A Vida Secreta de Walter Mitty pode fazer lembrar um pouco Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), ou Adaptação (2002), ou Mais Estranho Que a Ficção (2006). Mas, sobretudo, me fez lembrar de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, a maravilha com que Jean-Pierre Jeunet nos brindou em 2001.
E fazer lembrar Amélie Poulain é um dos maiores elogios que se pode fazer a um filme.
Walter Mitty é, como Amélie Poulain, e também como os outros três citados aí, um filme de roteiro especialmente inteligente, esperto, cheio de belas sacadas visuais, criativóis de fato criativos, encantadores, charmosos.
Com Walter Mitty, Ben Stiller, esse bom ator, bom comediante, que já havia se mostrado competente também na direção, se afirma como um realizador de grande talento.
Boa comedinha romântica, bom filme de aventura – mas também um filme que faz pensar
Walter Mitty funciona bem como comédia romântica – o improvável casal central é simpático, gostoso, não há como o espectador não torcer por ele, embora seja um axioma o fato de que nas comédias românticas o mocinho sempre acaba com a mocinha. Funciona bem como aventura – há sequências de ação fantásticas, para deixar felizes os apreciadores das histórias de super-heróis e até de bobagens desnecessárias como O Procurado (2008) e Salt (2010) ou bobagens com alguma qualidade como O Turista (2010), talvez não por coincidência três filmes estrelados por Angelina Jolie.
Mas Walter Mitty é mais que uma gostosa comedinha romântica, e muito mais que um bom filme de aventura. É um filme que, além de ser tudo isso aí, fala de coisas sérias. De uma bela maneira.
Este filme de visual esplendoroso e belas sacadas no roteiro a cada momento fala do fim de uma era, e o início de outra.
É um tema sério demais, esse, o fim de uma era. Fronteira do tempo. Divisor de águas, não na Geografia – a água que cai de um lado vai para Oeste, a água que cai do outro lado vai para Leste, como na Avenida Paulista, na Serra do Mar, nas Montanhas Rochosas – , mas na História: o que ficou pra trás ficou pra trás, é velho, já foi, morreu, e o futuro é brilhante e te chama, e quem se importa com uma era que já acabou?
A profissão de Walter Mitty é o símbolo de uma era que acabou
Eras que ficam para trás. Crepúsculo, outono – símbolos perfeitos de mortes de eras. O cinema fez obras maravilhosas, por exemplo, sobre o fim do Velho Oeste. Uma das mais belas é um filme que deveria ser revisto por todo mundo, inclusive por mim mesmo, que nunca o revi porque nunca soube de ele ter sido lançado em VHS ou em DVD ou em Blu-ray. Chama-se Ride the High Country, e os distribuidores brasileiros foram felizes ao criar o título que não tem nada a ver com o original mas tem a ver com o sumo da história, e então o filme de 1962 do então quase iniciante Sam Peckinpah no Brasil teve o belo e apropriado título de Pistoleiros do Entardecer. Era o entardecer, o crepúsculo, o outono do Velho Oeste, era o lumiar da nova era, a civilização nova chegando.
Só vi Ride the High Country quando tinha 14 anos de idade, ou seja, meio século atrás. Mas jamais me esqueci da tomada que mostra Joel McCrea (diacho! Ou seria Randolph Scott?) chegando ao banco e tentando esconder do caixa os punhos puídos de sua camisa.
Quando morria a era do Velho Oeste e um novo mundo começava, o velho pistoleiro que agora se dispunha a trabalhar para o banco tinha vergonha de sua própria camisa, gasta pelo tempo, incompatível como os bons modos da nova era.
Walter Mitty entrou no e-Harmony, um site de encontros de corações solitários, porque queria se comunicar de alguma forma com Cheryl (Kristen Wiig), sua colega de trabalho. Mas, da mesma forma com que o velho pistoleiro tinha vergonha de sua manga puída, Walter Mitty tem vergonha de sua vida nada aventureira, nada especial, nada super-heróica.
Ele queria clicar no item “Piscar” para Cheryl – mas tem medo. Não consegue clicar.
Walter Mitty não consegue sequer dar um clique de piscar para a mulher por quem baba.
Assim como o pistoleiro de Ride the High Country representa o mundo velho, o que está para desaparecer, Walter Mitty é um símbolo do passado. Ele é o chefe do departamento de negativos da Life Magazine.
Uma revista de fotos maravilhosas pára de circular: é o fim de uma era
A genialidade de Walter Mitty vem basicamente, creio, da trama que o autor do roteiro criou. Ele se chama Steven Conrad, e na verdade inventou praticamente tudo. Tem muito pouco a ver com o conto original, de um sujeito chamado James Thurber. O conto original foi publicado em 1939, e trata de um sujeito, funcionário subalterno de uma empresa que publica uma revista, que tem fantasias, que se imagina fazendo coisas grandiosas, heróicas.
A partir da idéia básica do conto, Steven Conrad criou toda uma nova história. Os créditos indicam isso com algo do tipo “história desenvolvida por Steven Conrad, autor do roteiro”.
E foi uma grande sacada do roteirista ter escolhido a revista Life como parte fundamental da trama – e ter feito do personagem central o chefe do departamento dos negativos fotográficos.
A Life publicou fotos dos acontecimentos mais importantes ocorridos no planeta ao longo de sete décadas, desde a sua criação, em 1936, até sua última edição em papel, em 2007. As fotos mais emblemáticas da história recente estão nas páginas da revista – a fila de miseráveis à espera de um prato de sopa junto de um outdoor falando que os Estados Unidos têm o mais alto padrão de vida do mundo; o dirigível Hindenburg no momento em que é tomado pelas chamas; franceses espancando compatriotas acusados de colaboracionismo logo após a libertação do país em 1944; prisioneiros sendo liberados dos campos de concentração nazistas/ os quatro soldados erguendo a bandeira americana em Iwo Jima… Os fotógrafos mais importantes do mundo se orgulhavam de publicar seus trabalhos na revista. Pelas capas da Life passaram as mais importantes personalidades das mais diferentes áreas – Dwight Eisenhower, os Kennedys, Marilyn Monroe (várias vezes), Liz Taylor, Marlene Dietrich.
Muitas dessas capas são vistas ao longo da narrativa, reproduzidas em grandes pôsteres coloridos colocados nos corredores e salas da redação da revista, no prédio da Time-Life, no centro de Manhattan.
Quando a ação de Walter Mitty começa, a revista está sendo vendida para uma grande corporação. Deixará de circular em papel, passará a existir apenas no mundo virtual da internet, como Life On Line.
Fim de uma era, início de outra.
Walter, o personagem, tem apenas um funcionário atualmente, Hernando (Adrian Martinez). A era do negativo fotográfico acabou, tudo agora é digital. A seção que Walter chefia é hoje – a época em que se passa a ação – um museu. Um lugar importantíssimo, que guarda os originais das fotos de 70 anos de história do mundo. Um lugar sagrado – mas que não é mais ativo. É como um Louvre, um Prado: guarda a história.
Só um veterano excêntrico ainda usa filme com negativo
O único fotógrafo que ainda envia negativos é um veterano, Sean O’Connell. Ele é idolatrado pelos editores da revista, reverenciado como um dos fotógrafos mais importantes do mundo – mas é uma figura excêntrica, doidona. Recusa-se a ter um celular, por exemplo, e nunca se sabe direito onde ele está metido à procura de novas imagens.
Ele e Walter se falavam às vezes por telefone, ou por cartas. Excêntrico, veterano, o fotógrafo não usa e-mail – prefere o Correio.
Sean O’Connell envia um rolo de filme para Walter. Diz que ali está a imagem que deverá ocupar a capa da última edição da Life em papel. Junto com o rolo de filme, envia também uma carteira de presente para Walter. Ao examinar o negativo, Walter e Hernando percebem que falta uma foto, a de número 25 – exatamente aquela que o fotógrafo quer na capa.
Walter precisa desesperadamente falar com Sean O’Connell, para pegar com ele o negativo da foto preciosa. Mas em que pedaço do planeta estará Sean O’Connell?
A trama que o roteirista Steve Conrad criou a partir daí é absolutamente deliciosa. O pobre Walter, que ostentava como sua maior aventura até então uma viagem a Nashville, vai viajar para a Groenlândia, a Islândia, o Afeganistão, o Himalaia…
Sean O’Connell só vai aparecer no finalzinho do filme, interpretado por Sean Penn. Outra participação especial é de Shirley MacLaine, aos 79 anos de idade, como Edna Mitty, a mãe de Walter. Fascinante: a pele do rosto desses dois grandes atores está mais enrugada que maracujá.
Um personagem importante da história é Todd Maher (Patton Oswalt), de quem o espectador, na imensa maior parte da narrativa, só ouve a voz. Todd é o dono e faz tudo do e-Harmony, o site de encontros. Walter se inscreveu no e-Harmony porque ficou sabendo que a bela Cheryl – que havia sido admitida na empresa que publica a Life poucas semanas antes – está no site. Tímido, medroso, Walter jamais conseguiu chegar perto da colega, tentar puxar um papo. Pensa em piscar para ela no site – mas, como já foi dito, tem imensa dificuldade até para fazer isso.
Walter Mitty volta e meia vira super-herói – e sequer precisa gritar Shazam!
A abertura do filme é espantosamente brilhante. Vemos Walter Mitty-Ben Stiller anotando gastos numa caderneta. Um detalhezinho que já revela muito sobre seu caráter: é um homem organizado, metódico.
Walter dá mais uma olhada (pelo visto ele já havia feito aquilo várias outras vezes) no perfil de Cheryl Melhoff no e-Harmony. No item “Meu homem perfeito” ela havia escrito “aventureiro, corajoso, criativo (ou com emprego)”. No item coisas de que não gosta, tinha escrito “encontros via internet”. E, no item de coisas que o homem deveria saber sobre ela, “Eu tenho um desses cachorros de três pernas e um filho (de duas pernas)”.
Walter olha para o campo “Piscadela” – mas sua mão não consegue dar o comando. Levanta-se, senta numa poltrona, fica olhando para o laptop. Levanta-se novamente, aproxima-se do laptop e finalmente consegue clicar no “Piscadela” – mas surge na tela o aviso: “Impossível atender a seu pedido”. Clica de novo – de novo a mesma mensagem. Clica várias vezes – a mesma mensagem.
Ele sai então de casa, carregando sua pasta de metal prateado. Espera o metrô numa dessas estações elevadas. Pelo celular, liga para o site e-Harmony. Quem atende é Todd Maher. Walter explica que tentou mandar uma piscadela e não conseguiu. Todd examina a conta do cliente, percebe que ele deixou vários campos em branco, como lugares incríveis que já visitei, coisas interessantíssimas que já fiz. Walter diz que pulou esses campos, porque nunca foi a um lugar absolutamente incrível. Todd pergunta: “Você já fez algo absolutamente incrível?”
Nesse momento, Walter se levanta do banco da estação, pede para o interlocutor esperar um pouco e, sem gritar Shazam!, pula para dentro de um apartamento do prédio próximo, e sai de lá carregando um cachorrinho, avisando a todos para abandonar o prédio porque ele vai explodir; o prédio explode, e está vindo na direção de Walter ela mesma, Cheryl Melhoff; Walter entrega o cachorrinho para ela e também uma prótese para a perninha manca do bicho, que ele informa ter construído enquanto descia as escadas. Cheryl se espanta com aquele super-homem, e Walter diz: “É o meu lema – aventureiro, corajoso e criativo”.
A voz de Todd Maher, do e-Harmony, o chama de volta à realidade: – “Cara, você ainda está aí?”
Estamos aí com exatos cinco minutos de filme.
Às vezes é melhor vivenciar intensamente os momentos do que tentar preservá-los numa imagem
O conto The Secret Life of Walter Mitty é o mais conhecido trabalho do escritor James Thurber (1894-1961). Foi originalmente publicado na revista The New Yorker, em 1939. Nele, o personagem Walter Mitty vai com sua esposa fazer as compras semanais em Waterbury, Connecticut. Ao longo do conto, Walter Mitty tem cinco diferentes episódios de fantasia, isso que em inglês se chama de daydream, e que poderíamos chamar de viagens, viajandões. Ele é um piloto da Marinha durante uma tempestade, depois é um cirurgião executando uma operação complicadíssima, depois é um terrível assassino dando seu testemunho em um tribunal, depois é um piloto da Royal Air Force inglesa engajado numa missão suicida, depois está diante de um pelotão de fuzilamento.
Em 1947, foi lançado o primeiro dos dois filmes com o título The Secret Life of Walter Mitty; no Brasil, chamou-se O Homem de 8 Vidas; foi dirigido por Norman Z. McLeod, e tinha Danny Kaye, então no auge do sucesso, no papel título.
Da mesma maneira que o filme novo, o primeiro Walter Mitty se inspirava no conto, mas tinha uma trama bem diferente da original. Na verdade, pelo que parece, os dois filmes, tanto o de 1947 quanto este agora dirigido por Ben Stiller, só mantiveram do conto a idéia básica de que o personagem central, um homem comum, sem absolutamente nada de especial, é dado a ter daydreams, fantasias, viajandões.
Um detalhe fascinante é que o filme de 1947 foi produzido por Samuel Goldwyn (1879-1974). O de 2013 é uma produção da Samuel Goldwyn Films, a empresa criada pelo legendário magnata de Hollywood, e entre os produtores estão dois filhos dele, John Goldwyn e Samuel Goldwyn, Jr.
O IMDb traz duas dezenas de curiosidades sobre o filme e sua produção. Várias delas contam que, desde os anos 90, diversos estúdios planejaram fazer um novo The Secret Life of Walter Mitty. Steven Spielberg demonstrou interesse em dirigir uma refilmagem. Ron Howard também. O próprio Samuel Goldwyn, Jr. chegou a preparer um projeto que teria Jim Carrey no papel central. Outros nomes foram considerados: Owen Wilson, Mike Meyers, até Sacha Baron Cohen. Houve disputas na Justiça entre estúdios interessados em ter os direitos para refilmar a história. Uma zorra.
Volta e meia digo que Hollywood escreve certo por vias tortas. Ainda bem que o projeto acabou sendo tocado com Ben Stiller na direção e no papel central.
É um belo filme. Neste tempo em que todo mundo (eu inclusive) se super expõe nas redes sociais, este Walter Mitty de Ben Stiller faz o elogio de uma era que acabou, a era dos suportes físicos, das revistas de papel e fotografias feitas em filmes negativos, e também de uma vida em que às vezes é melhor vivenciar intensamente os momentos do que tentar preservá-los numa imagem.
Anotação em setembro de 2014
A Vida Secreta de Walter Mitty/The Secret Life of Walter Mitty
De Ben Stiller, EUA, 2013.
Com Ben Stiller (Walter Mitty), Kristen Wiig (Cheryl Melhoff), Shirley MacLaine (Edna Mitty), Adam Scott (Ted Hendricks). Kathryn Hahn (Odessa), Sean Penn (Sean O’Connell), Terence Bernie Hines (Gary Manheim), Adrian Martinez (Hernando), Patton Oswalt (Todd Maher), Olafur Darri Olafsson (o piloto de helicóptero)
Roteiro Steven Conrad
Baseado no conto de James Thurber
Fotografia Craig Haagensen e Stuard Dryburgh
Música Theodore Shapiro, com José González
Montagem Greg Hayden
Produção John Goldwyn, Samuel Goldwyn, Jr., 20th Century Fox. DVD Fox.
Cor, 125 min
***1/2
Confesso que não era muito fã do trabalho de Ben Stiller, mas depois desse filme fiquei impressionada com sua performance sutil ao retratar a transformação física e mental da personagem a cada superação de desafios. Nessa jornada de autodescobrimento os lemas da revista Life lhe servem como um paradigma e a interpretação de Ben, cheia de nuances, só faz realçar a mudança. Gosto do filme como um todo, mas a cena em que a Kristen Wiig canta Space Oddity ao violão, seguida pela versão original do Bowie é linda.