Chico & Rita conta uma história de amor fascinante, riquíssima, dessas que são epopéias, que atravessam décadas e revoluções e se estendem por várias cidades, vários países.
E é um musical espetacular, que reúne pérolas da Grande Música Americana e do jazz (composições de George & Ira Gershwin, Dizzie Gillespie, Thelonius Monk, Bud Powell, Cole Porter), da música latino-americana (Consuelo Velázquez, Tito Puente, Álvaro Carrillo) e até uma pitada de erudito moderno (Igor Stravinsky).
Co-produção Espanha-Inglaterra, dirigida pelo respeitado espanhol Fernando Trueba e mais o célebre ilustrador Javier Mariscal e seu irmão Tono Errando, também espanhóis, Chico & Rita, no entanto, é cubano de coração e espírito. Os protagonistas são cubanos, a maior parte da ação se passa em Cuba – desde os tempos da ditadura de Fulgencio Batista até os tempos atuais da ditadura dos irmãos Castro.
Não entendo coisa alguma de artes plásticas, ilustração, desenho, mas gosto de filmes – e Chico & Rita é um grande filme.
A paixão de Chico e Rita é uma novela arrebatada, dolorosa
A história de amor de Chico (voz de Eman Xor Oña) e Rita (voz de Limara Meneses nos diálogos e de Idania Valdés nas canções) é absolutamente tempestuosa, cheia de brigas, rompimentos, reencontros, reconciliações, choro, ciúme, traição, dor desesperada, saudade. É uma paixão digna de toda uma imensa coleção de tangos, ou boleros, ou novelas mexicanas, ou cubanas.
Sim, é sempre bom lembrar que Cuba tinha uma tradição de novelas com novelescas tramas passionais, arrebatadas – o autor de Direito de Nascer é o escritor cubano Félix Caignet, ora coño!
A paixão de Chico e Rita é uma novela arrebatada, dolorosa. Nunca souberam o que é o amor em paz tão cantando pela bossa nova. Para eles o que vale são os versos de Adauto Santos e Luiz Carlos Paraná: “Quem anda atrás de amor e paz não se dá bem / porque na vida quem tem paz amor não tem”.
A quantidade de idas e vindas no amor de Chico e Rita me fez lembrar de uma crônica recente de Martha Medeiros na Revista O Globo. Basicamente o que Martha Medeiros diz é que amor a rigor não tem a ver com história de amor. O amor mesmo é algo tranquilo, suave; ela não diz isso com estas palavras, mas o significado é este: amor é um troço que não dá lead. É coisa mansa, macia. Não é notícia que mereça sair em jornal.
Já história de amor, ah, aí é completamente diferente: dá lead, dá samba, dá tango, dá bolero, dá novela, dá filme, dá livro. É cheio de dor, de tristeza, de drama, de choro, de ranger de dentes.
É exatamente isso.
Parecia que Martha Medeiros tinha acabado de ver Chico & Rita quando escreveu aquela crônica.
A Havana de hoje, com os prédios caindo aos pedaços, e a de ontem
A narrativa começa nos dias de hoje, ou seja, nos dias em que o filme foi feito – é uma produção de 2010. Havana – La Habana, Cuba. Vemos, no traço de Javier Mariscal e Tono Errando, cenas de Havana como mostradas em filmes mais recentes, feitos nos últimos 15, 20 anos, como 7 Dias em Havana, Habana Blues, Buena Vista Social Club e mesmo Morango e Chocolate e Guantanamera. Uma cidade linda com prédios e casario que parecem abandonados, à beira da destruição.
Velho, alquebrado, Chico é hoje um engraxate. Vemos Chico engraxando sapatos, e depois, ao fim do dia, voltando para seu pequeno apartamento em um prédio velho, caindo aos pedaços.
Na rua, passa por um grupo de jovens que canta um rap com sutil crítica à situação econômica de Cuba.
Em casa, Chico serve-se de uma bebida, liga o radinho – o Comandante está fazendo um dos seus intermináveis discursos. Mexe no dial, outra rádio, lá está a voz do Comandante.
Finalmente, depois de algumas tentativas, encontra uma emissora de rádio que não está transmitindo o discurso. E está transmitindo um programa sobre música cubana de antigamente, “Melodias do Passado”. Diz o locutor: “E agora uma música que ganhou o concurso do RHC Cadeia Azul há 60 anos. ‘Sabor a mi’, com Chico e Rita.”
Começa a tocar uma versão bela, suave, do bolero famosérrimo, composto em 1959 pelo mexicano Álvaro Carrillo.
Chico abriu a janela, está olhando para aquele trecho de Havana, o mar ao fundo. A câmara faz um close-up nos dedos dele, suas mãos encostadas no parapeito da janela – os dedos de Chico acompanham a música como se estivessem ao piano.
A câmara faz um ultra big close up do rosto de Chico. É o sinal para o flashback – voltamos junto com os pensamentos de Chico a 1958, em plena ditadura de Fulgencio Batista. As ruas de Havana fervilhavam de gente à noite, montanhas de turistas americanos, muitíssimos bares, restaurantes, cabarés de todos os tipos.
O jovem Chico e seu grande amigo Ramón (voz de Mario Guerra) estão fazendo um giro por alguns bares com duas turistas americanas.
No bar em que eles estão uma orquestra toca uma rumba, aquela coisa caliente, que deixava encantados os milhares e milhares e milhares turistas que invadiam a ilha o ano inteiro. Belos saxofones – a trilha original é de um mestre, Bebo Valdés.
O baterista faz um pequeno solo como para pedir silêncio à audiência. Uma jovem cantora sobe ao palco e canta “Besame mucho”.
“Besame mucho” já foi gravada por dezenas e dezenas de artistas
Pausa.
O eventual leitor por acaso acha “Besame mucho” brega? Muita gente acha. Muita gente acha Ray Conniff brega – e tem muita coisa brega na longa carreira do maestro americano, mas a gravação dele de “Besame mucho” tem um swing absolutamente irresistível. Na minha opinião, é claro. Mas a quantidade de gente – de nacionalidades e estilos musicais diferentes – que já gravou “Besame mucho” é impressionante. Connie Evingson, João Gilberto, Josephine Baker, Julie London, Lucho Gatica, Wes Montgomery… Isso para mencionar só as versões que tenho no meu iTunes – mas há gravações também de Nat King Cole, é claro, Pedro Infante, Javier Solís, The Beatles, La Internacional Sonora Santanera, The Flamingos, Xavier Cugat, The Ventures, Sammy Davis Jr., Antonio Machín, Lucho Gatica, Plácido Domingo, Vera Lynn, Luis Mariano, Sara Montiel, José Carreras, Andrea Bocelli, Frank Sinatra, Luis Miguel, Diana Krall, Filippa Giordano, Zoé, Susana Zabaleta, Mónica Naranjo…
Mas eu não sabia – como poderia saber? – dessa informação que está na Wikipedia em espanhol: Consuelo Velázquez, o compositor mexicano (1916-2005), criou “Besame mucho” aos 16 anos de idade, em 1944! O garoto ainda não tinha dado um beijo de amor na vida!
Já que estou mesmo numa digressão, lá vai: nunca fui de dançar; não tenho ritmo, sou um desastre. Mas me lembro de uma festinha na Serra, em Belo Horizonte, quando eu tinha uns 13 anos – tocou “Besame mucho” com Ray Conniff, e o pé duro aqui se arriscou a tirar uma menina pra dançar. Tadinha dela.
Uma história de brigas e reconciliações em Havana, Nova York, Las Vegas
A jovem e bela cantora que apresenta uma versão gostosa, sensualíssima, de “Besame mucho” no bar de Havana em que estão Chico, seu amigo Ramón e duas gringas, é, obviamente, Rita.
Chico olha para Rita, ouve Rita cantando, e se apaixona perdidamente, ali mesmo, no ato.
Chico era pianista, um dos melhores de Cuba, segundo apregoa seu amigo Ramón, e também compunha. Estava à procura de uma boa cantora para apresentar uma nova composição sua no concurso da Rádio RHC. Vai se aproximar de Rita à procura de uma cantora e uma amante. Na primeira conversa, se desentendem, Rita o manda passear. Não demoram, no entanto, a entrarem em sintonia. Trepam, é uma maravilha – mas, de manhã, Rita acordando nua na cama, Chico compondo uma nova canção, chega esmurrando a porta uma gata que se considerava dona do rapaz.
Rita sai batendo a porta no que é apenas a segunda briga do casal, numa história que terá brigas às pencas, reconciliações às pencas, ao longo de décadas, em Havana, depois em Nova York, Las Vegas, Hollywood…
A música cubana pré-1959 passou a ser considerada anti-revolucionária
De vez em quando a narrativa volta para os dias de hoje, mostra o cotidiano de Chico, que sobrevive ganhando um dinheirinho como engraxate. O espectador fica se perguntando como e por que ele perdeu a fama, abandonou a música, ficou tão pobre.
A resposta virá quando a narrativa se aproxima do fim – e creio que não é spoiler dizer que o fato de Chico e sua música terem caído no esquecimento tem a ver com a revolução de 1959.
De repente, a música que se fazia em Cuba até 1959 – aquela música de babar, riquíssima, uma mistura dos ritmos caribenhos todos, rumba, mambo, com um toque de jazz, de improvisação de instrumentistas competentes – passou a ser considerada anti-revolucionária. Coisa que agradava aos gringos, aos imperialistas safados.
O cineasta Wim Wenders e seu amigo americano Ry Cooder foram os grandes responsáveis por, no final dos anos 90 trazer de volta muitos dos grandes músicos cubanos dos anos 50 que ficaram esquecidos depois da revolução de 1959. Ry Cooder, músico, compositor, reuniu os lendários Ibrahim Ferrer, Rubén González, Eliades Ochoa, Omara Portuondo, Compay Segundo, entre outros, e gravou em 1997 o disco Buena Vista Social Club. O disco ganhou o Grammy, foi um tremendo sucesso em vários países do mundo. E ainda por cima despertou a curiosidade de Wim Wenders, que foi a Cuba com Ry Cooder, filmou entrevistas com aqueles grandes músicos e também apresentações deles em Nova York e em Amsterdã. O documentário com o mesmo nome do disco foi outro grande sucesso de público e crítica.
A vida imita a arte, a arte imita a vida e, lá mais para o final da narrativa de Chico y Rita, uma jovem cantora de fama internacional vai a Cuba atrás de grandes nomes do passado e chega até Chico. Numa tomada em que Chico está em primeiro plano e o grupo de gringos lá atrás, vemos a cantora e dois colegas. Um deles é um cabeludo de óculos grandes, bem parecido com Wim Wenders.
Pequena homenagem dos espanhóis Trueba, Mariscal e Errando ao grande realizador alemão.
Tanto o roteirista e diretor Fernando Trueba quanto o artista plástico e ilustrador Javier Mariscal são apaixonados por Cuba, a cultura cubana e, em especial, a música cubana. Os dois se conheceram em 2000, quando Trueba estava para lançar seu documentário Calle 54 e pediu a Mariscal que desenhasse os cartazes do filme. Calle 54 é exatamente sobre o que os americanos chamam de latin jazz, e mostra performances de Eliane Elias, Gato Barbieri, Cachao, Paquito D’Rivera,
Tito Puente, Carlos ‘Patato’ Valdés, Chucho Valdés, Bebo Valdés.
Sim – Bebo Valdés, o autor da trilha sonora original criada para Chico y Rita.
O disco com a trilha sonora de Chico y Rita foi um sucesso de público e crítica na Espanha, onde chegou ao terceiro lugar entre os mais vendidos.
O filme teve 8 prêmios e outras dez indicações – inclusive para o Oscar de animação longa-metragem.
Uma beleza de filme, que tem que ser visto por quem gosta de música, amor e Cuba
É necessário falar um pouco sobre o visual do filme, embora, como eu disse lá em cima, eu não entenda patavina alguma de artes plásticas, ilustração, desenho.
Os diretores e ilustradores Javier Mariscal e Tono Errando não procuram, de forma alguma, qualquer tipo de realismo no que se refere às pessoas. Os rostos, as figuras dos personagens são desenhados com alguns poucos traços, quase como se fosse para uma animação bem infantil. Os rostos – a maior parte dos personagens tem pele negra – são como que máscaras, com traços bem simplistas, simplificados.
Já a paisagem urbana… É outro tipo de traço, bem diferente do usado para os personagens. É bem mais hiper-realista – e consta que Javier Mariscal fez uma pesquisa detalhadíssima e cuidadosa sobre os prédios, as ruas, os letreiros de Havana no final dos anos 40 e ao longo dos 50.
São belíssimas todas as tomadas em que aparecem o casario, as ruas de Havana – e também, mais tarde, de Nova York e Las Vegas.
E os movimentos de câmara são espetaculares – há grandes travellings, zooms de babar.
É uma beleza de filme. Quem gosta de música não pode perder. Quem gosta de história de amor também não. Quem tem simpatia por Cuba e pelos cubanos tem que ver.
Anotação em novembro de 2014
Chico & Rita
De Tono Errando, Javier Mariscal e Fernando Trueba, Espanha-Inglaterra, 2010
Com as vozes de Limara Meneses (Rita), Idania Valdés (Rita nas canções), Eman Xor Oña (Chico), Mario Guerra (Ramón)
Argumento e roteiro Ignacio Martínez de Pisón e Fernando Trueba
Música Bebo Valdés
Com composições de George & Ira Gershwin, Dizzie Gillespie, Thelonius Monk, Bud Powell, Cole Porter, Igor Stravinsky, Consuelo Velázquez, Tito Puente, Álvaro Carrillo
Montagem Arnau Quiles
Produção Isle of Man Film, CinemaNX, Estudio Mariscal, Fernando Trueba Producciones Cinematográficas, HanWay Films. DVD Vinny Filmes.
Cor, 94 min
***1/2
ASSISTI………….MARCANTE ROMANTICO HISTORICO CULTURAL CRIME ORGANIZADO MUSICAS ROMANTICAS ……..CHICO E RITA…….UM PARA O OUTRO…..ESPERARAM MEIO SÉCULO PARA SE ACERTAREM…………………PODE ASSISTIR
Maravilhoso filme! Eu particularmente acredito quem for romântico e adora história e musica não tem como não gostar dessa película. Gostaria de assistir filmes como esse sempre! Parabéns ao idealizadores e produtores desse desenho que conta uma história que tocou o coração de milhões de pessoas.
Chorei!Tocante!