelente como sempre) sempre foi, desde adolescente, uma fã abnegada de Greta Garbo. Via e revia seus filmes com paixão sempre renovada. Quando a narrativa começa – depois de créditos iniciais criativos, belíssimos, que misturam desenhos um tanto infantis com diversas fotos de Garbo –, Estelle está vendo na TV, pela enésima vez, A Dama das Camélias/Camille, de 1936. Revê o filme (e o espectador também vê uma sequência) e empapa de lágrimas uma caixa de lenços de papel.
Interessante: fã absoluta, compulsiva, da Diva hollywoodiana, Estelle não é, de forma alguma, uma dondoca, nem uma sonhadora, uma romântica. De forma alguma: é uma eterna ativista social, uma liberal (no sentido americano do termo), progressista, sempre disposta a defender os trabalhadores, os injustiçados, os pobres, os indefesos.
Tanto engajamento, tanta disposição para lutar pela justiça e igualdade de direitos foi até mesmo uma das causas do fim do casamento de Estelle com seu primeiro e único marido, Walter (Steven Hill).
O casal teve um filho só, Gilbert – nome escolhido como uma homenagem ao ator John Gilbert, que contracenou com a Diva em O Diabo e a Carne (1926), Anna Karenina (1927) e Rainha Cristina (1933).
Gilbert (o papel de Ron Silver) é, em muitos aspectos, o contrário da mãe. Enquanto Estelle está sempre se rebelando – contra as autoridades, contra homens que dirigem galanteios às mulheres gostosas, contra o aumento do preço dos legumes, contra os baixos salários dos negros e das mulheres –, Gilbert parece ser a personificação do conformismo.
Trabalha como contador.
Nos filmes americanos, quando o roteirista e o diretor querem criar um personagem assim sem grande simpatia, charme, élan, dizem que ele é ou contador ou vendedor de seguros ou dentista. O eventual leitor pode reparar: é sempre assim.
Então Gilbert trabalha como contador numa grande firma em Manhattan. O emprego é insatisfatório, mas ele não reclama. Não reclama quando o chefe o retira de sua sala com janelas e o transfere para uma sala menor e sem janela alguma. A mulher dele, Lisa (o papel de Carrie Fisher), filha de ricaços da Califórnia, passa os dias a se lamentar por estar em Nova York, com saudade da ensolorada, gloriosa Los Angeles – mas Gilbert não reclama das reclamações incessantes da mulher. O casamento obviamente não é bom, não é feliz, mas Gilbert não reclama.
Com a morte decretada, Estelle tem um último desejo: ver Garbo
Aí vem o diagnóstico: Estelle tem um tumor no cérebro, e não é possível operar. Tem poucos meses de vida.
E então Estelle expõe seu desejo ao filho: quer, antes de morrer, se encontrar com Greta Garbo.
É um desejo forte, possante, poderoso. Gilbert passa, então, a tentar de todas as maneiras entrar em contato com Greta Garbo.
Acontece que entrar em contato com Greta Garbo era tão difícil quanto um encontro direto com Deus, ou com um amigo morto faz tempo. Era mais difícil encontrar a Diva do que passar um camelo por um buraco de agulha, para lembrar a expressão usada no Evangelho.
Como as crianças já nascem sabendo – ou ao menos deveriam nascer sabendo –, Greta Garbo abandonou Hollywood em 1941, aos 36 anos de idade, no auge do auge da fama, após 25 filmes para a Metro-Goldwyn-Mayer. Nascida Greta Lovisa Gustafsson em Estocolmo em 1905, começou cedíssimo no cinema sueco, até ser contratada pela MGM e se radicar nos Estados Unidos em 1926.
Tornou-se instantaneamente um ídolo. Era indiscutivelmente a maior estrela da Metro, uma das maiores do mundo. Quando veio o cinema falado, a partir de 1927, a propaganda dizia “Garbo Talks!” Quando fez sua primeira comédia, os cartazes anunciavam, sempre com o ponto de exclamação: “Garbo Laughs!”. (Uma deliciosa sequência de Ninotchka é mostrada para os espectadores de Garbo Talks.)
Viveria absolutamente reclusa dos 36 aos 84 anos – morreu em 1990, em Nova York. Não dava entrevistas, não aparecia em festas, cerimônias, nada.
Em vários momentos, o filme abandona totalmente o realismo
Confesso que, em que pese todo meu respeito pelo grande Lumet, em vários momentos este Garbo Talks me pareceu simplesmente bobo. Em especial a partir do início das tentativas de Gilbert de chegar até a Diva reclusa, inalcançável.
Seria necessário uma compreensão absoluta de que, naqueles momentos, a narrativa de Garbo Talks diz adeus a todo tipo de realismo, naturalismo. É uma brincadeira, uma fantasia, um conto de fadas – não é mesmo para ser plausível, factível.
Sim, é bem provável que eu não tenha conseguido deixar de pensar como um idiota da objetividade, e por isso tenha achado vários momentos do filme bobos.
Mas o problema é meu, não do filme.
A sequência final é absolutamente deliciosa. Anne Bancroft está estupenda em todas as sequências em que aparece. E a transformação de Gilbert enquanto batalha pelo ideal inatingível é uma maravilha – ele vai descobrindo em si mesmo capacidades, talentos, de que jamais havia se imaginado capaz.
Os franceses redescobriram o filme em 2011 – e adoraram
Nem mesmo a United Artists, que produziu o filme, deu muita importância a ele. O livro The United Artist Story não dedica a Garbo Talks um verbete, escanteando-o para o quadrinho de “Outros lançamentos” daquele ano.
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4, e sentenciou: “Silver sai a campo para atender ao último pedido de sua mãe que está à morte: encontrar Greta Garbo. Bancroft é um deleite como a mãe exuberante, mas o filme é apenas uma série de vinhetas, ocasionalmente comovente, mas em geral forçado, e que é ainda minado pela trilha sonora adocicada demais de Cy Coleman.”
Os críticos passam, as obras ficam. Vejo no IMDb que À la Recherche de Garbo teve um relançamento nos cinemas franceses em 2011, e recebeu fartos elogios.
Estelle Charles escreveu no site avoir-alire.com: “Reedição de uma jóia pouco conhecida. Ignorado pelo grande público e pela crítica, À la Recherche de Garbo é um filme inclassificável. Poético, triste, cômico, e de um incorrigível otimismo, o longa-metragem de Sidney Lumet decepcionou quando saiu nos cinemas (1984). Relegado ao esquecimento uma semana mais tarde, ele ficou na escuridão durante mais de 25 anos. No dia 9 de abril de 2011, Sidney Lumet sucumbe como sua heroína a um câncer. À la Recherche de Garbo renasce das cinzas.”
No site dvdclassik.com, Olivier Bitoun fala do retorno do filme às salas de cinema, tece diversos comentários e finaliza assim (vai sem aspas para me desobrigar a ser literal): Sidney Lumet dirige À la Recherche de Garbo utilizando as cores verde, rosa e marrom dos bombons nova-yorquinos que são sua principal influência visual! Ele filma de manhãzinha ou no fim do dia a fim de ter as luminosidades mais doces e tênues possíveis e criar assim a atmosfera doce e açucarada do filme. Se nos deixarmos pegar por sua pequena música, e se aeeitamos seus artifícios, então Garbo Talks é um prazer a cada instante. Lumet evita o pathos do tema para nos entregar uma obra cheia de melancolia mas também plena de vida e de força.
Se você não viu o filme, é melhor parar por aqui: quase um spoiler
Na trivia do IMDb há uma informação bastante saborosa. Os produtores estavam cansados de saber que a Diva não aceitaria aparecer no filme, mas tentaram assim mesmo. Foram atrás de um amigo dela, contaram a ele a história – o produto da imaginação de Larry Grusin, ele também o autor do roteiro – e pediram que o amigo fizesse o pedido a Garbo.
O amigo da Diva sequer se dignou a dar resposta.
A pessoa que aparece no final do filme de sobretudo e chapéu – sempre de costas, sem que vejamos seu rosto – é Betty Comden (1915-2006), compositora, escritora e atriz.
Em suma, é isso: na minha opinião, Garbo Talks não é um grande filme. Certamente não está entre os melhores e mais importantes do diretor. Mas é Sidney Lumet, tem a marca dele – e, portanto, merece respeito. É melhor do que a maioria do que se faz hoje no cinemão comercial.
Anotação em julho de 2014
Fala Greta Garbo/Garbo Talks
De Sidney Lumet, EUA, 1984
Com Anne Bancroft (Estelle Rolfe), Ron Silver (Gilbert Rolfe), Carrie Fisher (Lisa Rolfe), Catherine Hicks (Jane Mortimer), Steven Hill (Walter Rolfe), Howard da Silva (Angelo Dokakis), Betty Comden
Argumento e roteiro Larry Grusin
Fotografia Andrzej Bartkowiak
Música Cy Coleman
Montagem Andre Mondshein
Produção United Artists.
Cor, 103 min
**1/2
Título na França: À la Recherche de Garbo.
Eu acho que o Sidney Lumet tinha uma direção iluminada em todos os filmes da carreira dele. Taí um cara que não devia ter morrido.
Vi o filme na década de 80, em VHS. Me parece que ele não foi exibido nos cinemas brasileiros. Gostei na época, principalmente por causa de Anne Bancroft, uma das minhas atrizes preferidas.